Antes de ser Distrito Federal, o território que abrigou o projeto mais ambicioso de Juscelino Kubistchek, fruto da política dos “cinquenta anos em cinco”- quando o então presidente do Brasil estabeleceu um plano de ação desenvolvimentista – era usado por indígenas como rota de passagem entre diferentes tribos e etnias. Enquanto ainda não era Brasília, a região no centro do país foi palco de rituais temporários e após a construção da nova capital virou cenário de disputas territoriais intensas.
Em seus estudos, o antropólogo Paulo Bertrand já apontava para a presença do indígena no território há pelo menos 12 mil anos, segundo aponta a estudiosa da área Thaís Nogueira Brayner. “Além dos Acroás, Caiapós, Carajás e povos de origem tupi, dos quais eram inimigos, também tem-se registro de passagens de outras etnias por essas terras”.
De nomes de frutas e vegetações típicas que herdaram as nomenclaturas indígenas a práticas e costumes tradicionais dos povos, Goiás e o “quadrado goiano” que, hoje, recebe o nome de Distrito Federal, sofreram, de alguma forma, influência da miscigenação cultural. “Desde essa época, como eram fazendas de particulares, a presença física dos indígenas já havia sido bastante modificada. Porém, a região continuou local de passagem e de caça de grupos Macro-jê e seus subgrupos. O próprio estado do Goiás é assim nomeado devido aos índios goyás da região”, destaca a estudiosa.
No entanto, Thaís defende que “em nenhum processo de construção de cidades e desenvolvimento urbano é levado em consideração a presença indígena”. Criada e projetada pelos arquitetos Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, a capital das oportunidades reproduziu a herança deixada pelos colonizadores portugueses, pois, como explicam os estudiosos, o Distrito Federal negou a causa indígena, assim como aqueles que aqui pisaram em 1500.
Para a antropóloga, o processo desenvolvimentista de Juscelino promoveu um “apagamento do que havia aqui antes, seja da presença indígena na época da construção, seja no passado mais remoto”. “Para começar o novo, tinha que ser começado do zero, com intenções claras sobre o que seria a cidade e ao que e a quem ela serviria”.
“Eles (índios) sempre foram vistos pelos governos como entraves ao desenvolvimento, uma ligação com um passado remoto, que, na maioria dos casos, não queriam considerar, muito menos lembrar, preservar, e menos ainda celebrar”
Santuário dos Pajés
Aos indígenas restou brigar pelo pouco espaço que lhes sobrou. Cada vez mais “excluídos e afastados” os índios resistem ao que chamam de “investidas do progresso” como no caso do Santuário dos Pajés, alvo de inúmeras disputas territoriais e até mesmos judiciais entre o Governo do Distrito Federal, construtoras e as etnias que alegam serem donas do território sagrado, localizado no Noroeste — bairro nobre de Brasília.
“O lugar era sagrado, rota e local de reza e culto dos índios que passavam pela região desde muito tempo. Os empresários e o GDF trabalhavam lado a lado para conseguirem as licenças necessárias e para retirarem os índios, dando continuidade aos projetos de construção de um novo bairro na cidade”, explica a antropóloga.
Para o Ministério Público Federal (MPF), a confusão é resultado da “omissão e negligência da Funai a respeito da regularização dessas terras indígenas, mesmo diante de indícios suficientes a dar suporte ao procedimento de identificação e demarcação da área”.
No dia 13 de outubro de 2017, o órgão expediu sentença em que assegura o direito das etnias a reivindicarem posse de parte do território do Noroeste. “Diante do exposto, o Ministério Público Federal manifestar-se pelo conhecimento e provimento da apelação do MPF, bem como conhecimento e desprovimento das apelações da Terracap, da Funai, do Ibram e do DF”, determinou o Procurador Geral da República, Silvio Roberto Oliveira Amorim Júnior na sentença.
Ao Instituto Brasília Ambiental (Ibram), o MPF instituiu a obrigação de “impedir a realização de quaisquer obras que venham impactar a área”. Já a Terracap “deve impedir ações que causem alteração redução, impacto, transferência ou restrição do modo de ocupação”.
Ao povo, a resistência
Itayna Pires da Silva, de 26 anos, é uma das engajadas na luta pelo território que diz pertencer a seu povo. Segundo ela, no Santuário, seis povos dividem harmonicamente os 35 hectares que lhe restaram. Entre eles, as comunidades Guajajara, Tuxá, Funil-ô, Bororo, Macuxi e Kariri-Xocó, da qual faz parte.
Natural de Alagoas, a Kariri-Xocó chegou em Brasília quando o local já havia se tornado capital. O povo de raízes maranhenses por aqui se instalou e ficou até os dias de hoje. “Minha avó veio pra cá mais jovem, em 1988. Estava doente e precisava de um tratamento de saúde que só conseguiria aqui. No Santuário, foi acolhida e decidiu ficar, mais tarde trouxe minha mãe que me trouxe também”.
Segundo ela, o “progresso” tem provocado impactos ambientais na região. “O lençol freático que usávamos foi tomado e é fonte de distribuição para os edifícios, com isso falta água. As condições climáticas já foram afetadas também. O que as pessoas não entendem, talvez pelo pensamento egocêntrico e egoísta delas, é que nós lutamos pela preservação da terra. Não queremos o espaço para plantarmos e vivermos, queremos para preservá-lo”.
A estudiosa Thaís Nogueira, por sua vez, defende que no caso do Santuário dos Pajés o estilo de vida adotado “não é totalmente urbano nem totalmente do campo, pois ao mesmo tempo em que cultivam víveres e criam animais, também consomem alimentos comprados. A produção interna, portanto, não consegue suprir totalmente suas necessidades”.
Mas por que sair do berço de sua comunidade e vir morar na capital do país? “Pelas oportunidades”, responde Itayna. Assim como ela, outros quatro integrantes da Kariri-Xocó também vieram para o Distrito Federal com um mesmo objetivo: “estudar e se formar para voltarmos à base”. “Quando saímos da comunidade para vir pra cá estudar, temos a obrigação de pagar uma dívida com eles. É uma oportunidade que muitos não terão”.
É que a índia escolheu a Universidade de Brasília (UnB) como a instituição capaz de lhe formar enfermeira. Ela explica sua escolha com uma simples e direta frase: “faço para ajudar meu povo, para trazer conhecimento à minha comunidade”.
“Para nós (Kariri-Xocós), o importante é o bem da comunidade. Se antes lutávamos com arco e flecha, hoje, lutamos com as leis, com o conhecimento. Nós somos a esperança de nosso povo. Não é por mim, mas por uma nação inteira”.
![](http://www.agenciadenoticias.uniceub.br/wp-content/uploads/2019/02/WhatsApp-Image-2018-11-07-at-08.36.38-1024x768.jpeg)
Primeira índia antropóloga
Cinquenta e oito anos depois de sua inauguração, o DF parece, aos poucos, reforçar o título de “rota de passagem de povos indígenas”. Em 2018, de acordo com levantamento da UnB, assim como Itayna, outros 101 indígenas também recorreram a capital como local capaz de lhes ceder sua primeira graduação. A baixa presença indígena, no entanto, ainda cria histórias como a de Braulina Aurora, 34, que no mês de setembro tornou-se a primeira índia formada em antropologia pela instituição.
Natural da comunidade Baniwa de Tucumã-içana, que vive às margens do Rio Negro, no Amazonas, Braulina conta ao Esquina que sua motivação não é muito diferente do pensamento de coletividade apontado por Itayna. Formou-se antropóloga para poder “militar pela causa dos povos indígenas com apoio técnico, com conhecimento”.
Em 2013, prestou o vestibular específico, deixou os filhos na terra natal e partiu para a capital “em busca do sonho”. “Vim só. Temos que acreditar naquilo que queremos e foi o que eu fiz. Mais tarde, quando já estava adaptada, trouxe meus filhos”.
No entanto, quando chegam no DF, os migrantes encontram dificuldades parecidas. O alto custo de vida, baixo incentivo e auxílio aos povos indígenas, o preconceito e os estereótipos se mostram entraves na consolidação do índio como cidadão brasiliense.
“Todo dia uma luta para ganhar espaço. É isso que enfrentamos. Sempre tentando desconstruir essa imagem estereotipada que associa a figura do índio ao pejorativo. Para muitos, índio com celular é piada. Não existe apoio, ainda mais para as mulheres indígenas”, explica.
Atualmente, Braulina pretende emendar os estudos em um mestrado, no qual já foi aprovada para ingressar. Além de aluna, é presidente da associação dos acadêmicos indígenas da UnB.
“Nem parece índia”
Se para aqueles que possuem as características e os traços herdados dos antepassados o preconceito é rotineiro, para Jheniiffer Benedito, 25, que, segundo ela “nem parece índia”, as dificuldades são as mesmas. “Não tenho características típicas. Me tratam bem até descobrirem que sou índia. Negam minha identidade a partir do julgamento deles, como se todo índio tivesse que ter a pele parda e o cabelo liso”.
Ela é mais uma que veio ao DF em busca de oportunidades. Chegou em março deste ano, veio estudar saúde coletiva. A motivação? a mesma. “O estudante indígena que não sai pensando em estudar pela causa indígena, logo muda de ideia quando observa o quão desassistido somos”.
Decente de um dos troncos da cultura Tupi, Jheniffer diz com muito orgulho: “sou tupinikim”. Ela veio do Espírito Santo com mais quatro outros estudantes da comunidade. Aqui, se viu em um dilema: como lidar com a falta de estrutura. “Você vem de uma aldeia e tem que imediatamente lidar com burocracia e um custo de vida elevado. Não consigo trabalhar para pagar aluguel, pois tenho que estudar, mas não recebo auxílio nenhum. É muito difícil”, reclama a jovem. Assim como os outros, pretende “voltar para a casa”. Ela conta “até moraria em outro lugar, mas sempre para trabalhar em prol dos povos indígenas”.
Por Victor Fuzeira
Matéria publicada em dezembro de 2018, na Revista Esquina.