O tempo deixou rastros de dor, frio e indignação. As memórias descortinam o inacreditável e o absurdo. “Homens, mulheres e até crianças chegaram a comer ratos, beber esgoto ou urina e dormir sobre o feno. Morreram de fome, frio, doenças e todo tipo de maus-tratos.” O trecho é do livro Holocausto Brasileiro (2013), da jornalista Daniela Arbex, sobre o antigo Hospital Colônia (1903), em Barbacena (MG). As lembranças não estão apenas nos livros. Há 25 anos, o Museu da Loucura naquela cidade mineira, em parte do espaço do antigo hospício, mantém acervo de materiais e registros históricos para conscientizar e causar repúdio para que aquela história jamais volte a se repetir.
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“Nossa proposta é colaborar para essa conscientização da sociedade sobre o que se passou ali”, afirma a coordenadora do Museu da Loucura, Lucimar Pereira. O espaço resgata a história da assistência psiquiátrica em Minas Gerais e está localizado em uma das alas do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB). “É preciso respeito ao paciente e deve-se ter a capacidade de inseri-lo na sociedade, mostrando a cada pessoa que ela é importante nesse processo, com solidariedade”, afirma.
Lucimar Pereira participou do projeto de criação do museu, em 1996, idealizado pela Fhemig (Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais), em parceria com a Prefeitura de Barbacena, através da Secretaria Municipal de Cultura. Na época, o museu era o primeiro do gênero no país, com o objetivo de resgatar a história da assistência psiquiátrica em Minas Gerais, contextualizando-a. Segundo a coordenadora, o museu aponta os caminhos e descaminhos desse percurso histórico na área da psiquiatria e da saúde mental, trazendo informações sobre a luta antimanicomial e reforma psiquiátrica.
No lugar do Hospital Colônia, ficou o CHPB. “O hospital traça novos rumos, com novas atividades assistenciais, enquanto o museu traz a reflexão, com as imagens sobre o ocorrido”.
Lucimar Pereira acrescenta que no Centro de Convivência e Cultura, as pessoas que moram em residências terapêuticas praticam atividades artísticas e de artesanato, promovendo também a convivência com outras pessoas da cidade. A psicóloga Tânia Inessa, que é pesquisadora de saúde mental em Brasília, indica que a arte é amplamente usada na terapia, por ser uma boa forma de expressão do sofrimento humano, seja com oficinas de dança, teatro ou pintura. Além disso, é uma maneira de entrar em contato com o outro e aproximá-lo de si. “Às vezes o sofrimento é tão intenso que precisamos de outras formas de expressão além da fala”.
A coordenadora do Museu da Loucura diz que a criação da instituição foi um fator de avanço na luta antimanicomial como forma de sensibilizar a sociedade para entender o contexto histórico, é um espaço de memória e reflexão. O espaço traz essa história contextualizada, mostra os erros cometidos, promove o reconhecimento desses erros.
“A grande questão de aprender com o passado é que lançamos o olhar para o presente para evitar também que, no futuro, a gente não condene as atitudes atuais. Se pelo menos uma pessoa passou por uma situação de sofrimento, descaso, abandono, isso já é passível de reflexão, mudança e evitar que isso ocorra”
Histórico
Na década de 1970, a atuação do psiquiatra italiano Franco Basaglia, um dos principais pensadores contra aquela lógica manicomial, difundia métodos de humanização nos hospícios, alertando que o local não era para ser um “depósito de pessoas”. O psiquiatra, inclusive, trouxe ideias de reforma psiquiátrica para o Brasil no Congresso Mineiro de Psiquiatria, baseadas na criação de novos centros para trazer dignidade aos pacientes. “A força para acabar com essa cadeia infernal está dentro de cada um”, afirmou na ocasião.
O Hospital Colônia foi o maior hospício do Brasil, onde pelo menos 60 mil pessoas morreram, das quais 70% não tinham diagnóstico de doença mental, eram internadas, muitas vezes compulsoriamente e foram sujeitadas a um tratamento que violava os direitos humanos mais básicos. Esse modelo de assistência manicomial era semelhante em todo o país, visto que os médicos e diretores dos hospícios do país se comunicavam, padronizando o direcionamento.
A estrutura do museu faz com que o visitante mergulhe naquele ambiente. Uma das salas traz como foi a criação e evolução do 1º hospital de Assistência aos alienados de Minas Gerais. A fundação ocorreu em 1903 no prédio do antigo Sanatório de Tuberculose. Outro espaço descreve as violações a que eram submetidos os pacientes do hospital psiquiátrico. Em outra sala reflete sobre o preconceito e abandono do paciente pela família. O museu ainda destaca como era a vida dentro do hospício e a venda de cadáveres. Para horror de quem conhecer o local, outra sala simula um antigo centro cirúrgico do hospital.
A história descrita no museu mostra que a história começou a virar em 1979, quando o jornal Estado de Minas publicou uma série de reportagens intitulada “Nos porões da loucura” e também, no mesmo ano, foi produzido o documentário Em nome da razão para sensibilizar a população para as atrocidades do espaço.
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A coordenadora acredita que a inserção na sociedade é importante para desmistificar o preconceito, quebrando estigmas contra quem estava internado, essas pequenas ações foram decisivas para acabar com aquela assistência degradante.
A coordenadora crê que os profissionais da saúde da época não agiam por pura crueldade, visto que muitos erros foram cometidos também em razão do desconhecimento e despreparo. Na década de 1980, começou a capacitação dos profissionais da saúde mental, criaram equipes e ampliaram a área do hospital, para que eles pudessem reagir de forma diferente perante uma crise, por exemplo. Os trabalhadores dessa área começaram a entender melhor sobre quadro patológico e assim, a atuação passou a ser melhor.
Em 1987, aconteceu um Encontro dos Trabalhadores da Saúde Mental, em Bauru-SP, quando foi lançado o lema: “Por uma sociedade sem manicômios”. A partir daquele momento, foi instituído o Dia da Luta Antimanicomial, 18 de maio.
A Lei 10206 prevê orientação e condição para que os municípios se organizem e criem os seus serviços de saúde mental, respeitando os pacientes. (Confira aqui)
O Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB) trabalha desde o final da década de 90 para começar a atender outras especialidades médicas além da psiquiatria, com a criação do Hospital Regional, hoje, os dois estão em processo de unificação. Os antigos pacientes voltaram a morar com suas famílias ou em residências terapêuticas.
No CHPB, há um local para a internação de adultos, em que estão os pacientes em crise, indicados pelo CAPS, eles ficam internados até a melhora do quadro clínico. No ambulatório, há o atendimento de serviço social, psicologia e psiquiatria para os moradores, com oficinas terapêuticas para a população da cidade.
Lucimar Pereira relata que, atualmente na cidade, há uma rede, composta pelas residências terapêuticas, Centros de atenção psicossocial (CAPS) e pelo Projeto Casa Lar. A psicóloga Tânia Inessa explica que as residências terapêuticas foram criadas para pessoas que estavam há muito tempo institucionalizadas em manicômios e não tinham mais vínculo familiar, por estarem abandonadas.
Nessas moradias, vivem de duas a oito pessoas, com a assistência de uma equipe especializada, elas são uma forma de reinserção social, hoje, esses locais também atendem a pessoas em situação de rua. Os CAPS são serviços especializados da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) direcionados para o tratamento, eles são subdivididos em : infanto-juvenil, CAPS I,II e III (voltado para adultos com sofrimento psíquico grave) e o CAPS AD II e III (dirigido para pessoas com transtorno psíquico oriundo do uso abusivo de entorpecentes).
A Fhemig, em parceria com o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB), realiza o Projeto Casa Lar. Essas residências apresentam uma condição bem próxima de uma casa comum, são uma transição para uma melhor preparação dos pacientes para sair do cuidado hospitalar, de três a quatro pessoas convivem no espaço, com uma característica de lar. Eles desempenham diversas atividades, desde culinária, cultivo de hortas, até frequentar o espaço urbano, fazendo atividades físicas e compras.
A psicóloga afirma que o alcance dos resultados ajuda a enfrentar o retrocesso. “O tratamento em espaços abertos e comunitários não só respeita os direitos e a dignidade da pessoa humana, como também produz melhores resultados”. Antigamente, não havia perspectiva de melhora, diziam que as patologias seriam incuráveis.
Saiba mais sobre Museu da Loucura, em Barbacena
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Acima, imagens da exposição “O fazer que dá sentido à vida”, com obras produzidas pelos pacientes do CHPB, representando o passado da instituição sob um novo olhar, busca consolidar a importância das atividades terapêuticas no processo de reabilitação psicossocial (Fotos: Divulgação)
A psicóloga Tânia Inessa afirma que nesses 30 anos, houve uma mudança de investimento, os hospitais psiquiátricos estão sendo extintos gradativamente. A proposta do Ministério da Saúde foi construir CAPs, residências terapêuticas e diminuir o porte dos hospitais, fechando leitos. Com o mapeamento dos hospitais psiquiátricos no país, a mudança começou a partir das maiores instituições.
Isso é um processo irreversível, visto que era o antigo tratamento era claramente uma violação dos direitos humanos, algo como o que ocorreu em Barbacena é difícil de voltar a acontecer. “Nos últimos 2 anos houve um retrocesso, o movimento está interrompido e quase nenhum serviço está sendo construído, o valor do leito psiquiátrico aumentou, hoje a gente vive um momento de ameaça”.
Por Maria Tereza Castro
Fotos: Divulgação
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira