Rir para não chorar. Ao contrário das tragédias gregas em que as divisões de tragédia e comédia eram bem divididas, a modernidade adotou a estratégia de impactar o público mesclando esse contraste de ideias (humor e horror). Nesta mesma lógica, o espetáculo “Prometea, Abutres, Carcaças e Carniças”, do grupo Desvio de Brasília, apresenta uma trama forte com humor ácido e eficaz. Em entrevista como diretor e um dos atores, eles afirmam que não existe tragédia sem comédia. “É um contraponto satírico, sobretudo sobre essa coisa ancestral, do mal”, disse o diretor Hugo Rodas.
Escrita por Gil Roberto, a trama é baseada no mito grego de Prometeu e foca em dois abutres amorais que esperam o fim da humanidade enquanto observam jogos de poder e atos políticos deixarem outras carniças para sua refeição. No mito, Prometheus era um titã que foi condenado por Zeus a passar a eternidade amarrado tendo uma águia comendo seu fígado todo dia. Após seu fígado se regenerar, tudo se repete. “A ideia do abutre é por causa da sombra. A águia é um animal mais imponente, bonito, não lida com carniça. É o abutre esse carniceiro da vida”, afirmou Gil Roberto. “O carniceiro não tem o mesmo nível de uma águia. Se tivesse, seria menos perigoso”, complementa o diretor Hugo Rodas.
A peça começa de forma séria e a tensão é quebrada a partir do momento em que os personagens começam a falar. O diálogo é divertido ao mesmo tempo que passivo agressivo, entretanto, ao final das falas somos levados de volta ao ponto principal. Rimos para depois recebermos um soco. Especialmente quando nos é mostrada as duas performances musicais arrepiantes do espetáculo.
A “ética abútrica”, no sentido literal da limpeza e da digestão em relação à podridão deixada do que já passou, é fortemente reforçada ao longo do espetáculo. Mas o foco é a relação da carniça com as atitudes ligadas a modelos autoritários. Com o fim da primeira parte, os atores recitam um discurso histórico desde Hitler até a atualidade. Enquanto isso, imagens de perseguição – que vão desde filmes como “A Escadaria de Odessa” até manifestações brasileiras – e outras relacionadas ao contexto passam em um telão ao fundo. Essa junção deixa o espectador sem saber onde prestar atenção, dando uma sensação de agitação e tensão. Rodas afirma “Primeiro fizemos o trabalho em uma relação direta com o fascismo e o nascimento dele na arte e depois o nosso processo democrático” e depois é complementado por Gil “[…] Costura historicamente esse movimento fascista. É uma peça antropofágica”.
Apesar da atemporalidade implícita no roteiro, não é o mais importante a ser levado em consideração. Os entrevistados afirmaram que “Para um elemento político não ficar tão marcado, senão ele fica panfletário, ele precisa ter um ‘quê’ lúcido de atemporalidade, senão ele marca um tempo” e que o objetivo não era marcar do tempo, mas sim falar do tempo.
Com movimentos bem coreografados, as artísticas e sincronizadas performances de Gil Roberto e Micheli Santini dão vida a personagens com grande peso dramático. Sempre com foco no papel dos abutres na sociedade e a carniça, e como surge essa carniça. A importância desses animais é questionada e sua importância para o ecossistema reforçada. Com o intuito de questionar sobre o poder, a trama procura reforçar a necessidade do ato de imaginar para os processos político-sociais da atualidade.
Hugo Rodas em seu outro espetáculo “Adubo – Ou a Sutil Arte de Escoar pelo Ralo” também traz questões ligadas à morte. Entretanto, em Prometea ela não é o ponto principal, e sim consequência dos erros e desastres políticos ao mesmo tempo que uma ponte direta com a carniça.
A música é tocada na hora, dando maior sensação de proximidade dos atores com o público. O projeto do espetáculo foi aprovado em pelo FAC de 2017. Tem indicação de 16 anos e foi sucesso na 20º edição do Festival Internacional de Brasília, Cena Contemporânea (2019).
Por Gabriela Gallo
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira