Acordei 10h42 da manhã, sem despertador. É engraçado não ter horário para acordar. Tenho lembrado muito mais dos meus sonhos. Levantei, escovei os dentes e fui para a cozinha. Abri a geladeira e já não tinha mais ovos. Troquei de roupa, coloquei meu casaco.
Olhei pela varanda para a rua deserta. Já faz mais de um mês que a Calle Estafeta —uma das ruas mais agitadas de Pamplona, famosa pelo Juevintxo, pelos pintxos, pelos vinhos e pelos bares– está completamente deserta. Com exceção de uma padaria que ainda está funcionando e vez ou outra forma uma fila na porta, com distanciamento de 2 metros entre os fregueses que esperam as baguetes. Criei coragem e desci.
Não sei o porquê, mas sair de casa gera um misto de sentimentos. Um pouco de tensão, um pouco de tristeza, um pouco de nostalgia por tudo que vivi e por todas as coisas que poderia ter vivido e sei que não viverei. Certo alívio também, por respirar ar fresco e poder ver um pouco do mundo exterior.
Ando pela ruazinha e decido passar pela Plaza del Castillo, quero ver como está. Eu poderia ir ao mercado sem passar por lá. Mas esse lugar tem meu coração e decido fazer o caminho mais longo, ainda que tenha medo de ser parada pela polícia. Seguro minha ecobag para usar como prova de que estou apenas indo ao mercado, caso seja interrogada.
A praça vazia me parece errada. Olho para o coreto central e para os bancos vazios. Olho para onde ficava o sanfoneiro todos os dias, tocando músicas que faziam as crianças dançarem e eram trilha sonora para os velhinhos que liam seus jornais, à moda antiga. Agora só vejo pombos. Tomaram conta da praça. Presto atenção no caminhar e no voar baixo das criaturas que agora são as únicas habitantes dessa cidade fantasma. Procuram por migalhas de pão, como eram acostumados a fazer, mas não encontram nenhum resquício.
Olho para os restaurantes e para as varandas, em outro momento sempre cheias. Nunca fui aos restaurantes da Plaza del Castillo. Sempre observava os espanhóis beliscando aperitivos, tomando vinhos, conversando animadamente nas áreas externas. Toda vez que passava por lá me prometia que voltaria e experimentaria a paella. Não sei mais se poderei experimentar. Gostaria de não ter adiado esses planos. Olho as cadeiras vazias, as portas cerradas e os anúncios de fechamento colados nos toldos. “Por tempo indeterminado”, dizem os cartazes.
Sigo minha caminhada. Cruzo com o primeiro ser humano na rua. Mais parece um astronauta, totalmente encoberto por camadas e camadas de proteção. Veste máscara, luvas, óculos com grandes lentes de plástico que cobrem metade do rosto, capuz e uma capa. Passeia com um cachorro de médio porte que desesperadamente procura por atenção. Ele me fareja e tenta correr em minha direção. Deve sentir falta das interações que tinha nos passeios antes de tudo isso. O astronauta rapidamente puxa a coleira e se afasta até o outro lado da rua. Continuo caminhando e vejo os soldados e uma viatura policial.
Me sinto criminosa por ter escolhido o caminho 5 minutos mais longo até o mercado e fico com medo. Preparo-me mentalmente para algum possível interrogatório. “Eles não sabem onde eu moro, não têm como saber do meu crime”, penso. Meus batimentos estão acelerados, mas passo por eles sem nenhuma complicação. Chego ao mercado e aguardo o segurança permitir minha entrada. Enquanto isso, pego as luvas e a máscara, obrigatórios para entrar. Espero a minha vez. Só entra no mercado uma pessoa de cada vez.
O segurança me autoriza. Entro e corro direto para a sessão dos ovos, torcendo para que estejam lá. Na semana passada, as prateleiras estavam vazias. Dessa vez eles repuseram, ótimo. Pego de uma vez os ovos e dirijo-me para a sessão dos vinhos. Escolho um branco, um tinto e um rosé, os mais baratos. Corro novamente para a fila com uma sensação de pressa, de que precisava pagar logo, ir embora logo, voltar para casa logo. Pago os ovos e os vinhos e os guardo na minha bolsa.
Ando de volta para casa pelo caminho mais curto, sem passar pela praça. Assim sinto menos culpa pelo meu crime de mais cedo. Olho para as varandas e para os prédios. Todos fechados. Imagino o que cada família está fazendo. Será que sentem medo como eu de sair nas ruas? Meu medo não é da doença, não é da polícia ou dos soldados (ainda que me causem taquicardia). Não sei do que tenho medo. Mas sei que me falta ar.
Acho que é medo da solidão. De não cruzar e sorrir para estranhos na rua. As minhas caminhadas costumavam ser a parte favorita do meu dia. É o que eu mais sinto falta. Agora, minhas caminhadas me causam falta de ar. Enquanto ando, ouço um piano.
Tento seguir o som para saber de onde vem. Não consigo identificar qual apartamento abriga o vizinho talentoso. Paro de andar. Me conecto com a música. Meus batimentos cardíacos se acalmam por algum tempo. Meu vizinho toca maravilhosamente bem, uma música que não consigo identificar, mas que me preenche e arrepia. Gostaria de saber quem é o pianista que acalmou meu coração. Mas nunca saberei, e ele ou ela nunca saberá que foi responsável por me trazer essa sensação de aconchego e calma.
Fecho meus olhos. Me recordo de uma frase do livro A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera. “Essa escuridão é o infinito que cada um de nós traz em si. (Sim, se alguém procura o infinito, basta fechar os olhos)”. Penso sobre esse infinito e o sinto por microsegundos. Deixo a sensação percorrer meu corpo. O pianista anônimo termina a música com uma nota potente que ressoa por alguns segundos no ar.
Os vizinhos aplaudem calorosamente, mas não saem para as varandas, aplaudem de dentro de seus apartamentos. Só os ouço, não vejo rostos. Tenho vontade de esperar a próxima música, mas preciso retornar para casa. Chego ao meu prédio. Olho em volta, observo novamente as varandas. Vejo um vizinho sentado em uma delas. Aceno amigavelmente e ele acena de volta. Entro na portaria e subo as escadas.
Moro com 5 pessoas, de partes diferentes do mundo. Nathan é australiano. Helen e Ellie são alemãs. Patricie é da República Tcheca e o João é brasileiro, como eu. Abro a porta de casa torcendo para que todos estejam juntos na sala. Estão.
Guardo os ovos e os vinhos na geladeira. Sento no sofá e os observo. Estão rindo de uma piada do João. Comem cereal com leite. Lembro-me de Entre Quatro Paredes, de Sartre. Na peça, o inferno é um quarto, sem espelhos e com 3 pessoas dentro. O confinamento e a convivência, na visão do filósofo, representam a maior punição que o ser humano pode ter após cometer seus pecados. “O inferno são os outros”, diz a famosa frase.
Observo meus companheiros e penso que não poderia discordar mais. Não me levem a mal, o texto é brilhante e Sartre é genial. Mas a sensação de estar em casa na companhia deles, que se tornaram minha família, é de acalanto. Tendo a concordar mais com Valter Hugo Mãe. O paraíso são os outros.

