O estudante Kenio da França Santos tem apenas 19 anos, mas apesar da pouca idade, já sofreu com os efeitos de uma vida injusta e cruel. Morador do Sol Nascente, a maior favela da América Latina, de acordo com Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o jovem conheceu o mundo das drogas e do crime ainda na adolescência. Diante de um Estado que ele qualifica como omisso, a história de Kenio traduz a realidade brasileira: local onde o pobre não tem vez. “Eu tentei várias vezes conseguir estágio e até empregos informais, mas quando eu falava que moro no Sol Nascente, as pessoas já me olhavam de um jeito diferente. Eu saía das entrevistas com a certeza de que não ia ser aprovado”, lamenta o jovem.
A comunidade Sol Nascente surgiu em 1998 por meio de grilagem de terras. Até então era apenas um conjunto de chácaras localizadas no fim da Ceilândia. No entanto, desde 2008 o local desenvolve-se em ritmo desordenado. Hoje, a comunidade é símbolo de favelização no Distrito Federal.
Mas como conseguir espaço numa sociedade em que o cidadão já está à margem? Como ser luz num lugar onde as pessoas só veem escuridão? A comunidade Sol Nascente é conhecida pelo crescente número de tráfico de drogas e violência dos mais variados tipos. São mais de 95 mil habitantes, que dividem um perímetro de 20 km quadrados. Contudo, líderes comunitários afirmam que aproximadamente 120 mil pessoas moram no local. Nesse ambiente vivem pessoas com histórias e trajetórias diferentes, mas o fim é o mesmo: dar a volta por cima num local em que o preconceito e a discriminação imperam.
Kenio veio do Piauí em 2005 com os avós maternos, os pais e os dois irmãos. A família saiu de São Raimundo Nonato – a 576 km da capital, Teresina – para conseguir melhores condições de vida na capital do país. Alugueis caros, custo de vida elevado e desigualdade social, fizeram com que a família de Kenio se mudasse para o Sol Nascente em 2006.
O número de nordestinos que imigraram para o Distrito Federal é quase equivalente à população total. A família de Kenio engrossa as estatísticas. De acordo com a Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), 52% do total de imigrantes são da região Nordeste, sobretudo os estados da Bahia, bem como do Maranhão e do Piauí.
Ao chegar à capital, a família teve uma surpresa: eles não sabiam que a zona periférica do DF tem realidade semelhante àquela que tinham no sertão nordestino. “A gente olha Brasília pela televisão e acha que vai morar nas áreas mais nobres, perto de prédios chiques e locais de lazer. Pura ilusão”, explica a mãe de Kenio, a dona de casa Rosângela Maria dos Santos, de 37 anos.
A comunidade não possui coleta adequada de lixo, rede de esgoto e posto de saúde, e a única escola construída é destinada para alunos do pré-escolar até a quarta série do ensino fundamental. Isso fez com que Kenio saísse da escola aos 11 anos, quando estava na quinta série. A falta de oportunidades levou o jovem a um submundo que ele jamais sonhara que entraria: as drogas e o crime.
“Eu comecei fumando cigarro normal, em pouco tempo já estava viciado em maconha”, lembra o jovem. Kenio conta que a maioria dos adolescentes que se envolvem com drogas ou até mesmo com o crime, entra nesse mundo por influência de amigos. Ele estava voltando de um jogo de futebol quando um amigo mostrou o cigarro de maconha. “Eu nem sabia o que era isso direito, mas em poucos dias já estava viciado”, explica.
Ainda de acordo com a Codeplan, mais de 16 mil pessoas que moram na comunidade possuem idade de 10 a 18 anos. O número é equivalente a 18% do total de habitantes. Desses, mais 1,7 mil são analfabetos. A situação ainda é mais alarmante quando se trata de crianças de até seis anos: São mais de 6,3 mil que estão fora da escola. Os dados apontam que o problema é passado de geração em geração. A população jovem que vive no Sol Nascente não é instruída, menos de 2% possui o ensino superior completo.
Para tentar apaziguar este problema, a Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEDF) informa que há previsão de construção de duas creches, além de uma escola de ensino fundamental e outra de ensino médio. Os projetos fazem parte do Plano de Obras do Governo de Brasília em relação ao triênio 2015/2018. Contudo, de acordo com a SEDF, os projetos ainda estão em fase de elaboração.
Ceilândia, cidade onde se localiza a comunidade Sol Nascente, é a Região Administrativa que mais possui índices de evasão escolar no DF. De acordo com o IBGE, mais de 7 mil estudantes abandonaram a escola. Kenio afirma que todos os amigos tiveram a mesma atitude.
“Todos que entraram para essa vida saíram da escola. A gente ia pra bagunçar, às vezes a gente usava droga no banheiro e até no pátio. Todo ano a gente reprovava então não fazia sentido continuar ali. Esse é o pensamento de muitos”, explica o jovem.
Ombro Amigo
Era fevereiro de 2015, Kenio estava voltando de uma pelada com os amigos quando o educador social Luiz Henrique Mangabeiro ofereceu uma proposta que mudaria radicalmente a vida do jovem: entrar para um curso do Instituto Inclusão de Desenvolvimento e Promoção Social (Idepros). A instituição oferece cursos profissionalizantes gratuitos para crianças e jovens do Sol Nascente. No local, os alunos recebem capacitação profissional e orientação psicológica.
“Eu tava meio ‘lombrado’ quando o Luiz me abordou na rua. Eu tava acostumado a andar em alerta, pois mexia com drogas. Estava armado e lembro que me assustei quando ele falou comigo”, conta. “Mas para falar a verdade, eu não aguentava mais viver naquela situação. Todo viciado sabe que vai se ‘ferrar’, a maioria até tenta sair, mas ninguém consegue isso sozinho”.
A psicóloga Ana Flávia Madureira, especialista em questões sociais, acredita que há falta de incentivo para que os jovens consigam mudar a própria realidade e que o capitalismo exagerado da sociedade moderna contribui para inserção deles no crime organizado. “Numa sociedade extremamente consumista como a nossa, em que a pessoa vale pelo que ela ostenta, crianças e adolescentes são estimuladas a entrarem no crime organizado. Se a sociedade acha que o mais importante de uma pessoa é o que ela pode comprar, os jovens que não têm condições financeiros tendem a ser atraídos com a promessa de ganho rápido”, explica.
Kenio é um exemplo desse fato. “Eu queria andar com pisante de marca, com a roupa da moda, queria sair com minha namorada, mas sem trabalho eu ia conseguir isso como?”, explica o jovem, que também se tornou traficante. “Na primeira semana eu já tinha quinhentos reais no bolso. Eu ganhava R$ 20,00 por semana para ajudar meu pai na obra, o que você acha que era mais atrativo pra mim?” justifica.
A especialista afirma ainda que o preconceito é um dos responsáveis pela inserção de crianças e adolescentes no crime. “A nossa autoestima se constrói a partir da nossa relação com as pessoas. Situações que sinalizam o fracasso e a impotência tendem a criar nas pessoas uma desconfiança em relação a si mesmo”, avalia.
“Já que o governo não liga para nós, precisamos de uma pessoa que nos apoie. Eu só consegui sair dessa vida por causa disso”, explica Kenio ao falar do educador social Luiz Henrique Mangabeiro.
Luiz tem 23 anos e é voluntário na Idepros. Ele dá aulas de violão e informática. O jovem é negro, de baixa renda, morador do Sol Nascente há cinco anos, mas diferente da maioria das pessoas dessa idade, que residem na comunidade, conseguiu vaga numa instituição de ensino superior. “Sou bolsista, é claro. Faço Publicidade e Propaganda e tive que estudar muito para conseguir realizar meu sonho”, testifica.
O educador aceitou um emprego voluntário porque acredita no Sol Nascente. “Eu sou morador de lá e não sou viciado ou criminoso. As pessoas têm que abandonar esse preconceito. O pessoal do Sol Nascente tem potencial, tem talento, mas sem instrução e é impossível vencer na vida”, afirma.
Luiz encontrou Kenio no meio da rua e se sensibilizou. “Nós temos quase a mesma idade. Daí eu pensei: ‘Por que eu consigo vencer e ele não?’”. Hoje, os dois são amigos. “Ele acreditou em mim quando nem eu mesmo acreditava”, diz Kenio, que está há dois anos sem usar ou vender drogas.
Kenio voltou para a escola e conseguiu um emprego num supermercado em Ceilândia. A luta dele, hoje, é fazer com que os mesmos amigos que o levaram para o submundo do crime, conheçam a luz da vida digna e honesta. “Eu sei que é difícil, mas quando a gente encontra pessoas corretas como o Luiz, que estão dispostas a nos ajudar, a gente consegue. Eu tive recaídas, quis abandonar tudo, mas não desisti. Quero fazer pelas pessoas o que o Luiz fez por mim”, garante.
Amizade que revoluciona
Quando José Valmir dos Santos saiu de Palmeira dos Índios, no interior alagoano, e veio para o Distrito Federal, não imaginava que o destino tinha traçado uma vida de liderança e comprometimento social. Prefeito comunitário do Trecho 3 da comunidade, Valmir do Sol Nascente – assim chamado pelos moradores – é um dos ilustres personagens que ajudam o local a ser menos violento e precário.
“Não aceito tanta injustiça social causada pela ausência da atuação do governo nas comunidades que mais precisam de ação do Estado. Me tornei prefeito comunitário porque não me conformo com o abandono das sociedades mais carentes”, explica.
Assim como a família de Kenio, Valmir sonhava em conseguir melhores condições de vida. “E consegui! Consegui um bom emprego por meio de amigos e parentes”, mas explica que as diferença culturais fizeram toda a diferença. “Era tudo diferente do que eu estava acostumando. Era outro mundo.”
Ele chegou ao Sol Nascente em 2002, quando a comunidade ainda estava em processo de formação. Naquela época havia poucas casas e nenhuma infraestrutura. Os moradores não dispunham de energia elétrica ou água potável, por exemplo. Quinze anos depois, a realidade não mudou muito.
“Convivemos com várias ausências. Ausência de aprovação do Projeto de regularização o setor, ausência de escola pública, centros de saúde, pavimentação asfáltica, coleta de esgoto e águas pluviais, qualificação profissional. É um verdadeiro descaso”, critica o prefeito.
Mas apesar das dificuldades, a esperança de uma comunidade mais respeitada e estruturada renasce a cada manhã junto com o nascer do sol, que nomeia a comunidade. “Mesmo com tudo isso, trabalhamos para aproximar a sociedade dos serviços de Estado. Lutamos por mais vagas em escolas, pois hoje temos um número absurdo de crianças em idade escolar fora da escola. Mas o foco é, principalmente, na luta pela regularização do Sol Nascente, pois isso pode melhorar nossos problemas graves”, afirma.
Nas redes sociais, Valmir exibe, com orgulho, parte de algumas melhorias no setor, fruto de um trabalho árduo. Mas ele não conseguiu isso sozinho. O prefeito comunitário conta com apoio dos moradores. É o caso da professora Margarida Minervina, que cedeu a própria casa para ensinar crianças e adolescentes a fazerem atividades escolares.
Ela abriu mão do conforto da própria casa para fazer a diferença na comunidade. Fundou a Associação Despertar Sabedoria no Sol Nascente na garagem a própria casa. “Nosso objetivo é tirar os jovens das ruas e fazer com que as crianças cresçam com educação. Nós acreditamos que a educação é o caminho para solucionarmos os problemas do Sol Nascente”, explica.
Margarida e Valmir são amigos desde o início da comunidade. Enquanto ele atua para obter melhorias em relação às políticas públicas e à infraestrutura, ela leciona e orienta os adolescentes quanto aos riscos que as ruas oferecem. Margarida traça um perfil dos jovens que chegam à associação.
“A maioria tem um comportamento agressivo, não tem aconchego, não gostam de conversar, mas com o tempo eles vão interagindo e começam a se sentir pertencentes ao projeto. Eles chegam vulneráveis de atenção e afeto”, justifica.
A professora também se mostra preocupada com o crescente número de jovens envolvidos com o tráfico de drogas, bem como com demais crimes comuns da comunidade: roubos, brigas entre vizinhos e até assassinatos. “Ninguém nasce criminoso, as pessoas se tornam criminosas porque tiveram incentivo para isso. Tudo é uma questão de incentivo. É isso o que o governo precisa descobrir”, avalia.
Valmir não esconde a admiração pela professora e critica as autoridades. “No Brasil as pessoas e governos dão pouca importância a projetos como esse. Aqui, jovens são estimulados a ser alguém do bem. Eles podem sonhar que com trabalho sério e honesto é possível transformar realidade”, afirma. O líder comunitário testifica ainda que “possível viver em uma sociedade problemática e não ser um cidadão problema e sim solução”.
Perguntada sobre políticas públicas que beneficiam os jovens, a Secretaria do Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos (Sedestmidh), afirma que há o programa segurança alimentar e nutricional.
“Que já serviu 8.232 cafés da manhã no restaurante comunitário do Sol Nascente, entre os dias 23 de novembro de 2016 e 17 de abril deste ano. No café da manhã, por apenas 50 centavos, as pessoas são servidas com um pão com manteiga, uma fruta e café com leite com 100 ml de café e 200 ml de leite. Além disso, no mesmo restaurante, são servidas mais de 900 refeições por dia na hora do almoço pelo valor de R$ 1,00 para os inscritos no CadÚnico e a R$ 2,00 para o público em geral”, diz a nota oficial da secretaria.
A Sedestmidh não informou se há outros projetos voltados para a juventude. Em razão disso, a população acredita que áreas como o esporte, bem como o lazer e a saúde estão longe de conseguir investimentos.
Enquanto esse dia não chega, Margarida conta com o apoio dos moradores para manter a associação. “Vivemos de doação. Recebemos materiais escolares, alimentos para fazer lanches, mas eu vou persistir. Se o governo não dá o apoio necessário aos nossos jovens, nós estamos aqui para dizer que eles podem contar conosco”, exalta a professora.
Mudança radical
Quem diria que um homem julgado e absolvido por ser integrante de quadrilha que praticava diversos crimes em Ceilândia na década de 1990 poderia tornar-se advogado por formação e conselheiro tutelar por função? Jonas da Marcena Costa é ex-usuário de drogas. Ele roubou, traficou e escandalizou a família e os amigos com atitudes totalmente diferentes daquelas que os pais ensinaram.
“Diferente dos meus nove irmãos, eu fui desonesto e me perdi nas drogas”, conta. Ele cresceu no setor “P” Sul, um dos locais mais perigosos de Ceilândia. De infância humilde, não usa as condições financeiras para justificar as próprias atitudes. “Entrei nesse mundo porque tive a mente fraca”, avalia.
Jonas usou a fé para sair das drogas. Hoje, conselheiro tutelar atuante no Sol Nascente, acredita que a igreja é uma das instituições mais importantes na luta de conscientização de jovens e adolescentes quanto às drogas e ao crime. Mas apesar disso, respeita a fé dos outros. Na verdade o trabalho do conselheiro é em relação às famílias.
“Outro problema comum no Sol Nascente é o abuso sexual com crianças, muitas vezes praticado, infelizmente, pelos parentes. Acontece com muita frequência”, lamenta o conselheiro tutelar.
Dados da Codeplan apontam 188 casos de abusos sexuais praticados na comunidade. O número é superior ao de Regiões Administrativas bem mais populosas que o setor, como Taguatinga e Gama, que apresentaram 127 e 129 casos, respectivamente.
Para que crianças e jovens consigam romper a barreira das drogas e de violências domésticas ou até mesmo sexuais, Jonas acredita que a inclusão social é um alicerce necessário. “Isso resgata a infância das crianças e devolve esperança aos jovens. É disso que a população precisa e é por isso que eu luto”, argumenta.
No entanto, os moradores da região mantêm a esperança de que a desigualdade social, bem como o preconceito e a discriminação serão apenas uma parte do passado do país. Enquanto o governo pensar que educação é só uma forma de gasto e não de investimento, pessoas como Kenio, Margarida, Luiz e Valmir terão que contar com a própria sorte e vontade.
Por Igor Caíque (texto e fotos)