Léia diz que nunca viu uma companheira na profissão. Ela é porteira de um prédio na quadra 202, da Asa Norte. Para ela, em uma atividade dominada por homens, chegar até onde está atualmente não foi nada fácil. Afinal, ela recorda que, ao longo de sua trajetória, precisou abdicar temporariamente da própria educação, além de lutar contra o machismo de companheiros de trabalho e moradores para, enfim, se consolidar como porteira.

Maria Laudileia Silva Lima dos Santos, de 50 anos, mudou-se para Brasília no dia 2 de agosto de 1993. As datas, recordadas com detalhes, estão marcadas em uma agenda que ela guarda com cuidado. Nascida na cidade de Caxias (MA), a 1.700 km de Brasília e a 365 de São Luís, foi ensinada desde cedo pela mãe a buscar a independência financeira. Este foi o principal combustível para começar a trabalhar precocemente aos 14 anos. No Nordeste, Léia largou os estudos para se dedicar à atividade de garçonete em um restaurante modesto, onde, de pouco em pouco, escalou até a gerência do estabelecimento.
Mas, ela não queria ser garçonete. Ela diz que pensava “grande”. No caso, o “pensar grande” significava seguir os passos dos irmãos mais velhos, que ganhavam a vida na capital federal. Uma irmã como funcionária pública e o outro como garçom. Portanto, Léia entrou em contato com eles e pediu para que avisassem caso uma oportunidade de emprego surgisse. Aconteceu. A cunhada perguntou se ela aceitaria trabalhar de doméstica e a resposta foi simples. “Tudo para sair do Maranhão”.
O novo patrão era o síndico do prédio que ficava na quadra 402, na Asa Sul. Por ele, Léia trabalhou por cerca de dois anos até querer uma nova mudança de atividade. Pediu uma oportunidade na loja do chefe, que ficava na W3 Sul. Entretanto, todas as vagas estavam ocupadas. A partir disso, ela lembra que o síndico sugeriu a ela que ingressasse como funcionária de serviços gerais naquele próprio edifício. Ela aceitou a chance.
Foi durante essa época que conheceu o futuro marido, Eudes Lima dos Santos, que atuava como porteiro em outro condomínio da mesma quadra. Posteriormente, Eudes passou a trabalhar no mesmo bloco da namorada e, desde então, decidiram morar juntos no apartamento funcional destinado ao trabalhador da portaria. Essa fase foi importante para consolidar a relação e a vida financeira dos dois, uma vez que, ao longo do período, foram capazes de fazer o pé de meia necessário para a construção da casa própria onde residem hoje, em Valparaíso de Goiás (GO).
Como funcionária do prédio, Léia foi promovida a zeladora em 2000, função que exerceu até ficar desempregada em 6 de novembro de 2010 devido à mudança de gestão de síndicos do condomínio. Apenas em 2011 ela recebeu um novo convite, diferente dos que havia recebido anteriormente: trabalhar na portaria de outro prédio, agora na quadra 202 da Asa Norte. O intuito era de que ela fizesse a cobertura do turno de porteiros que estavam de férias, e a vivência acabou se tornando inesquecível.
Experiência
Admiradora das atribuições da parte administrativa do ofício, Léia aproveitou ao máximo a experiência no Bloco D da 202 Norte, o que foi notado pela síndica do prédio, por intermédio dos comentários positivos dos moradores. Assim, a administradora decidiu oferecer um emprego em definitivo na área de serviços gerais, porém, não era uma vaga comum, uma vez que, logo que entrou, Léia foi colocada como prioridade para assumir a portaria caso acontecesse algo com os porteiros titulares.
No primeiro dia de agosto de 2011, a vaga de porteiro surgiu e finalmente Léia assumiu a posição com que tanto se havia identificado. Assim que começou, já pôde notar a responsabilidade que o cargo demandava por um período mais longo de atuação. No final das contas, para garantir o bem-estar dos condôminos, ela precisa estar atenta em todos os momentos. Seus olhos não mentem. Léia observa cada detalhe ao seu redor, seja pelas lentes de seus óculos ou das câmeras de segurança.
Machismo
Entretanto, nem tudo foi como a porteira imaginava quando ingressou na nova função. A desconfiança dos colegas de trabalho, todos homens, foi percebida por ela. Para eles, Léia não podia ocupar a portaria justamente por ser mulher. “Lugar de mulher é lavando louça”, ela escutou. Além disso, chegou a ouvir deles que ela era privilegiada por ser mulher, já que a síndica também era.

No início, os homens ameaçavam Léia no decorrer do expediente, buscando provocar erros da porteira para delatá-los à administração do bloco. Também costumavam seguir ela pelas escadas e elevadores do prédio para tentar encontrar alguma coisa que pudesse comprometer a sua reputação. Tiveram casos, segundo ela, que notícias falsas chegaram até a síndica com esse objetivo.
Esses acontecimentos abateram Léia, que pensou em largar o trabalho. Buscou apoio em seu marido e na sua fé. Eudes foi quem a motivou a persistir e enfrentar os desafios e a fé foi a força fundamental para continuar. Católica fervorosa, ela carrega, como forma de devoção, terços nos braços e a imagem de Maria como tela de fundo de seu celular. Com a ajuda, decidiu prosseguir e, com o tempo, ganhou o mínimo de respeito dos colegas, que consequentemente pararam de incomodá-la.
Léia garante que os companheiros de trabalho não foram os únicos que duvidaram de sua capacidade de comandar a portaria. Em outra oportunidade, a ignorância, dessa vez de uma mulher, chegou aos seus ouvidos. Uma moradora comentou com outros funcionários do prédio que ela não tinha capacidade para vigiar. Além de não conseguir chefiar seus subordinados e ter a força necessária para cumprir os deveres do dia a dia. Segundo a porteira, o assunto foi pauta de uma reunião de condomínio na qual a pessoa foi repreendida pelos demais moradores.
A porteira ressalta que isso se deu porque a maioria sabe que ela não está ali por acaso e que investiu em sua qualificação. Fez cursos de segurança, portaria e informática, tudo para se especializar. Hoje, Léia conta que se sente tranquilamente capaz de exercer a profissão, porém, ainda sente machismo em olhares desconfiados de alguns condôminos. Ela tem para si que o comportamento é fruto do desconhecimento das pessoas, mais do que simplesmente um estereótipo de gênero. “Muitos não procuram nem conhecer a minha história”, apontou.
Nos estudos, Léia conseguiu completar o ensino médio técnico em administração no Instituto Federal de Brasília (IFB) em 2019 junto com o marido Eudes. Para o futuro, ela pretende mudar os rumos de sua vida novamente. O objetivo? Ser uma das aprovadas em um dos concursos públicos da capital. A área escolhida é a da educação, para ficar perto de sua filha mais velha, formada em pedagogia. A primogênita, Larissa Silva Lima Farias, e o caçula, Matheus Cauã Silva Lima dos Santos, foram os maiores incentivadores de suas conquistas acadêmicas. Eles acompanharam os pais durante as lições finais do curso e influenciaram o casal a persistir com os estudos e almejar novos objetivos.
“Depois que começou a estudar de novo, minha mãe pensou em desistir, falava que não era para ela e que não ia dar certo. Mas eu sempre estava ali para apoiar. Se precisasse virar a noite para fazer trabalho com ela e meu pai, eu virava. Corrigia redações para ajudar também”, disse Larissa.
“Eu não tenho palavras para descrever o que sinto pela minha mãe. Não só por ser filha, mas por ter acompanhado toda garra, coragem e determinação dela para conseguir se formar. Na formatura dela e do meu pai, para mim, foi como se eu tivesse sido a professora deles de certa forma. Superamos todas as dificuldades juntos e isso me dá muito orgulho”, complementou a pedagoga.
Embora declare a felicidade e satisfação que sente em ser porteira, a essência de Léia é pensar no que ainda pode conquistar. Cada data é motivo de orgulho para ela. Se depender de sua força de vontade, novos dias, meses e anos poderão ser relembrados em breve. Ela quer que novas portas se abram.
Por Thiago Quint
Supervisão de Luiz Cláudio Ferreira