Medidas em prol de crianças em abrigos são ignoradas há três anos

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Pelo menos 40 mil crianças e adolescentes em abrigos no Brasil ainda não foram beneficiadas por nove medidas determinadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) há nada menos do que três anos. A situação é grave porque o prazo de implementação era de 90 dias. Entre as medidas, estavam previstas a realização de audiências concentradas (que muitas vezes significa a definição de ter um lar) e a criação de varas específicas para tratar de assuntos da infância. Nada disso aconteceu. No Distrito Federal, por exemplo, as audiências estão suspensas desde 2016. As medidas do CNJ, pelo “Provimento n. 36” (uma determinação da Corregedoria da Justiça) têm como objetivo melhorar o atendimento às crianças e adolescentes que estão vivendo em abrigos. De acordo com informações do Conselho Nacional de Justiça são pouco mais de 40 mil, mas para a advogada Silvana Moreira, presidente nacional da comissão de adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), a quantidade de crianças e adolescentes abrigados é maior. “A realidade é bem diferente. Estima-se serem mais de 80 mil”.

ATUALIZAÇÃO – Após um ano, Vara de Infância de Brasília retoma audiências em abrigos

 

Mapa de número de Varas da Infância por Estado

 

Confira a íntegra da determinação

Estrutura deficitária

Para a advogada, o principal motivo do desencontro nos dados e na precariedade dos serviços é que no Brasil as leis não são cumpridas. A especialista cita o que acontece na cidade do Rio de Janeiro, onde atua. “Em 2014, o CNJ expediu o provimento com previsão de criação de uma vara judicial para tratar de assuntos que envolvam crianças e adolescentes em todas as localidades com 100 mil habitantes. Aqui são mais de seis milhões e não há nenhuma vara com competência exclusiva”, denuncia.

No Distrito Federal, a situação também não é diferente. Existem apenas três varas com competência exclusiva da infância e juventude para mais de três milhões de habitantes. Para se ter uma ideia, se a determinação do CNJ fosse cumprida, deveriam ser 30 (ou seja, 27 a mais do que existe hoje). As questões da infância têm, a partir desse dado e contrariando a Constituição Brasileira, menor atenção do que conflitos econômicos, já que são mais de 50 varas cíveis (além dos juizados especiais) para resolver problemas do gênero.

Os números relativos às varas da infância revelam a falta de estrutura, de pessoal, de capacitação e principalmente da lentidão da justiça, situação que o Conselheiro do CNJ, ministro Lelio Bentes reconhece. No entanto, ele afirma que outras medidas estão sendo tomadas, como a criação do Fórum Nacional da Infância e Juventude. “Essa lentidão é visível, reconhecível e não pode ser negada e foi uma das razões para a criação do Fórum (FONINJE) para buscar criar um canal mais rápido de comunicação, para se conhecer as demandas do poder judiciário e mais rápido de respostas”. Ele ressalta, entretanto, que o “mais importante” é o compromisso dos magistrados e dos tribunais.

O retrato da quantidade de varas com competência exclusiva para tratar da infância e juventude no Brasil pode ser visto no mapa abaixo. Conforme informações no site do CNJ esta é a realidade: alguns estados sequer informaram se possuem referidas varas, mesmo após a exigência contida no provimento 36/2014 determinando a criação de uma vara a cada 100 milhões de habitantes.

Descumprimentos

O Provimento 36/2014 do CNJ também determinou que as chamadas audiências concentradas são obrigatórias. Isso significa que juízes, promotores, defensores públicos e todos os envolvidos devem ir aos abrigos pessoalmente, a cada seis meses, para reavaliar a situação de todas as crianças e adolescentes submetidos à medida de acolhimento. Mas, desde 2016, este procedimento foi suspenso no DF.

Em nota, a Vara de Infância de Brasília garantiu que a suspensão é temporária, porém não indicou prazo para retomada das audiências. O órgão acrescenta que outras práticas foram implementadas. No documento, a justificativa é que era necessário ajustar o procedimento com finalidade de “definição rápida do destino de meninas e meninos acolhidos”. A nota ainda indica que o juiz responsável pela VIJ-DF “editou ato para suspender temporariamente as audiências concentradas, com vistas a implementar fluxo de trabalho mais efetivo, organizado, dinâmico, próximo e humanizado que pudesse trazer, na prática, uma resposta célere à situação das crianças e adolescentes acolhidos institucionalmente”.

De acordo com o ministro Lelio Bentes, do CNJ, o órgão deve atuar de forma mais prática. “Cabe ao CNJ não só fiscalizar e estimular o cumprimento dessas políticas, mas também desenvolver as ferramentas necessárias para que essa implementação se dê da forma correta”. Entretanto, no site do Conselho Nacional de Justiça é possível acompanhar o andamento das diversas providências determinadas pela norma prevista. A realidade é que embora o próprio CNJ exija celeridade, alguns dos processos instaurados para acompanhar e fiscalizar as medidas estão parados há um ano.

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) o tempo máximo de permanência nos abrigos é de dois (2) anos. Porém, diante do descumprimento da lei e dos prazos, o sonho de retornar para a família de origem ou de ser adotado, para mais de 80 mil crianças e adolescentes, continua em compasso de espera, e muitas vezes sequer se realiza.

Foi o que aconteceu com Débora Maria, confira aqui.

Por dentro de uma casa de acolhimento

Pelo menos 436 crianças e adolescentes estão em situação de acolhimento, afastadas das famílias biológicas no Distrito Federal, em instituições mantidas ou não pelo Estado. O governo informa que repassa recursos para oito unidades. A reportagem visitou uma das unidades que recebe valores do governo local. A Casa de Ismael, com unidades em Sobradinho e Asa Norte, tem capacidade para 70 crianças. O ano de 2016 foi fechado com 66 acolhidos.  Apesar de ter apenas seis vagas destinadas a crianças e adolescentes especiais, o abrigo conta com 13 residentes dentro desse perfil. As crianças na faixa de 12 a 15 anos são as que estão em maior número no abrigo.

Segundo o presidente da instituição, Valdemar Martins, há o repasse mensal de verba para os abrigos baseado na quantidade de acolhidos em cada casa. O Governo do Distrito Federal estabelece a quantia de R$ 2.318,71 por crianças sem necessidades especiais e R$ 3.091,62 para cada criança com necessidades especiais. O relatório do ano de 2016, feito pelo abrigo registra um total de R$ 2.357.128,94 recebidos pela Secretaria de Estado de Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos do Distrito Federal (SEDESTMIDH).

O motivo do maior número de acolhimentos é o abandono, com 11 acolhidos em 2016. Violência doméstica, trabalho infantil e ameaças são os motivos do menor número de acolhimentos, apenas dois registros em cada. O trabalho da Casa de Ismael é majoritariamente em busca da reintegração familiar. De fato, quase metade (49%) das crianças desligadas do abrigo voltaram para suas famílias. A adoção está em segundo lugar, com 23% dos desligamentos. O número de desligamentos por jovens que completaram a maioridade é 4%.  A reintegração familiar é um procedimento que se dá por meio de atendimentos à família do abrigado e o acompanhamento da situação familiar antes e depois da conclusão do processo. Em alguns casos, a criança pode voltar para o abrigo.

Apesar de haver crianças no momento da visita, não se pode interagir muito. Em meio à correria do recreio, basta olhar os sorrisos distraídos. Cada um com uma carga e uma história diferente. A casa abriga, no total, 73 crianças.  Outras vão ao local todos os dias para atividades socioeducativas. “Elas passam metade do dia aqui e a outra metade na escola”, explica recepcionista do local, Amanda Ferreira, enquanto apresenta os oito recintos que abrigam os acolhidos. Há também biblioteca e pátio para convivência das crianças. A creche, que atende as crianças de até três anos, não costuma ser aberta para visitas. Segundo ela, o tratamento com elas é mais delicado.

As crianças participam de oficinas, têm aulas de informática e participam de atividades de conscientização social. No último ano, estiveram no planetário, receberam uma visita do projeto “Detran Educativo” e, no dia da Luta Contra o Abuso Sexual, tiveram um encontro de conscientização com instituições que tratam do assunto. Essas atividades acontecem anualmente, de acordo com Valdemar Martins. No período de recesso escolar, as crianças têm atividades recreativas e socioculturais na colônia de férias realizada pelo abrigo.

Todo o desenvolvimento das crianças, sejam elas residentes ou frequentadoras, é acompanhado pela equipe da Casa. Como o abrigo também depende de doações, alguns projetos como o “Pediatra Solidário”, que segundo o relatório de atividades de 2016, prestou 22 atendimentos. O local também tem convênio com um laboratório local, que concedeu no mesmo ano 20 exames e fez um mutirão de atendimento a 60 crianças.

Por Karina Berardo e Lucas Santin

 

 

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