Duas vezes por semana elas têm compromisso marcado. Faça chuva ou sol, nada as tira da “festa”. Arrumam-se, escolhem a roupa com cuidado, e aqui não estão preocupadas se o vestuário vai ser igual de uma amiga, aliás, é o ideal. Combinações que trazem como plano de fundo as cores de um amor que independem do gênero. O esporte, por muitos considerado a paixão nacional, leva mulheres e homens fanáticos a se encontrarem em todos os jogos das equipes para qual torcem. Para os times de Brasília…. Torcida o ano inteiro é principalmente à distância. Na Ceilândia, cidade satélite de Brasília, torcedoras do Comando Feminino do Flamengo se encontram para assistir aos jogos. A animação toma conta do ambiente. Mas não só isso, o respeito entre homens e mulheres fica evidente nas rodas de conversa. Aqui, não são eles que ditam as regras. São elas que cuidam do dinheiro, são elas que organizam o espaço. Elas têm total autonomia para opinar, sugerir e até vetar aquilo que é sugerido pelos homens da torcida organizada. Reunidos para uma ação social, como é comum, a resenha toma às horas que antecedem a partida que está por vir. Cachorro quente, algodão doce, fliperama e um animador. Esse clima de descontração toma conta do ambiente. O tempo passa, o jogo chega. O clima vai sendo tomado. Todos se movimentam para arrumar o local. As mulheres e os homens, juntos, trabalham unidos em prol do futebol, em prol de uma paixão comum. O telão está pronto, o projetor também. Com a chegada do sinal direto do Rio de Janeiro, chegam também os instrumentos musicais. Eles tocam uns, elas tocam outros. Câmeras, alegria, felicidade e música. A cantoria não deixa ninguém escapar. Entre comemorações à momentos marcantes, vem os ritos da própria torcida. As vozes mais graves se misturam as vozes mais agudas. O ambiente que já trazia felicidade e união, fica ainda mais quente. Os tambores vão para o alto, as batucadas dão ritmo a cantoria.
Com espaço para serem ouvidas, elas não deixam a desejar. O que vimos nessa visita foi uma ação social feita para o dia das crianças. Entre os torcedores, a criançada se deliciava com sorvete, algodão doce, video-game, camas elásticas e pingue pongue. “Nós fazemos diversas ações. Essa foi apenas uma delas. Nós distribuímos sopas para a população mais carente, presentes no Natal, chocolates na páscoa e até visita aos idosos em asilos e doações de sangue. Nós temos uma união que vai além do futebol”, disseram Anna Lorena e Lourrane de Alcântara, participantes do Comando Feminino DF. Elas se juntam a outras 24 meninas na torcida. “Nós estamos sempre presente, seja de bondinho ou de bondão. Nós estamos organizando, inclusive, um encontro de todas as torcidas femininas da região Centro-Oeste”. Anna se recorda, inclusive, do encontro nacional de mulheres de arquibancada, que aconteceu no início do ano, no estádio do Pacaembú, em São Paulo. Torcidas femininas do Brasil inteiro se encontraram para trocar experiências e, claro, cultivar o amor pelo futebol. Lourrane lembra de uma história curiosa. “Nós somos a única torcida que bateu de frente em relação ao mascote. Nós não aceitamos a imposição de ter o mesmo que todas as outras torcidas e criamos o nosso. Eles respeitaram a nossa decisão e hoje nós temos o nosso próprio símbolo”, orgulha-se. Com uma TV por assinatura, elas não perdem um único jogo. “Todas pagam uma mensalidade e nós pagamos uma operadora para não perder nenhuma partida. É um investimento que a gente faz para reunir todo mundo. O espaço é nosso, mas qualquer um pode chegar. No dia da final da Copa do Brasil muitos vizinhos desceram para assistir ao jogo com a gente”, lembrou Anna.
Samantha Lima, outra integrante da torcida, foi seduzida pela paixão pelo esporte. “Eu não conhecia ninguém, só queria ver o jogo”, disse. Apesar de tímida, a boa recepção fez com que ela fosse ficando. “É uma valorização de família mesmo, o ambiente é tranquilo,a gente traz os filhos, se diverte. Sempre há a proteção dos meninos, o respeito. Quando a gente entra na torcida, não queremos mais sair”. O monitor da torcida confirma o direito que foi clamado pelas torcedoras. “Elas são independentes, batem de frente com a gente. Elas têm sim o nosso respeito”, disse Daniel Del, monitor da torcida Raça Rubro Negra Brasília. E ele ainda deixa claro. “O fanatismo, a organização delas chega a ser maior do que a nossa. Aqui todos nós estamos reunidos por um bem maior, temos a igualdade de todos os gêneros, sejam mulheres, sejam homossexuais”, disse.
Vencendo o preconceito
Representando a torcida Ira Jovem do Gama, Allyne Freitas seguiu os passos do pai e do irmão e começou a acompanhar o futebol. Desde então, ela segue seu time do coração. “A primeira vez que eu pisei no estádio foi em 2012 e, desde então, o amor só foi aumentando”. Também na torcida organizada do alviverde, Karlane Gomes foi quem passou a levar os familiares ao estádio. “Pelo que eu me lembro, a primeira vez que eu pisei no estádio foi aos 9 anos. Quando adolescente, eu empolgava todos os encontros da família com o time. Vem passando de geração em geração”, lembra. A história de ambas começou com o brilho dos olhos. “Eu lembro que eu vim ao estádio com mais três amigos e eu vi a torcida uniformizada cantando, gritando, animando todo mundo. Eu fiquei encantada com tudo isso. Um deles era monitor de bonde, ficava a frente de uma ala e eu entrei na torcida por ele”, conta Allyne. Karlane, por sua vez, já era próxima de membros, o que facilitou sua entrada no grupo. “Foi com convívio com os integrantes. Eu ficava no meio na arquibancada e, cara, a energia é inexplicável da torcida. Isso fez com que eu fosse começando a gostar e resolvi entrar. O presidente que me convidou”, comenta.
Apesar do amor e da convivência com os líderes da torcida, o que ouvimos continua a ser aquele velho tabu: o preconceito. “No começo é um pouco complicado porque muitas pessoas vão te olhar meio torto pelo fato de você ser mulher. Rola sempre um preconceito da sociedade, quanto da própria torcida. A família também olha com um certo preconceito mas a gente vai tentando se superar e deixar isso de lado”, disse.
“Sempre olham e falam que a mulher está no lugar errado, que a mulher não tem que estar aqui”, Allyne Freitas.
A torcida organizada do periquito conta com um bonde feminino, que é coordenado por Allyne Freitas. “Ele existe desde 2004. Eu entrei em 2012 e sempre tive o sonho de comandar esse bonde. Em 2014 eu passei a frente. O nosso intuito é conseguir um espaço na torcida e fazer com que outras mulheres também tenham a visão que a gente tem sobre o futebol e sobre a torcida”. Ela diz que ainda há muito preconceito tanto da sociedade, quanto das próprias pessoas que frequentam o estádio. “Muitas pessoas olham com espanto para o lado que a gente senta e a gente tenta mostrar que torcida organizada não é só briga, só porrada, que a gente tem uma vida social, trabalha, estuda, são pais e mães de família”, disse ela. Karlane concorda com a opinião da colega. “É claro que na torcida tem os bagunceiros, mas isso tem em qualquer outro lugar também. Aqui na torcida a gente tem advogados, policiais. Nós queremos mesmo é quebrar esse tabu que ainda tem contra a torcida organizada”, pontuou.
“As mulheres não entram na torcida para vir atrás de homem como muitas pessoas falam, o nosso intuito mesmo é torcer e mostrar nosso amor pelo gama”, Allyne Freitas.
Segundo elas, a convivência com os homens, hoje, é muito boa. Mas nem sempre foi assim. “Hoje em dia há um respeito muito grande. No começo, há uns 3, 4 anos atrás era bem complicado, eu acho que tinha uns 98% da torcida era contra as mulheres, que era contra o bonde feminino. A gente vem lutando contra todo mundo, querendo o espaço porque as oportunidades são poucas”, relata Allyne. Karlane acena com a cabeça, concordando com o que está ouvindo. “É a gente indo e muitas pessoas vindo contra, mas a gente sempre vai remando contra a maré. Hoje em dia a gente se enquadra, a gente participa dos bondes, eles respeitam a gente, ação social a gente faz junto com os outros integrantes. Tem sempre duas, três mulheres por bonde”.
O monitor sempre apoiou as mulheres, assim como o vices. Ele acata as decisões, as ouve. Assim, elas estão visando lugares em outros segmentos da torcida. “Eles sempre protegem o máximo nós mulheres. Nós cantamos sempre, com palmas, cantando. Vai começar um projeto no ano que vem em que três ou quatro meninas vão entrar na bateria”, disseram.
A influência familiar
O amor pelo clube também é o que move três torcedoras da torcida organizada Força Azul do Luziânia. A motivação de Tereza Raquel foi a beleza da torcida. Para ela, a torcida é muito bonita. “A torcida é muito boa. A FAL, para mim, é como se fosse uma família mesmo”, disse. Ingrid Tauane teve a influência do irmão, enquanto Sheila Aparecida resolveu acompanhar o marido nos jogos. Elas fazem parte da “minoria” de mulheres que fazem parte da torcida organizada.
“Ali na hora não tem diferença. Todo mundo está para torcer, o amor ali é o Luziânia e não interessa se é homem, se é mulher, está todo mundo junto”, Ingrid Tauane
Segundo elas, o número não deve nem chegar a 20. E isso se deve muito mais ao preconceito das próprias mulheres do que o machismo praticado pelos homens. “Assim, as mulheres tinham que ser mais unidas, mas não, elas, em algumas ocasiões, são mais machistas do que os próprios homens”, disseram. As três reagem de maneiras semelhantes. Tereza e Ingrid buscam mostrar que elas estão ali para torcer e não para olhar as coxas dos homens. Já Sheila Aparecida ignora. “Eu só me acho melhor do que elas. Eu estou fazendo o que eu gosto, estou pulando, to gritando e nem ligo para elas, que estão ali quietinhas com vontade de fazer, mas não fazem”, desabafou. E ela que também se sente desconfortável com outras práticas de machismo. “Não tem só o preconceito, mas também a falta de respeito. Às vezes você está ali no campo e eles acham que você não está ali para torcer, mas para se expor, para ficar querendo aparecer e é aí que aparecem os meninos para defender a gente não só do preconceito mas também da falta de respeito mesmo dos que estão de fora”.
“Estamos sempre gritando, sempre chorando, emocionando, torcendo e sempre unidas, como uma família mesmo. Nós passamos o final de semana unido, nós vamos para Unaí, Paracatu, sempre animada, apoiando e torcendo”, Sheila Aparecida
Para Sheila, o amor pelo Luziânia iguala todos os torcedores. “A gente torce igual aos homens mesmo. Eu estou ali, então eu grito, eu xingo, eu brigo, eu vou em cima, se eles vão para brigar eu vou também. E meu marido fica me puxando para eu não ir, a gente puxa a torcida, eles calam e eu puxo, a gente vai lá, a gente torce muito”, falou.
“A gente é mulher mas a gente está ali para defender o nosso time, seja do jeito que for, lá na hora só tem igualdade”, Tereza Raquel
Na luta, tudo vem a favor
Hapoliana Nascimento começou a torcer para o Brasiliense logo cedo, mas a entrada na torcida se deu alguns anos depois. “O meu pai me levou para ver o Brasiliense quando eu tinha 6 anos de idade. O jacaré amarelo me chamou atenção e eu sai dali apaixonada. 6 ano depois, eu me lembro de um jogo que eu fiquei encantada, principalmente, com a bateria da facção”, conta. O amor a levou a entrar na torcida no próximo jogo. Ela se encantou com o conjunto da obra e ficou. Nessa história, nem tudo foi fácil assim. “Como eu tinha 12 anos, a aceitação foi muito complicada. Eu cansei de fugir da igreja para assistir aos jogos, viajei escondida com a torcida para o Rio de Janeiro. Eu bati o pé, disse que eu ia ser de torcida organizada, meu pai passou dois anos sem falar comigo, a minha família ficou meio assim”, recordou.
Hapoliana não levava desaforo para casa. Apaixonada, ela insistiu até ganhar o devido respeito. “Hoje, eu tenho 100% de aprovação, mas eu lutei muito para que isso acontecesse. Eu bati de frente com muitos presidentes, com líderes, com homem que falava que eu não ia para caravana porque eu era mulher”, lembra ela.
“Eu era mulher mas que eu mais apaixonada que muita gente que estava indo e eu fui. Eu batia o pé e eu ia mesmo e assim, não foi fácil a aceitação”, Hapoliana Nascimento.
Segundo ela, foi preciso mostrar, a cada dia, o motivo que ela estava na torcida. “Cada ano era um degrau que eu subia e hoje eles sabem porque que estou ali, sabem do meu respeito, do meu amor pela torcida e pelo time, de tudo o que eu faço. Eu consegui impor esse respeito, eu tirei essa incógnita de que estádio não é lugar para mulher, de que mulher em torcida organizada só presta para atrapalhar”, se orgulha.
Ela não aceitava os termos impostos às mulheres e, por isso, lutou por direitos. “Eu lutei por revolução, eu fiz revolução! Mulher tinha que ter espaço, tinha que ter respeito, que mulher era o charme das arquibancadas. É a mulher que corta papel, é a mulher que enche balão, é a mulher que decora tudo em festa, é a mulher que faz comida, então o que seria da organizada sem a mulher?”, contou.
E essa revolução deu resultado, mas, segundo ela, ainda falta o apoio midiático. “Hoje em dia eu vejo uma forma de desconstrução do preconceito, hoje em dia já tem encontros nacionais, que é de mulheres das torcidas organizadas. Apesar disso, muitas pessoas têm medo porque ninguém mostra o lado social da torcida, só as confusões. Isso faz com que algumas pessoas fiquem com medo de entrar na torcida e apanhar, apanhar da polícia”.
“A mulher não tinha roupa, tinha que usar farda masculina, hoje em dia já é criada roupa para comando feminino, já é criada bandeira. Eu causei uma revolução na minha torcida porque eu achava ridículo ficar usando roupa de homem, que mulher tinha que ter o seu símbolo, a sua identidade”, Hapoliana Nascimento
A cultura do esporte
Doutor em sociologia do esporte, Luiz Otávio, acredita que a baixa participação das mulheres se apega em raízes históricas. “A participação da mulher no futebol ainda muito precária. É um esporte tradicionalmente masculino. Ainda não tem essa cultura da participação feminina, a sociedade ainda hoje é muito preconceituosa. Ainda tem muitos comentários muito maldosos, muito machista com relação ao comentário de mulher”, disse. Segundo ele, essa ausência da mulher vem do século passado, mas vem sofrendo transformações. “As mulheres não têm baixa participação só no futebol, é do esporte em geral. Inclusive, as mulheres nem participavam das primeiras olimpíadas e o número de mulheres sempre foi menor que a dos homens. Inclusive não é só na participação como atleta. Agora é um movimento que tem se alterado nas últimas décadas”, disse, levando em consideração que “as mulheres estão conquistando o espaço, estão aumentando o número e a presença delas”. O argumento que caia por terra, segundo ele, eram as questões biológicas genéticas. “Falavam que faria mal para a saúde das mulheres, que fazia mal para a gravidez. Essa cultura foi muito disseminada durante um tempo de que mulher é sexo frágil que a mulher não tem a força do homem e que, por isso, o desempenho dela é menor no esporte”. Otávio ainda relata que o crescimento das mulheres foi tanto que elas, inclusive, disputam recordes com muitas proximidades com os recordes masculinos.
A questão da mulher no esporte traz muito mais do que uma quebra de paradigmas e de preconceitos. “A presença delas é muito importante porque você está falando de igualdade de direito, de cidadania, livre arbítrio. Se é uma decisão da mulher querer jogar futebol porque o preconceito, porque a discriminação, é uma escolha dela, mulher, e não tem nada biológico que impeça de jogar”. A mulher busca entrar no futebol como um todo. Quanto maior a presença das mulheres em campo, nas cabines, nas comissões técnicas, mais elas vão estar na torcida. “A medida que isso for se transformando em um processo cultural mais amplo, que isso for se disseminando, com certeza elas vão fazer parte da torcida, vão começar a frequentar mais o estádio. A presença da mulher já foi menor, mas, com certeza, nessas últimas décadas, há de se destacar o desenvolvimento e o empoderamento das mulheres nesse sentido”.
Por Gabriel Lima, da Revista Esquina