Fora dos padrões: conheça a vivência de quem não é homem nem mulher

COMPARTILHE ESSA MATÉRIA

*Dani é uma personagem que reflete as experiências vividas por algumas pessoas não binárias.

**Para garantir respeito aos entrevistados, esta matéria usa termos inclusivos e gêneros neutros em algumas partes do texto.

Imagine que a sociedade é uma biblioteca organizada por sessões. Na ala de gênero, existem duas caixas: uma azul e uma rosa. O mundo sempre quis que Dani* se colocasse em uma das caixas. Em alguns dias, Dani acorda com vontade de usar um vestido e passar maquiagem. Em outras manhãs, Dani quer usar calça e adora admirar o cabelo raspado. Masculino ou feminino? Dani acredita que a identidade de gênero não cabe em algum desses dois rótulos, sente que flui entre os dois gêneros, mas, ao mesmo tempo, não se encaixa em nenhum. Isso faz com que Dani se identifique na categoria de “gênero não binário” e, dentro dessa descrição, possui “gênero fluido”. Por isso, Dani e outras pessoas não estão em nenhuma das “caixas” pré-estabelecidas, elas derrubaram as divisórias. Os não-binários são a junção e a separação entre os conteúdos das duas caixas.

“Têm dias que eu acordo me sentindo menino, têm dias que eu acordo me sentindo menina”. Para estudante e iluminadore de teatro Ana Quintas, 25 anos, se identificar como gênero fluido significa ter liberdade para ser o que a pessoa é. “Apesar de não gostar de me encaixar em rótulos, é poder me libertar das amarras do quadradinho binário, e entender que tá tudo bem”, afirma Ana.

Pesquisadora em psicologia, Ana Flávia Madureira explica que gênero não é sinônimo de sexo. Para ela, sexo é “uma classificação biológica”, enquanto gênero está relacionado ao contexto cultural e histórico. A profissional afirma que as identidades de gênero são construídas. “Ninguém nasce homem e ninguém nasce mulher, entre o sexo e o gênero há um longo caminho”.

Para entender mais sobre a diferença entre sexo e gênero, confira a entrevista na íntegra:

 

 

 

Aceitação

De acordo com Ana Quintas, o processo de descobrimento sobre fluidez de gênero começou a partir de um incômodo, no ano passado. “Depois de passar uma tarde tentando comprar roupas, comecei a refletir e entender que seria melhor ser como me sentia. É um processo diário de aceitação e transição”.

Em sua área profissional (teatro) e na comunidade LGBT+, Ana Quintas relata que o acolhimento foi bastante positivo. Apesar disso, Ana indica que ainda há muitas barreiras em relação ao assunto, como a linguagem, por exemplo, “Cada vez mais uso a letra E para as palavras que tem terminação O e A. Muita gente usa o X, mas o X é difícil de ser falado”.

Para a psicóloga e coordenadora do instituto de pesquisa aplicada da UnB Tânia Fontenele, a linguagem inclusiva é de extrema importância para a integração de todxs xs pessoas. “Os códigos têm que ser transformados, a sociedade pede isso. Temos que ampliar muito o nosso universo”.

Além disso, para a psicóloga, a inclusão é necessária para membros da comunidade LGBT+ já que a falta dela pode causar grande sofrimento. “Como elas estão no contrafluxo, essas pessoas precisam ser muito fortes, terem uma convicção muito grande nos seus ideais para não se deixarem abater”, afirma a pesquisadora.

Representação na mídia

A especialista em mídia Tânia Montoro observa que a representação de pessoas pertencentes ao grupo LGBT+ melhorou bastante, mas ainda tem muito a ser feito. “A mídia pega o pré-estabelecido e transforma isso em tipos, reduzindo a complexidade do que é ser uma pessoa”.

Ana Quintas percebe que atualmente há mais espaço para as pessoas LGBT+ na mídia e que as pessoas trans estão começando a serem vistas e ouvidas, mas mesmo assim as representações são binárias. “A falta da representação me afeta porque eu tenho muitas dúvidas mesmo. São coisas diárias que a gente vai sentindo e se questionando”.

Além de invisibilizar os não binários, a não representação midiática dificulta o diálogo sobre o assunto até mesmo entre quem se identifica fora dos padrões normativos. “Recorro ao Tumblr, que é o local onde se acha mais coisa a respeito, e a alguns canais no YouTube, vira e mexe assistir isso me deixa mais tranquile”, conta Ana.

Guilherme Teixeira, 20 anos, é estudante e criadore da página “Garoto Não Binário”. O diário online surgiu pela necessidade de falar sobre não binariedade. Para Guilherme, que já conseguiu mais de mil curtidas na rede social, o blog é um espaço para discussão acerca do tema e “permite que pessoas possam se identificar e perceber que não estão sozinhas”.

Confira a entrevista sobre a vivência fora dos padrões binários:

Agência de Notícias UniCEUB – O que é não binariedade pra você?
Guilherme Teixeira – A não binariedade é uma identidade de gênero que consiste em não se identificar com o binário homem e mulher. Para mim, é se identificar além dessa binaridade, é se enxergar fora desse espectro homem-mulher, é transcender os limites de gêneros que nos são impostos de maneira antagônica.

Como você se descobriu assim?
Desde criança, nunca me senti representado pelo gênero que me era imposto. Relutei muito contra esse sentimento de não pertencimento porque a sociedade nos mostra somente aquele padrão específico.

Foi conversando com meu namorado que tive meu despertar. Passei a noite pesquisando, li algumas vivências que encontrei e cheguei aos vídeos da Hugo Nasck. Chorei. Me questionei. Me identifiquei. Me encontrei. Me libertei. Sorri.

Esse foi e está sendo um processo constante de compreensão das maneiras de como experienciar meu gênero. Eu não concordo com a imposição que me foi feita. Eu não me sinto completamente representado como homem, mas também não me sinto como uma mulher.

Sou algo entre esses dois gêneros e é isso, vamos à luta.

O que você acha da representação midiática do seu grupo de gênero?
Acredito que essa representação ainda é muito baixa. Temos alguns youtubers, blogs e coletivos que dialogam sobre o assunto nas redes, mas é uma representação ainda muito invisibilizada.

Porém é possível observar algumas mudanças que colocam o tema um pouco mais em pauta.

Dentro da comunidade LGBTQ+ há a inclusão desse grupo? E visibilidade?
Em sua maioria não. No caso da não binariedade, ocorre uma desvalidação dessa identidade, com argumentos de que “isso não existe” e que “só existem dois gêneros”, além de piadas e preconceitos. Isso contribui para que a visibilidade, que já é baixa, seja ainda menor.

Porém há contextos e grupos dentro dessa comunidade que se interessam pela vivência não binária e por compreendê-la.

Você já sofreu algum preconceito por se identificar como uma pessoa não binária? Dentro da comunidade, já sofreu alguma retaliação?
Sim, dentro e fora da comunidade. A sociedade me prega ser “homem”, seguir uma masculinidade e quando eu nego isso e expresso meu gênero com traços do que é lido como feminino, eu sou muito julgado.

Além de comentários, xingamentos e olhares, ocorre uma invalidação do meu gênero, porque a sociedade não reconhece minha identidade e acredita que eu tenha que ser homem ou mulher, mas eu não sou.


Um dos lugares que mais sofri com essa retaliação foi em minha família. Meus pais não aceitam ou buscam compreender como me sinto, como me identifico e expresso meu gênero pro mundo, e isso é algo que ainda me afeta muito.

 

Por Beatriz Castilho e Isabella Cavalcante

 

Este obra está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição-SemDerivações 4.0 Internacional.

Você tem o direito de:
Compartilhar — copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato para qualquer fim, mesmo que comercial.

Atribuição — Você deve dar o crédito apropriado, prover um link para a licença e indicar se mudanças foram feitas. Você deve fazê-lo em qualquer circunstância razoável, mas de nenhuma maneira que sugira que o licenciante apoia você ou o seu uso.

SemDerivações — Se você remixar, transformar ou criar a partir do material, você não pode distribuir o material modificado.

A Agência de Notícias é um projeto de extensão do curso de Jornalismo com atuação diária de estudantes no desenvolvimento de textos, fotografias, áudio e vídeos com a supervisão de professores dos cursos de comunicação

plugins premium WordPress