No ano em que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 30 anos, os avanços desta legislação podem estar ameaçados pelos efeitos da pandemia de covid-19. Esse é o alerta da professora de direitos das crianças Selma Sauerbronn, que é também vice-procuradora-geral de Justiça. “Tudo aquilo que já estava ruim em termos de atendimento na área de crianças e adolescente, ficou pior com a pandemia. Por exemplo, se nós tínhamos avançado muito pouco na educação infantil, com a pandemia isso praticamente morreu, em termos de atendimento na rede pública”.
No mesmo sentido, a assistente social Luiza Piubelli afirma que a pandemia evidenciou ainda mais os “pontos cegos” do Estatuto. “Vão ter crianças que vão acessar a educação, que vão ter acesso a internet, vão ficar protegidas nas suas casas, mas também temos uma camada enorme que está fora desse contexto, que não tem acesso a internet, que não tem acesso aos equipamentos. São crianças que ficaram à margem e existe uma corrida contra o tempo, principalmente na educação”.
O Estatuto da Criança e do Adolescente é considerado um marco fundamental da história brasileira e uma das legislações mais avançadas no mundo. “Com a doutrina da proteção integral, o ECA trouxe mudanças concretas que impactaram positivamente a vida das crianças brasileiras”, explica a promotora Rosana Maria Queiroz, da área da infância e da juventude.
Foto: Brenna Faria
De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), a pandemia impactou os estudos de mais de 1,5 bilhão de estudantes em mais de 188 países, o que representaria 91% do total de estudantes do mundo.
Um possível futuro que esse impacto na educação pode resultar no aumento de trabalho infantil na América Latina. Segundo relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a crise econômica e o fechamento temporário das escolas podem disparar os números de crianças e adolescentes trabalhando ilegalmente. Com um número hoje estimado de 10,5 milhões na região, há a previsão de que esse número seja acrescido em até 326 mil crianças e adolescentes.
No Brasil, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua) de 2016, existem hoje no país 2,4 milhões de menores trabalhando, sendo 64,1% negros. Destes, 1,7 milhão exerciam afazeres domésticos juntamente com o trabalho ou estudo.
Para o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), uma das formas de impedir o trabalho infantil é oferecendo opções de aprendizagem e trabalho protegido, dentro da lei, aos adolescentes.
O Estatuto, a história e as mudanças
O Estatuto da Criança e do Adolescente, segundo a Unicef, é uma lei que tem como princípio fundamental a proteção integral das crianças e adolescentes, assegurando direitos à vida, saúde, alimentação, educação, dignidade e respeito, sendo responsabilidade da família, comunidade e Estado cumpri-lo.
A partir dele, então, se foi possível reconhecer, oficialmente, crianças (de 0 a 12 anos) e adolescentes (12 a 18 anos) como sujeitos de direito. “O Estatuto trouxe um grande avanço e proporcionou que várias políticas pudessem se organizar no Brasil diante dessa concepção de doutrina de proteção integral”, afirma Kelly Melatti, Diretora do Conselho Federal de Serviço Social.
Ainda assim, de acordo com Rosana Queiroz, há muito o que fazer para se reduzir as desigualdades e alcançar de forma igual a todas crianças. “Infelizmente a proteção da infância ainda está longe de chegar a universalidade. Em grande parte pela ausência e ineficiência do Estado, que deixa à margem uma imensa parcela da população mais pobre e historicamente invisibilizada.”
Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2015, o Brasil tem 17,3 milhões (40,2%) de crianças e adolescentes de 0 a 14 anos vivendo em domicílios de baixa renda e 5,8 milhões (13,5%) da mesma faixa etária pertencem a famílias consideradas extremamente pobres, ou seja, que recebem ¼ de um salário mínimo.
Investimento na infância
Para Kelly Melatti, a falta de investimento em políticas públicas relacionadas ao Estatuto é o grande problema para seu avanço. “O Estatuto não é acompanhada por investimentos e por isso ele não consegue se concretizar”
Segundo o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), entre 2016 e 2019, nenhum orçamento autorizado para essas políticas públicas foi gasto integralmente.
De acordo com Kelly Melatti, o ECA foi criado para substituir o Código de Menores (1979). “O Código tratava crianças e adolescentes simplesmente como menores, como aqueles que estavam fora do modelo da legislação vigente.”
“O tratamento jurídico era idêntico para ambas as situações, e consistia simplesmente em afastar essas crianças da sociedade, depositando-as em grandes orfanatos e casas de correção, sem nenhuma preocupação em reinseri-las na família e na sociedade”, completa Rosana Queiroz.
Como exemplo, a Procuradora relembra da Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (Febem), hoje Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação CASA), onde eram acolhidas centenas de crianças e adolescentes “Era um único estabelecimento, enorme, sem nenhum respeito à individualidade delas, onde ocorriam toda a sorte de violações de direitos, e sem perspectiva de desligamento.”
“O Estatuto se volta para olhar a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, devendo a família, a sociedade e o Estado garantir a sua proteção integral, com prioridade absoluta, garantindo também a convivência familiar e comunitária”, completa Rosana Queiroz.
Mitos
Além da falta de investimentos, Luiza Piubelli acredita que outra barreira para o ECA seja uma série de mitos que cresceram ao redor dele. “Se colocou, de forma errônea, que o Estatuto era para proteger crianças e adolescentes da lei, como se fosse uma forma de impunidade.”
Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), dos 21 milhões de adolescentes que vivem no Brasil, apenas 0,013% cometeram atos contra a vida. Ou seja, menos de 1% dos crimes violentos são cometidos por jovens.
“Existem vários questionamentos, principalmente de pessoas mais conservadoras que acreditam que o Estado não deve se intrometer nas questões familiares, que cabe aos pais ou responsáveis educar seus filhos”, completa a assistente social.
Para ela, com tantos problemas torna-se difícil para a família, sociedade e Estado e cumprirem seus deveres com as crianças e adolescentes. “Quando a gente vê crianças e adolescentes tendo seus direitos violados, nós percebemos que falhou a família, falho a comunidade, falhou o Estado. Por que no fundo nós não conseguimos dar conta daquela situação, da educação. 30 anos é bastante tempo, mas ainda há muito o que se fazer. Especialmente na desmistificação.”
“Eu costumo dizer que uma criança ou um adolescente que chega grávida à um hospital é uma falha da família, da comunidade, da escola, de todos nós”, comenta Luiza Piubelli. De acordo com dados da Organização Pan-Americana da Saúde e Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS), Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e Fundo de Populações Unidas (UNFPA) mostram, que anualmente, 18% dos bebês nascidos no Brasil são filhos de mães adolescentes.
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Homicídios
Conforme o Mapa da Violência, homicídio é a principal causa de mortes de adolescentes de 16 e 17 anos. Em 2013, cerca de 3.749 adolescentes foram vítimas do crime, o que representa 46% dos óbitos nessa faixa etária.
O estudo, que foi divulgado pela Comissão Parlamentar de Inquérito de Assassinato de Jovens no Senado, ainda mostra que 93% das vítimas eram do sexo masculino e que, proporcionalmente, morreram três vezes mais negros que branco.
De acordo com os dados do Disque Direitos Humanos (disque 100), das 133.061 denúncias recebidas em 2016, cerca de 57% eram sobre violações de direitos de menores de idade.