João Paulo Brito Costa tem 40 anos e há 15 é tetraplégico. Perdeu os movimentos do pescoço para baixo aos 25 anos, depois de uma queda em uma piscina de hotel durante encontro com amigos. Mas o acidente não foi empecilho para que o educador físico voltasse a trabalhar em uma academia e conseguisse superar os desafios. Mesmo com a limitação dos movimentos, ele competiu como nadador profissional e praticou a modalidade de tênis com adaptação da cadeira de rodas.
Há seis anos, João Paulo se tornou funcionário público, mas não desistiu da paixão pela prática esportiva e continuou em busca de aperfeiçoamento. A superação foi alcançada com o apoio da família e a mudança na forma de pensar.
Antes do acidente, você já era ligado ao esporte. Como ele entrou na sua vida?
O esporte entrou na minha vida, porque quando eu tinha 3 anos fui diagnosticado com uma miopia muito grave e como eu sou muito baixinho, minha mãe me colocou na natação para que pudesse desenvolver minha altura, era um esporte com menos impactos, não tinha muito problema pra visão, então eu comecei a nadar com 4 anos. Nadei dessa idade até 17 anos, competindo mesmo, fui federado, mas a intenção da minha mãe que era de me colocar na natação para desenvolver minha altura não deu muito certo. De qualquer forma, foi o pontapé inicial da minha vida no esporte, eu gosto de todos os tipos. Foi essa paixão que me fez ir para a educação física.
De que forma você utilizou seus conhecimentos da educação física para sua vida de paratleta?
Eu realmente usei muita coisa, porque como eu dei aula de natação durante um tempo, tinha a técnica tanto na teoria, quanto na prática. Então eu pude enxergar minha deficiência, o que eu movimentava, onde não tinha movimento, e onde eu tinha que trabalhar, fazer mais força para atravessar a piscina mais rápido. Pude usar esses conhecimentos também em outros esportes, afinal teve um período em que joguei tênis em cadeira de rodas, tenho até uma cadeira para isso. Fui estudar de que forma mover a cadeira, prender a raquete na mão, para que eu tivesse maior eficiência. Tudo o que estudei na educação física eu coloco em prática nos esportes que pratico, visando adaptá-los a minha deficiência.
Em relação ao acidente, é de se imaginar que as pessoas que te acompanham também sofreram bastante com essa situação. Como foi que elas se organizaram pra te dar o devido suporte?
Na época do acidente éramos cinco pessoas aqui em casa (eu, meus pais e dois irmãos). O interessante é que não só eu como eles tivemos que nos adaptar. Todo apoio deles foi muito legal e contribuiu muito para que a gente levasse essa mudança difícil de forma mais leve.
Sobre a casa, por incrível que pareça, não precisou de muitas mudanças, porque era muito espaçosa, as portas já eram em um tamanho que eu pudesse acessar quase todos os cômodos, mas o que precisou ser adaptado meu pai foi adaptando com o tempo. Voltei a morar no quarto do meu irmão, mas não podia tomar banho no banheiro dele, até que por orientação dos médicos, meu pai construiu um só para mim.
Porém a adaptação mais contundente foi a psicológica, aquela de aprender a fazer as coisas na cadeira, no meu caso. Eu tive que aprender tudo: tomar banho, trocar de roupa, até escrever. Do lado das pessoas que me cercam, acredito que tenha sido um pouco mais difícil, afinal sempre fui meio pesado. No começo, precisei de muita ajuda para ser carregado.
Foi uma transição bem traumática, até porque só minha mãe não trabalhava, e ela não dava conta de me ajudar sozinha, porém tive muita ajuda de amigos.
Como foi a adaptação à sua nova rotina após o acidente, na condição “nova” em que você se apresentava?
Eu passei dois anos sem praticamente fazer nada, não saia para muita coisa, mas com seis meses de acidente, eu já conseguia tocar na minha própria cadeira, mesmo com um pouco de dificuldade. Então, foi quando eu decidi voltar a trabalhar na minha academia, com seis meses.
Eu fiz uma negociação com o dono para eu trabalhar o mínimo possível. Isso foi tão satisfatório, que eu voltei a fazer praticamente tudo: dar aula, andar com a cadeira envolta da academia instruindo os alunos e coordenar a academia. Foi um período muito bacana para mim, pois foi quando eu consegui ver que não tinha nada acabado, eu poderia fazer tudo, de uma forma diferente, mas eu poderia fazer tudo que eu fazia antes do meu acidente.
Então essa volta, minha rotina, foi devagar, não foi uma coisa do dia para a noite, mas foi assim que consegui ter essa rotina mesmo de voltar a fazer as coisas que eu fazia antes do acidente. Eu não tive problema algum para retornar às minhas atividades.
Hoje você já realizou muitas outras coisas depois do acidente. Como foi o processo psicológico depois que você sofreu o acidente para se recuperar?
Eu costumo falar para as pessoas que o meu psicológico sempre foi inatingível. Eu nunca tive depressão, nunca lamentei com o que tinha acontecido comigo.
Quando eu fiquei quarenta dias internado no Hospital de Base, foi a parte mais difícil da lesão. Foi muito difícil por ser um hospital público muito carente, além da gravidade do meu acidente, ainda teve a carência do serviço de saúde. Essa época serviu para eu repensar minha vida.
Então o que decidi foi que se eu passei por isso tudo e estou aqui, eu tenho que viver da melhor forma possível, então foi isso que eu busquei. A partir do momento que eu coloquei isso na minha cabeça, eu nunca tive problemas.
É claro, não vou dizer que foi 100%, às vezes vem o pensamento de que podia ter sido diferente. Então hoje em dia eu faço de tudo, eu trabalho, eu dirijo, eu vou para festa, eu viajo, eu namoro, eu estou noivo, então faço de tudo. Sobre meu psicológico, foi tranquilo de passar, eu nunca frequentei um psicólogo sem ser o do Hospital Sarah, e mesmo se precisar no futuro, vou numa boa.
Como paratleta, como era estar participando de competições em alto nível? E como era o seu dia a dia no esporte?
No esporte de alto nível, foi exatamente o fato de eu não trabalhar que me levou a treinar muito. O mais interessante era quando você chegava em uma competição de paratletas e você vê o tanto de deficiências que existem, você vê uma pessoa sem uma perna, outra sem um braço e a outra é deficiente visual, você começa a perceber, vendo aquelas pessoas felizes, brincando, competindo e levando a vida de atleta a sério, você começa a ver que a deficiência não é ruim. Então eu usei o esporte para me motivar neste sentido.
Mas eu comecei a enjoar, não aguentava mais ficar dentro de uma piscina três ou quatro horas por dia, até porque você nadar sem a ajuda das pernas é muito ruim para treinar, pois você não pode nadar na mesma intensidade que você compete, foi aí que comecei a me afastar disso. O alto nível é muito difícil. É para pessoas que realmente tem a cabeça no lugar, são centradas. Outras coisa que me fez desistir do esporte foi o fato de eu querer tocar minha vida trabalhando, ganhando meu próprio dinheiro, sem depender das custas de patrocínio e sem depender do governo, porque quando você é atleta, você precisa se dedicar 24h por dia para isso. Ficar dependendo de patrocínio foi muito difícil, pois um mês tinha, o outro mês não tinha, isso foi dificultando minha vida como atleta.
Ainda falando sobre a sua vida na natação, gostaria de saber como era a sua rotina de treinos, e o que passou pela sua cabeça, quando percebeu que foi capaz de atingir um nível tão alto, e de ver que mesmo na condição em que se encontrava, teve a capacidade de chegar aonde chegou.
Foi muito bacana nesse sentido, por conta do fato de você realmente se sentir vivo. A história sobre como eu voltei a nadar começou com um professor meu da faculdade, que mexia só com pessoas com deficiência. Ele tem um centro aqui em Brasília, onde só trabalham pessoas com deficiência, que é mais voltado para o esporte.
Quando esse professor ficou sabendo que eu tava nadando, me chamou para treinar lá, com o intuito de me levar para um lugar que tivesse uma estrutura melhor. A professora que estava lá, após me fazer algumas perguntas e me ver nadando, disse que eu nadava bem, que tinha boa qualidade técnica.
Depois disso me perguntou se eu conseguiria fazer dois tiros, um de 25 metros, e um de 50 metros. Mesmo tendo ficado cansado após o de 25 metros, disse que poderia tentar fazer o de 50. Após a professora olhar para o tempo que fiz ao terminar o tiro e consultar uns papéis que tinha, ela me disse que o tempo que tinha acabado de fazer era o melhor tempo de Brasília, na categoria em que ela me encaixaria em nível de deficiência. E aí eu fui melhorando, e com um mês de treino, aconteceu aqui em Brasília a Etapa Regional Caixa, que eu participei, e que acabei ganhando todas as provas e me empolgando mesmo.
Como disse, você é concursado no Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT). Gostaria de saber como foi o processo para passar no concurso, como você se interessou por este caminho, e como foi a sua preparação para alcançar isso.
No tempo em que sofri o acidente, apareceram dois concursos muito bons, o do Hospital Sarah, e o da Câmara. Na época, eu trabalhava na academia e tinha uma namorada com quem eu já me relacionava há um bom tempo, e por querer um dia me casar e ter filhos, resolvi fazer um concurso público.
Como tinha estudado só em casa para o do Sarah, que não passei, resolvi começar a fazer cursinho e estudar de manhã, para poder trabalhar só à tarde. Por também não ter conseguido passar no da Câmara, decidi em uma conversa junto da minha namorada que largaria meu emprego na academia e me manteria só nessa vida, porque teria mais chance de passar em um concurso realmente bom.
E então, com o apoio financeiro dos meus pais, comecei a me concentrar somente nisso. E o primeiro que fiz depois do da Câmara foi o do TJDFT, o qual eu passei. Acabei me empolgando, e passei em mais três concursos, entre eles o do Ministério da Educação, para trabalhar como professor de educação física. Fui chamado e acabei indo trabalhar no centro que eu treinava, onde o meu professor, que era o diretor de lá, me perguntou se eu queria ir trabalhar com ele, onde eu fiquei por 9 meses até que o TJDFT me chamou. Lá eu trabalho seis horas por dia, tenho um plano de saúde muito bom, e tenho um salário capaz de suprir todas as minhas necessidades.
Em relação a sua condição, você diria que os lugares os quais frequenta, tanto como o seu ambiente de trabalho quanto sua faculdade, dispõem dos recursos necessários para te fornecer quaisquer tipos de auxílio que possa precisar?
Na maioria dos casos, não me atendem. A minha casa é totalmente adaptada para mim, assim como o local onde eu moro, que é bem plano. No trabalho, o ambiente é muito legal, porque lá nós temos um programa voltado para deficientes, onde todos os locais são adaptados, fornecendo tudo o que um servidor deficiente precisaria, como vagas cobertas, uma mesa extra, alguma estrutura específica no banheiro, e até rampas.
Dentro do Tribunal, tudo é adaptado, e o que não é, é providenciado. Em relação a parte pública, a maioria das coisas não possui adaptações, como o transporte público, que muito raramente comporta estruturas para deficientes. As próprias ruas e calçadas raramente possuem rampas que não tenham sido improvisadas, o que faz com que, como no meu caso obrigam cadeirantes a pedirem ajuda de terceiros para subir. Mesmo que alguns estabelecimentos decepcionem muitas vezes, alguns lugares como shoppings sempre forneceram tudo, rampas, vagas especiais, banheiros especiais e até elevadores. Mesmo que a situação já tenha melhorado consideravelmente, a realidade ainda é de bastante precariedade.
Você disse que a questão da acessibilidade melhorou bastante em relação a época do seu acidente. Na sua opinião, o que ainda pode ser feito por parte do estado para melhorar essa situação?
As pessoas primeiramente começaram a ver as pessoas com deficiência de uma outra forma. Antes elas eram vistas como coitadinhos, que tinham que ficar dentro de casa, uma pessoa cadeirante não podia ir num boteco ou no supermercado fazer compras. Ou seja, na época que eu sofri o acidente havia muito preconceito.
Quanto à acessibilidade, os locais estão se adaptando por conta da presença de deficientes ter ficado mais comum. Então hoje você já consegue ir em um hotel totalmente adaptado, coisa que na época que eu competia não tinha. Por exemplo, era comum em um hotel com 300 cadeirantes não ter elevador ou então não funcionava ou só comportava uma cadeira por vez. Na época do meu acidente não tinha ônibus adaptado, hoje tem.
O que eu espero é poder por exemplo entrar em qualquer lugar hoje e saber que ali vai ter uma mesa ou um banheiro adaptado pra mim, vai ter uma vaga desocupada para cadeirante, conseguir andar no parque tranquilo, com rampas nas calçadas. Talvez no centro da cidade os lugares já sejam adaptados, mas na periferia há muita coisa a ser feita.
Por Beatriz Palma, Gabriel Dantas e Vinícius Pinelli
Supervisão de Isa Stacciarini