“A única coisa que minha mãe deixou no meu quarto e eu não destruí nas minhas crises foi uma caneta e um caderno”. Depois do dia 22 de março de 2014, uma caneta e um caderno foram a salvação da poetisa Kedma Thaís, mais conhecida como “Pre Thaís”. A adolescente negra, de 18 anos e de olhar tímido, conta com choro engasgado detalhes sobre a violência sexual sofrida aos 15 anos.
“Já vivi outras violências por ser negra, mulher e lésbica. Mas, a maior de todas certamente foi o estupro. Ser uma jovem negra da periferia é estar vulnerável”, relata.
Thaís e a família fugiram de Luís Eduardo Magalhães, no interior da Bahia, em 2015, por causa das ameaças do autor do crime que marcou para sempre a vida da jovem. “Não existe depressão para ‘preto’. Temos que criar mecanismos para resistir às violências que sofremos diariamente”, conta.
| Os números comprovam que mulheres negras são vítimas de mais violência do que as brancas. Os homicídios aumentaram 54% em dez anos no Brasil, de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013. Enquanto, no mesmo período, o número de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8%, de 1.747 em 2003 para 1.576 em 2013. Os dados são do Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil, estudo produzido pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). |
As cicatrizes do crime que arrancou a inocência dos 15 anos de Thaís não são somente físicas, são também psicológicas. Após ter sido mais uma das vítimas do mesmo criminoso, a jovem teve que enfrentar também um processo de aborto. “A poesia me inseriu no meu espaço enquanto mulher negra e me faz lutar pelas causas que acredito”, reforça.
Para ela, a vida não é mais colorida como já foi. Apesar disso, vê na cultura hip hop um norte. Ela faz parte do “Slam das Minas” – reunião de jovens negras que recitam poesias de própria autoria, na rua. Ela representou o Distrito Federal, em 2016, em um campeonato de poesias faladas, em São Paulo.O poema “Manhã Amarela”, escrito dias depois do crime, tem quase 500 visualizações no YouTube e narra como ela encarou o mundo depois da violência.
| “Abri os olhos aquele dia, em meio ao nada, numa manhã tão amarela como a cor do sol que me cegava. Queimava. E se juntava com o vermelho do sangue que escorreu do meu corpo alguns instantes” (Pre Thaís) |
Manifestações culturais são elementos importantes de afirmação e resistência. O sociólogo Daniel considera que poucos negros têm chance de estudar e ter acesso a cultura, educação e lazer, devido à deficiência de iniciativas públicas. “As cotas, por exemplo, são alguns dos mecanismos de inclusão para dar maior visibilidade ao negro no Brasil”, observa.
Amorim apresenta argumentos históricos para explicar a exclusão do negro na sociedade brasileira e a maior vulnerabilidade à violência física, sexual e psicológica. “Os movimentos sociais de hoje buscam enquadrar o negro em lugares diferentes dos que eram enquadrados no Brasil Colônia, onde mulheres eram objetos sexuais e homens tratados como mercadorias”, pontua.
Negro não é minoria
A cultura brasileira é carregada de raízes africanas. Mas, a sociedade verde e amarela, de sangue negro, recheada de contradições, discrimina e mata, por dia, 63 responsáveis por boa parte da cultura e história brasileira – os negros. A estimativa é do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado sobre o Assassinato de Jovens, divulgado em 2016. A pesquisa concluiu que, a cada 23 minutos, um jovem negro é morto no Brasil e que, por ano, 23.100 negros de 15 a 29 anos são assassinados.
No Brasil, é um erro chamar a população negra de “minoria”, já que, segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE (ano), 53,6% dos brasileiros afirmam ser “preto” ou “pardo”, enquanto, 45,5% da população se declarou de cor branca.
O rapper Henrique Silva, de 24 anos, não se conforma com a definição de minoria em um país onde o negro predomina. Ele é vocalista do grupo de rap Quadrilha Intelectual, e conseguiu driblar as violências enfrentadas por ser jovem, negro e morador da periferia, por meio da cultura hip hop. A música, para ele, é um dos mecanismos naturais de sobrevivência em que negros costumam se inserir, para firmar um espaço na sociedade. “O rap me ensinou a andar de cabeça erguida e a me aceitar como sou. Desde que o mundo é mundo, quem faz a cultura e a história deste país são os negros da periferia”.
| “A história não mudou perante o proletariado. Antigamente escravos e servos, hoje em dia operários. Carta de alforria estratégia capitalista. Nórdica, européia intenção consumista” (Quadrilha Intelectual) |
Henrique relata que as situações de perseguição que já viveu são incontáveis. “Fazendo compras no mercado fui seguido pelo segurança que, curiosamente também era negro. Perguntei qual era o problema de um negro fazer compras”, conta. Além disso, ter acesso a lazer é mais difícil quando a cor da pele não atende aos padrões sociais. “Aqui no meu bairro, é quase impossível conseguir reunir os amigos na rua para bater um papo sem ser vigiado pela polícia. Depois das 22h, somos alvos”, diz.
Racismo
O Mapa de violência de 2016, mostrou que as agressões contra a população negra vêm crescendo no Brasil. Entre 2003 e 2014, a taxa de homicídios de negros aumentou 9,9%, de 24,9% para 27,4%. Além disso, 2,6 vezes mais negros que brancos morrem por assassinato com arma de fogo.
De acordo com o subsecretário de Igualdade Racial do Distrito Federal, Victor Nunes Gonçalves, a população tende a criminalizar as atitudes da juventude negra. “Existe um olhar conservador da população. Por isso, é fundamental que a juventude se una para se fortalecer”. Institucionalmente, ele apoia e incentiva grupos que se organizam para debater a realidade social. O plano Juventude Viva, do Governo Federal, reúne ações de prevenção que visam reduzir a vulnerabilidade dos jovens a situações de violência. O subsecretário garante que o governo de Brasília já fez adesão ao programa e que, em 2017, dará continuidade. Mas, ressalva que a realidade atual ainda é conturbada e precisa de avanços. “A sociedade precisa se engajar em debates sobre o racismo no Brasil. Assim, teremos mais progresso”, pontua.
Violência doméstica
Dados da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 mostram que, dos telefonemas realizados de janeiro a junho de 2016, 59,71% eram de agressões contra mulheres negras. A pedagoga Luana Euzébia, de 35 anos, é negra e relata que sofreu diversos tipos de violência, inclusive doméstica, quando viveu com o ex-namorado durante 4 anos. “Foi uma relação conturbada, cheia de desamor e violência. Superar isso foi uma luta da qual me orgulho, pois boa parte do meu empoderamento veio dos aprendizados com a relação”, comenta.
Luana escreve poemas e faz parte do coletivo Donas da Rima, um grupo de rap feminino, em Brasília. Ela encontrou, não só na arte, como nos estudos, a saída para driblar as violências que já enfrentou na vida. “Eu percebia que quanto mais eu estudava e me envolvia com o rap, mais eu me afastava dos traumas da minha infância e adolescência”, diz. A pedagoga foi abandonada pela mãe ainda na infância, enfrentou preconceitos durante toda a adolescência por ser gorda, negra e da periferia. “Tento alinhar educação e cultura, que são coisas que me sustentaram durante as crises”.
A violência reflete o contexto do racismo. A Professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro, Jaqueline Gomes de Jesus, considera que a sociedade ajuda a mulher branca mas não faz o mesmo pela mulher negra. “As negras têm menos apoio às suas dificuldades, por isso são vistas como um alvo mais frágil”, afirma.
Ela alerta que alternativas para enfrentar a violência, como artes, entretenimento e até os estudos são fundamentais, mas também podem mascarar uma dor que precisa ser trabalhada. “São formas de auxiliar a refletir sobre essa realidade e enfrentá-la. Mas, é importante buscar estratégias efetivas para enfrentar as dores”, considera.
Por Mariana Areias


