Alerta: contém relatos sobre ideação suicida e de violência
No Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, esta é uma história de mais uma vítima que viu o pesadelo se tornar real no auge de sua adolescência e segue na busca exaustiva por justiça.
Era 2017, pouco tempo após Ana* ter completado 14 anos. Com o falecimento do pai quando Ana tinha apenas 10 anos de idade e após assistir a mãe passar por anos difíceis, a fase conturbada a levava a se sentir constantemente mal em ambientes cercados por pessoas. Ela conta que cogitou até mesmo tirar a própria vida. E em uma dessas tardes, em uma tentativa de fuga da própria realidade, saiu na intenção de ir até o túmulo do pai, mas acabou caminhando até a BR que ligava Cascavel, no interior do Paraná (cidade em que reside), a outros locais.
“Um carro passou por mim, eu estava andando no canteiro da BR e ele passou na marginal. Buzinou e eu ignorei. De repente, uns 3 minutos depois, eu o vi voltando. Ele começou a andar lentamente ao meu lado e eu realmente não tinha como fugir. Meu celular estava sem bateria, não tinha como correr. Quando o motorista começou a falar comigo, ignorei.” – conta – “até que ele começou a dizer que tinha filhas da minha idade, que não poderia me deixar ali naquela situação porque lembrou delas… Insistiu por diversas vezes. Chegou a dizer que Deus tinha mandado ele fazer algo a respeito, para que ninguém me fizesse mal” – Ana é, ainda nos dias de hoje, uma pessoa de muita fé. Aos 14 anos de idade, imaginou que alguém com um discurso convincente, com filhas da mesma idade, com fé em Deus e que demonstrava a melhor das intenções, não poderia fazê-la mal.
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O caminho era cheio de histórias sobre a vida pessoal do motorista. Porém, depois de pararem para comer (após mais uma longa insistência), a carona que inicialmente era para Céu Azul, cidade vizinha na qual Ana disse ter conhecidos, foi desviada de caminho com o pretexto de que a gasolina não era suficiente. O motorista se recusou a deixá-la, apesar dos pedidos da garota. Afirmou que dividia o apartamento com os pais idosos e que a menina poderia dormir lá e no dia seguinte pensar melhor no que faria.
Mais um “não, obrigada”. Mais uma rodada de insistências. Não existiam muitas opções. “Ele disse que eu poderia tomar banho e eu estava desesperada para tomar banho depois de um dia daqueles. Então eu só aceitei. Quando eu estava no banho, ele entrou.” – os detalhes do ocorrido serão preservados em cuidado à vítima.
“Às 6hs da manhã, ele disse que estava apaixonado, que queria se casar comigo. Eu sabia que eu precisava sair dali de qualquer jeito ou não sairia nunca mais.” – Ela conta que, por precaução, começou a rememorar detalhes do ocorrido, decorar detalhes do apartamento e até mesmo a placa do carro, no qual entraram novamente para fazer um percurso até o local de trabalho do homem, que afirmava ter a intenção pedir demissão para que eles fugissem juntos”.
Ana pediu para que ele a deixasse esperá-lo no Lago Municipal da cidade enquanto resolvia as coisas. A resposta foi negativa e só se tornou positiva quando ela fingiu ter sentimentos positivos e fingir empolgação sobre a situação. “Ele me deixou, me deu vinte reais e disse que voltaria mais tarde para me buscar. Eu sabia que precisava ir para casa, e me lembrei que meu colégio antigo era perto, onde poderiam me reconhecer. Encontrei a escola e pedi já chorando para o porteiro ligar para a minha mãe, sem conseguir explicar nada.”
“É só denunciar”
Na delegacia, para onde Ana precisava ir para retirar o boletim de desaparecimento feito por sua mãe, o delegado duvidou. Após chamá-la de mentirosa diante da mãe, optou por registrar que a vítima “preferiu não dar depoimento” sobre o motivo de seu desaparecimento, mesmo com toda a história tendo sido deposta. “Ele me chamou de vagabunda e perguntou se eu não tinha vergonha de fazer algo assim com a minha mãe, falou que eu não estava tendo coragem de admitir que eu saí para transar com alguém e inventei toda aquela história depois. Era uma pessoa intimidadora. Eu saí de lá e falei: eu nunca mais vou pisar em uma delegacia e nem dar depoimento sobre isso. Eu só quero seguir a minha vida, vou fingir que nunca aconteceu.” – conta.
Como advogada, a tia foi a primeira a compreender o que havia ocorrido e resolveu agir. Através de conhecidos no Ministério Público do Paraná, deu entrada no processo de denúncia diretamente no MP. Abriu-se, então, a investigação. Ana foi intimada a depor. Dessa vez, no Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítimas de Crimes, o NUCRIA, onde o atendimento é feito de maneira especializada e voltado especialmente para situações em que a criança ou o adolescente tenha sido vítima de crimes ou encontra-se em alguma situação de risco.
Como havia decorado as informações que julgou importantes, teve a oportunidade de contá-las com os detalhes. – “A única coisa que aconteceu é que eu não conseguia entrar em detalhes sobre o estupro. Eu não conseguia falar sobre isso. De início me prejudicou muito, porque acabaram enquadrando a denúncia como ‘tentativa’ de estupro, e não estupro em si, mesmo que eu soubesse o que tinha sido. Isso prejudicou um pouco o processo”, diz.
É tão difícil dar nome ao crime?
Em entrevista, a Promotora de Justiça do MPDFT, Mariana Távora, afirmou que, em uma pesquisa desenvolvida sobre os relatórios de denúncia, é perceptível o quanto é comum que em algumas denúncias as vítimas tenham dificuldades em nomear o crime do qual foram vítimas. “Essa dificuldade de entender que foi vítima de uma violência e duvidar do que aconteceu, às vezes ali mas acaba por se ligar à própria justiça que vai ‘não nomeando’ aquilo como uma violência, desqualificando, até desaparecer.” – explica.
Para a Promotora, esse tipo de situação pode afetar não somente o trâmite processual de cada caso, mas também as próprias estatísticas do sistema de justiça: “Já é difícil nomear, entender que foi vítima de uma violência, e quando aquela pessoa entende, aquilo ali não é tido como violência para o sistema de justiça. É uma lógica que nos é ensinada (de desqualificar a violência que é sofrida) e a justiça acaba refletindo aquilo ali.”
Depois de alguns dias da denúncia inicial, Ana foi com investigadores até os locais que relatou (o local do crime, o suposto local de trabalho do acusado, os caminhos feitos) para fazer o reconhecimento de tudo. Em seguida, foi feita uma avaliação psicológica, também solicitada pelo MP. Poucas semanas depois, com as informações dadas, o suspeito foi reconhecido.
Entretanto, quando solicitado o laudo de perícia criminal ao Instituto Médico Legal (IML), por questões burocráticas, o exame só pôde ser agendado para cerca de dez dias depois do crime. Em decorrência disso, o laudo pericial, apesar de constar possível tentativa de estupro, foi inconclusivo.
Acerca do que se prova
Ana chegou para a audiência (que só veio a ocorrer cerca de 1 ano e meio após a denúncia) acompanhada da mãe, da pastora da igreja que frequenta e da ex-namorada. Foi direcionada para uma sala separada onde menores de idade prestam depoimento e dessa vez teve coragem para contar tudo com detalhes, devido ao tempo que havia passado e os tratamentos psicológicos que fez nesse período. “O fato de lembrar de muitos detalhes da história e dos locais me ajudou muito. Mesmo que o réu afirme nunca ter me visto na vida, eu soube explicar cada detalhe da vida dele. Não teria como ter inventado.” – conta.
A advogada e professora de matérias relacionadas ao Direito e às Mulheres na Sociedade, Fernanda de Ávila, ressalta que, em casos de crimes como esse, é importante que a mulher mantenha um discurso preciso e contundente do início ao fim da denúncia, com o máximo de provas e detalhes que for possível.
Para ela, esse tipo de atitude ajuda na probabilidade de uma decisão favorável. “Em alguns casos, a gente orienta que a vítima tire alguns dias para escrever e ler várias vezes aquilo que aconteceu com ela, para ver se não está faltando nenhum detalhe. Porque na verdade é comum, a própria literatura mostra isso: que em muitos momentos nossa memória apaga esses traumas. Mas é importante se ater aos fatos, manter a calma para que seja possível manter o discurso coerente desde o primeiro momento até as audiências do processo” – explica.
O laudo com atrasos no IML e a atitude do delegado no momento da denúncia foram prejudiciais para Ana no processo. Entretanto, por sorte, as fotos tiradas pela mãe das marcas em seu corpo e as testemunhas acabaram sendo decisivas para o caso.
Cerca de nove meses após a audiência, o telefone tocou. A oficial de justiça perguntou se poderia se dirigir até a casa para informar sobre a intimação de condenação: oito anos em regime fechado por estupro de vulnerável. “Por mais que seja a pena mínima, a gente sempre acha que não vai dar em nada, sabe? Então eu confesso que fiquei feliz, sim. Senti que estava contribuindo com alguma coisa, mesmo que seja para virar estatística” – conta.
Com a condenação em primeira instância, por se tratar de réu primário, o acusado ainda recorre em liberdade. “Foi aí que veio a parte que eu comecei a sentir medo. Eu sabia que ao mesmo tempo que eu ia receber a intimação de condenação, ele receberia também. Fiquei com medo dele aparecer. Não me arrependo, mas tem esse lado.”
A decisão foi comunicada à Ana há cerca de dois meses. Ela segue com medo de sair de casa e encontrar com quem a colocou naquela situação. Segue se assustando com os carros que param por muito tempo na porta de sua casa. Mas está feliz e esperançosa com uma chance de justiça.
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Reportagem: Thayssa Vidal
Entrevistas inicialmente concedidas para o Livro Reportagem “Sob a Luz de Clarice – Reportagens inspiradas na obra da escritora centenária” e readaptada para a matéria. *O nome da vítima foi alterado no texto para preservar a privacidade dos envolvidos e de seus familiares.
Sob supervisão de Luiz Claudio Ferreira