“Este programa é uma obra de ficção inspirada livremente em fatos reais. Personagens, situações e outros elementos foram adaptados para efeito dramático”. É essa mensagem que aparece no início de cada episódio da série brasileira “O mecanismo”, de José Padilha, disponível na plataforma de streaming Netflix. Padilha foi diretos de obras como a série “Narcos” e os filmes “Tropa de Elite” 1 e 2. A série recria na ficção os primeiros passos da Operação Lava Jato, que investiga esquemas de corrupção, lavagem e desvio de dinheiro envolvendo a Petrobras e grandes empreiteiras e políticos do país.
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A atração foi motivo de polêmica ao ser acusada de desvirtuar acontecimentos reais do cenário político brasileiro. Uma discussão é que a série altera os nomes das pessoas e instituições envolvidas no esquema e o contexto em que estão inseridas. Personagens como a presidente Janete e o ex-presidente Higino fariam alusão aos ex-mandatários Dilma e Lula. Os realizadores alegaram que se trata de uma obra de ficção sem relação direta com os fatos divulgados. Mas integrantes do PT, e mesmo do Ministério Público e da Polícia Federal reclamaram das “fantasias”. O partido anunciou que processará a Netflix. Assinantes do serviço insatisfeitos chegaram a propor um boicote, não só a produção, mas também à plataforma.
Confira o trailer da série polêmica
Abordagem precoce
Para a professora Carolina Assunção, pesquisadora da área de audiovisual, faltou sensibilidade na escolha do momento do lançamento da série. “Os processos de produção do imaginário passam pelo inconsciente então, às vezes, a gente incorpora elementos da ficção que influenciam de algum modo a nossa forma de pensar. Por isso pode-se não ter sido uma boa ideia lançar a série agora”. Para a pesquisadora, seria melhor uma abordagem em um outro momento, quando a operação já tivesse sido concluída ou que não fosse um ano eleitoral. Isso porque o material pode confundir a opinião pública. “Acaba tirando um pouco a nossa atenção da realidade, dificultando um pouco o nosso olhar sobre a nossa realidade que já está confusa e vem um material que confunde mais ainda”.
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O professor de comunicação Alexandre Kieling crê que há uma euforia com o tema, em tempos de polarização e extremismo. “Qualquer tema, qualquer ato, qualquer banalidade do cotidiano nos coloca em polaridades de compreensão, de sensações, de sentimentos e de processamento racional. Então qualquer temática é sensível. Qualquer discurso é ouvido com altas cargas de intencionalidades. Num ano eleitoral essa percepção fica superlativa”.
Polêmica com a mão do autor
A professora Carolina Assunção também enfatiza que sentiu falta de um pronunciamento do produtor diante da polêmica gerada. “Uma coisa que eu reparei no trabalho de José Padilha é um posicionamento de ceticismo. Ele é cético com relação a um estado de absoluta degradação em que a gente vive, das instituições, da política, dos valores e de que é isso que faz com que a sociedade brasileira não funcione”. A pesquisadora entende que o argumento dele é da desconfiança de tudo. “Mas ele, como cineasta e comunicador, poderia se posicionar sobre a razão dessa escolha e abordagem. Nesse momento da história, com relação a cada um dos produtos que ele oferece, por que isso inquieta, ele não está fazendo produções sobre outros assuntos”.
Alexandre Kieling compreende que exista a polêmica em relação à frase “estancar a sangria”, que na série é dita pelo personagem que representa Lula e que, conforme foi noticiado, foi, na verdade, utilizada pelo senador Romero Jucá. “Primeiro precisamos entender que uma obra de ficção é livre. O processo criativo é um exercício autoral. Ao público cabe degustar ou refutar. Jamais desqualificar o autor a partir de uma compreensão de audiência. No caso específico, não há nenhuma obrigação de uma narrativa ficcional ser ancorada em autenticidade da verdade como se imagina deve haver na narrativa documental. A ficção se ampara no regime de crença da verossimilhança – semelhança, mas não necessariamente a realidade. Então não cabe condenar a narrativa pelo uso deste ou daquele personagem para determinado diálogo”. Para ele, cabe discutir a produção de sentido possível e a intencionalidade discursiva, se é pertinente ou não. “O fato é que se trata de uma discussão mais aguda sobre as compreensões do que da obra em si”.
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O que diz a lei
Para o professor de direito Ricardo Gueiros, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), é admissível que haja processo pelos representados na série, mas que não há garantia de uma posição do tribunal que agrade os insatisfeitos. “Qualquer um pode processar outrem. Isso não significa que sua ação será amparada à luz da lei, ou seja, se se obterá êxito. Várias séries já realizaram situações semelhantes e não houve sanção judicial. Mas, nessa questão em particular, há uma acusação velada, sob o argumento de que houve mudança de normas, datas, romantização etc. Não se pode, no entanto, ter razoável previsão do resultado”.
O jurista considera inoportuno que um produto audiovisual acuse cidadãos que não foram julgados de forma definitiva e com investigação em andamento. “Estamos, precisamente, em um momento em que o STF discute a questão da presunção da inocência, não é, no mínimo, oportuno (e que pode ser atentatório, ao menos, à moral). O STF está apreciando a presunção de inocência em situação em que o réu foi condenado em 2ª instância”. Para ele, no caso da série, o ponto se torna ainda mais problemático, pois está se remetendo a algumas pessoas que nem sequer foram condenadas em 1º grau, havendo tão somente uma investigação. “Além disso, o processo está em curso, podendo, ainda, haver vários desdobramentos. A meu ver, é necessário aguardar-se o trânsito em julgado para uma medida como essa. E, assim mesmo, em minha opinião, mesmo o trânsito em julgado não traz essa segurança para contar-se uma história com um tom de veracidade. A história, sim, aliado a um tempo de reflexão pela sociedade, pode trazer fundamento para que o fato seja objeto de uma série/filme. É diferente de um mero documentário em que, teoricamente, tende a ter certa imparcialidade”.
Por Patrícia Martins e Davi Lucas
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira