Projetos dão luz à produção fotográfica de mulheres para combater o machismo e a desvalorização profissional
Por Patrícia Martins
A norte-americana Ann Cook, em 1839, foi a primeira pessoa a realizar uma fotografia de paisagem com um daguerreótipo, equipamento responsável pela produção de uma imagem fotográfica sem negativo. Também no século 19, a francesa Antonieta DeCorrevont foi a primeira mulher a trabalhar profissionalmente com fotografia e abriu o próprio estúdio em 1843. E a inglesa, Constance Talbot, junto ao seu marido, desenvolveu papéis sensíveis à luz que absorviam melhor e mais rapidamente as imagens. No Brasil, Gioconda Rizzo é considerada a primeira brasileira a ser reconhecida como fotógrafa e, em 1914, foi a primeira mulher a abrir um ateliê de fotografia na cidade de São Paulo, mesmo com as proibições do pai que não a deixava fotografar homens. A estadunidense Margaret Bourke-White, na década de 1930, foi a primeira mulher correspondente de guerra em áreas de combate. Essas são algumas das pioneiras, que há mais de um século superaram adversidades e privações da época, apenas por serem mulheres, para produzirem trabalhos que foram essenciais para o aprimoramento de técnicas fotográficas e na documentação de fatos históricos. No entanto, em pleno século 21, fotógrafas ainda são vítimas do assédio, machismo, desvalorização profissional e falta de oportunidades e visibilidade, como revelam as profissionais entrevistadas.
A brasiliense Janine Moraes, 31, é jornalista e começou a trabalhar como fotojornalista em 2008, quando ainda estava na faculdade. Janine relembra situações machistas que ocorreram quando trabalhou nas principais redações de jornais da capital. “Brincadeiras desagradáveis, assédio… A sensação que eu tive é que a gente tem que se embrutecer um pouco para conseguir algum respeito. O que também não é muito sadio. O ideal é que a gente tenha um ambiente de trabalho onde a gente possa ser o que a gente é.”
A fotojornalista recorda como o machismo permeava a rotina profissional da redação. “As pautas que te oferecem, um senso de proteção e de cuidado que, às vezes, as pessoas têm com a mulher, de evitar mandá-las para determinadas pautas ou priorizar pautas ‘femininas’, que é um conceito bem questionável.”
Com experiência principalmente na editoria de política, Janine relaciona o machismo e a prevalência de homens no fotojornalismo com a dificuldade de entrada e consolidação das mulheres nessa profissão. “Sem dúvidas é um espaço mais ocupado por homens e as mulheres enfrentam algumas dificuldades para se manterem nesse espaço. Já é mais difícil chegar por uma série de questões e quando elas chegam é difícil se manter porque existe um ambiente bastante machista.”
Para Janine, integrar o Mamana FotoColetivo (Coletivo brasileiro de mulheres fotógrafas), que busca dar visibilidade para mulheres da profissão) foi uma oportunidade de compartilhar as dificuldades e angústias guardadas. “Foi incrível quando eu encontrei o Mamana porque eu consegui perceber que o que acontecia comigo não era pontual. Quando eu consegui ouvir as outras meninas, eu percebi que todo mundo vivia aquilo de algum jeito. É uma sensação de não tô sozinha. “
A profissional acredita que a insuficiência de referências que os profissionais homens têm do trabalho de mulheres é um dos fatores que influenciam a falta de reconhecimento e prestígio delas na profissão. “Se você tem um ambiente majoritariamente masculino, é natural que ele premie mais homens, já que é o repertório que eles têm. O que tem de haver é um esforço de olhar. Mas isso está mudando bastante com a internet, a passos largos, mas também acho que de uma luta de mulheres se organizando e gritando.”
Desrespeitos
A conterrânea da Janine, Naiara Pontes, 34, fotografa desde 2014 e trabalha principalmente com eventos políticos a serviço do governo federal. De forma independente, atua também com narrativas visuais de cidadania, o que ela chama de fotografia social.
No fotojornalismo, o posicionamento do fotógrafo para conseguir o melhor ângulo é fundamental para a imagem. Naiara relata que já passou por situações de desrespeito no trabalho. “Os melhores lugares sempre eram dados para eles e até aconteceu comigo uma situação em que eu estava cobrindo uma pauta e não tinha lugar. Eu sou bem baixinha e eu falava para o pessoal ‘pô, galera deixa eu ficar na frente de vocês, eu não vou atrapalhar’ e o cara abriu as pernas e falou ‘você pode entrar por debaixo das minhas pernas’, foi bem desrespeitoso”.
Naiara relata que atuar na área é sempre difícil porque a fotografia ainda é um local predominantemente masculino. Ela relata que o machismo se impõe no ambiente competitivo característico da profissão. “ Existe uma competição pela foto mais importante do dia e os homens têm muita dificuldade em aceitar quando a foto do dia foi feita por uma mulher”. Ela já presenciou manifestações de desdém como ‘ahh, você tinha privilégio’. “ (É como se) Nunca fosse pelo seu mérito, nunca pela sua capacidade, é sempre porque alguém te ajudou.”
Além de colaborar com o Mamana FotoColetivo, Naiara encabeçou o grupo YVY Mulheres da Imagem – iniciativa posicionada em diversas regiões do país, que reúne mulheres que trabalham com fotografia e outros tipos de imagem no Centro-Oeste.
A partir de 2015, Naiara começou a acompanhar e fotografar manifestações públicas que ocorriam naquele período político e acredita que os FotoColetivos femininos, além de contribuírem na divulgação do trabalho feito por mulheres, também fortalecem na questão de segurança, principalmente em situações mais vulneráveis e propensas a risco físico, como em passeatas e protestos. “A gente tem outras questões envolvidas por ser mulher. Ter medo de apanhar, de sofrer outro tipo de violência, além do que os homens sentem.”
Minoria no DF
As mulheres são minoria dentre os sindicalizados ativos, de acordo com dados do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal (SJPDF). Apenas 45 mulheres registradas como repórteres fotográficas são são associadas à entidade, mas não necessariamente contribuem para a entidade ou atuam em Brasília. E, dos 41 repórteres fotográficos sindicalizados regulares – que atualmente estão sindicalizados e contribuem para a entidade – nenhum é do sexo feminino. Entretanto, esses números apenas representam os profissionais associados ao sindicato, mas não retratam o número total de jornalistas do DF, uma vez que nem todos os profissionais se sindicalizam. A Fenaj não dispõe de números.
Pelas capas
Um levantamento de todas as fotografias veiculadas nas capas do jornal Folha de S. Paulo, realizado pela iniciativa YVY Mulheres da Imagem, entre 16 de agosto a 16 de setembro, deste ano, revela que, dentre 32 capas analisadas, com um total de 53 fotos publicadas, apenas três foram feitas por mulheres. E, dessas três fotógrafas, todas eram brancas.
Janine Moraes, a profissional brasiliense, considera que, às vezes, a narrativa visual é excludente, devido à falta de diversidade no ramo profissional. “A gente pode ver, por exemplo, que, das poucas mulheres inseridas (no mercado), a maior parte delas são mulheres brancas. Então, a gente consegue diversificar a narrativa, mas ainda com limitação. São muitos os problemas a serem resolvidos para a gente ter uma diversidade maior de narrativas.”
O levantamento também traça um recorte sobre as abordagens temáticas dessas 53 fotos publicadas. Das únicas três imagens s tiradas por fotógrafas, uma é sobre mulheres lésbicas, uma é sobre turismo e outra é um retrato de coluna social. E, nas imagens publicadas por homens, as pautas permeiam temas do fotojornalismo, como política, coberturas de confrontos, documentações de áreas de conflito, dia a dia das cidades e manifestações religiosas.
As mulheres também são menos reconhecidas na profissão. É o que mostra a pesquisa Fotojornalistas Brasileiras, realizada pelo movimento Fotógrafas Brasileiras, que analisa a edição 2016/2017 do livro O melhor do fotojornalismo brasileiro, da Editora Europa, que é o único livro do país dedicado exclusivamente ao fotojornalismo e que tem como finalidade “reunir uma coletânea das fotos mais marcantes do ano anterior e, assim, criar um documento da história contemporânea do Brasil por meio dessas imagens.”
O livro reúne 116 fotojornalistas e 242 fotos selecionadas, entre as 700 que foram enviadas pelos profissionais brasileiros. A pesquisa indica que apenas 8,5% das fotos selecionadas para a publicação foram feitas por fotojornalistas mulheres.
O olhar delas
A paulistana Isadora Tricerri, 21, trabalha com fotografia artística e direção de fotografia e relembra que, em 2017, percebeu que as fotógrafas mulheres eram pouco reconhecidas na área profissional, e que os fotógrafos apenas divulgavam o trabalho de outros homens. “Comecei a observar fotógrafos homens atuais se divulgando e se apoiando diariamente no Instagram. Fui então questionar um deles o motivo de nunca divulgar ou apoiar mulheres da área, e a resposta foi que não as conhecia.”
Motivada em dar mais visibilidade para fotógrafas, Isadora começou com a iniciativa Olhares Delas, que atua principalmente nas redes sociais.
Na página do projeto no Instagram são divulgados os trabalhos de mulheres fotógrafas ao redor do país. A curadoria é realizada toda semana através da tag #olharesdelas, onde as profissionais “marcam” a página do projeto em postagens com os trabalhos fotográficos. Isadora explica que a curadoria também é feita fora da tag. “Estamos sempre de olho em trabalhos de mulheres, e buscando trazer isso para o Olhares Delas, para que outras mulheres também as conheçam, visando assim, a criar uma grande rede.”
Contadora da própria história
A profissional destaca que o local de fala das mulheres muitas vezes é explorado em ensaios fotográficos realizados por profissionais homens. “A ideia de querer empoderar as mulheres apenas como musas é uma das maiores apropriações do local de mulheres por homens. Eles acreditam que nos colocando sobre o olhar deles – que é, constantemente sexualizado e sem preparo, pois a sociedade é machista, e a vivência deles nunca será a mesma que a nossa – estão nos dando espaço e representatividade. Mas eles precisam entender que esse não é o espaço deles.”
Isadora ressalta que, quando o local de fala das mulheres é ocupado por uma mulher, o trabalho fotográfico transmite um olhar mais sensibilizado, já que existe uma compreensão da vivência feminina. “Quando uma mulher fotografa outra mulher, ela entende o que essa mulher passa todos os dias, por ser mulher. Entende o que ela quer e como quer ser retratada, não só como musa, mas como criadora e contadora da sua própria história.”
Mulheres da Imagem
Camila Fontenele, 29, é fotógrafa, artista visual e integrante da iniciativa YVY Mulheres da Imagem, na cidade de Sorocaba (SP). O grupo, que articula regionalmente em todo o Brasil, foi criado em 2016 pela fotojornalista brasileira Marizilda Cruppe que queria juntar mulheres – pessoas que se identificam como mulheres, trans e não binárias – e oportunidades no campo da imagem visual.
Apesar da maior parte das integrantes serem fotojornalistas, Camila explica que não há limitações para participar do grupo, já que ele dialoga com diversas áreas da imagem. “O principal objetivo é dar relevo a atuação e subjetividade de mulheres da imagem e também entender que mulheres é sempre uma pluralidade porque senão a gente acaba ficando em um binarismo e acaba cometendo as mesmas restrições que a gente não deseja que ocorra.”
Camila esclarece que a organização está em transição e o principal objetivo é atuar como uma plataforma on-line que possa conectar e localizar mulheres que trabalham com imagem visual e reunir informações e dados sobre o tema. “A gente está com o planejamento de viabilizar a nossa plataforma on-line, principalmente para poder colocar no ar um questionário que possibilita fazer um mapeamento de mulheres no Brasil que trabalham com imagem.”
Escute parte da entrevista, em que a fotógrafa Camila Fontenele comenta, a partir de experiências próprias, as principais questões enfrentadas por mulheres na fotografia e arte visual:
Pesquisas internacionais sobre o tema mostram que as questões enfrentadas por mulheres profissionais da foto, no Brasil, também são a realidade de mulheres que fotografam em outros países. É o que mostra o estudo internacional “State of News Photography, publicado em 2018, e realizado pela Fundação World Press Photo, Universidade de Stirling e o Instituto Reuters para o Estudo de Jornalismo, da Universidade de Oxford. O estudo demonstra que, no ano passado, quase 68% das mulheres entrevistadas (126 fotógrafas) confirmaram que já enfrentaram discriminação no trabalho de fotojornalismo. Ao todo, 187 mulheres participaram da pesquisa. Confira os dados na arte abaixo.
Menos visibilidade, menos chances…
O mesmo estudo realizado em 2015 investigou as condições de trabalho no fotojornalismo e como elas variam de acordo com o gênero do profissional. A pesquisa partiu da análise dos dados de relatórios on-line preenchidos por fotógrafos profissionais homens e mulheres, que participaram do concurso de fotos da World Press Photo, em 2015, somando um total de 1.556 fotógrafos de mais de 100 países.
O levantamento aponta que a indústria do fotojornalismo é caracterizada pela falta do vínculo empregatício, encontrado em 60% das respostas. Para as mulheres, esse índice alcança 86%, o que indica que elas são menos propensas a serem contratadas em grandes agências de mídia e notícias, o que aconteceu em apenas 7% dos casos analisados, comparado a 22% dos homens.
O estudo também analisou 236 fotojornalistas mulheres – aproximadamente 15% do total de profissionais. Dentre as mulheres que responderam a pesquisa, 82% possuem nível universitário, contra 69% dos homens, entretanto, na maioria, elas ganham menos que os homens em todas as faixas salariais estudadas.
As mulheres também são menos premiadas. Nos últimos 20 anos, apenas duas mulheres ganharam o prêmio “Foto do Ano”, que é a principal categoria da prestigiada premiação de fotografia World Press Photo (WPP), criada em 1955.
A plataforma on-line Women Photograph (WP), fundada pela fotógrafa documental vietnamita-americana Daniella Zalcman, acompanha desde 2016 as fotos consideradas “Foto Principal”, ou seja, que receberam destaque na capa dos principais jornais internacionais, com o intento de comparar o número de fotos feitas por homens, mulheres e não-binários.
O levantamento mais recente exprime que entre julho e setembro deste ano, apenas 35% das fotos selecionadas pelo The New York Times eram de mulheres. No Le Monde: 13,8%; Washington Post: 19,8%; The Wall Street Journal: 10,1% ; The Guardian:11,4% e San Francisco Chronicle: 34,8%.
A criadora da plataforma, Daniella Zalcman, em entrevista à reportagem, elucida que o conjunto de dados reunidos pela WP tem como objetivo ser utilizado como uma métrica de qual maneira as mulheres estão sendo contratadas e publicadas na comunidade editorial e de como esses números estão mudando. “Se você observar os números dos últimos três anos que monitoramos, poderá ver que, embora os números atuais estejam longe de serem iguais, eles são muito melhores do que quando nós começamos”.
O foco é nelas
Para a fundadora, a proposta do Woman Photograph é elevar as vozes de jornalistas visuais mulheres e não binários, fornecer suporte estrutural à comunidade e criar conversas e movimentos tangíveis em direção à paridade.”Eu queria criar um recurso para tornar o mais simples possível a contratação de fotógrafos mulheres e não binários por editores de fotos, curadores e outros gatekeepers”. Para isso, a plataforma reúne mais de 850 fotografias documentais feitas por fotojornalistas e fotógrafas mulheres e não- binários, dos variados países.
Daniella expõe que a desigualdade de gêneros na profissão e, consequentemente, a carência da pluralidade do olhar visual acaba influenciando negativamente o produto fotográfico. “As nossas visões de guerra, política, moda, esportes, de tudo, tem sido predominantemente definida por experiências visuais de fotógrafos homens. Isso é tóxico. E o pior é que a maioria do público não percebe o impacto que isso causa na maneira como eles consomem essas histórias.”
A fotógrafa demonstra otimismo com o futuro de equidade em oportunidades e participação na fotografia. “Misoginia e sexismo estão presentes em todos os campos e níveis da sociedade. Mas, acredito que a fotografia noticiosa tem o poder e o potencial para nos ajudar a imaginar um futuro melhor. É também um dos raros setores em que podemos efetuar mudanças rapidamente.”
