O sonho de ter um lar para chamar de seu

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Lar doce lar. O sonho de ter um lar. O sonho de ter uma casa para chamar de sua. Sem pagar aluguéis. Só um cantinho seu. Esse é o sonho de tantos brasileiros e também de Vanderlice Rodrigues, de 53 anos, moradora do Itapoã, no Distrito Federal. Segundo a Codeplan, a renda per capita da região administrativa é de R$ 930. Ela presta serviços como diarista de faxina 4 dias por semana no Plano Piloto. Veio para a capital federal aos 21 anos, em 1989, de uma cidade no interior do Piauí chamada Riacho Frio, a 773 quilômetros de Teresina e 908 quilômetros de Brasília. O marido veio três meses antes dela para a cidade para trabalhar como motorista de caminhão. Depois ela veio com duas filhas pequenas. Uma ainda bebê, com poucos meses e a outra com 2 anos. Até hoje nunca teve casa própria e tenta desde 2004, por meio da Codhab (Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal).

Complexo do Itapoã Parque, da Codhab, sendo construído em 2020 | Foto: Renato Alves / Agência Brasília

No Distrito Federal, um financiamento por intermédio da Codhab é a única forma de pessoas de baixa renda conseguirem acesso à moradia. As inscrições são realizadas no próprio site do órgão. É um programa de financiamento para pessoas que recebem até 12 salários mínimos por mês, mas pessoas consideradas vulneráveis, como moradores de rua, que não recebem nenhum salário, ganham os imóveis sem precisar financiar. O programa do DF é diferente do financiamento do Governo Federal “Casa Verde e Amarela”. No caso do federal, o direito à moradia é dado a famílias que têm renda mensal de até R$ 7.000.

“A vida no Piauí não é fácil. Não tem emprego. Quem trabalha lá ou é na prefeitura ou como lavrador, mas não ganha muito”, afirma Vanderlice. Ela própria trabalhou na roça com seu pai. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o salário médio mensal de um trabalhador de Riacho Frio em 2019 era de R$ 1.900.

A única vez na vida que teve carteira assinada foi assim que chegou a Brasília e começou a trabalhar no mercado Panelão, no Lago Norte. Seus filhos ficavam com uma vizinha enquanto Vanderlice trabalhava como auxiliar de serviços gerais. Entretanto, o emprego só durou 9 meses, porque o marido mandou que ela saísse. Não queria que ela trabalhasse e sim que ficasse só em casa.

Então veio o terceiro filho. Foi uma época difícil, porque o  marido a deixou sem ajudar em nenhuma despesa com os filhos. Ela começou a trabalhar na casa de uma idosa, onde podia levar os 3 filhos pequenos juntos.

Quando os filhos eram um pouco maiores, com cerca de 8 anos, e para conseguir sustentar a si e às crianças, ela começou a trabalhar como diarista de domingo a domingo. Enquanto isso, os pequenos ficavam com sua prima, também vinda do Piauí.

Vanderlice recorda dos momentos difíceis que passou ao sair do Piauí e vir para Brasília. Quando veio para a capital do país, não tinha condição de comprar uma roupa para ela e para os filhos. “Só que também nunca foi lá essas coisas (no Piauí). E com as condições atuais, só tem dinheiro mesmo para a comida”. Se antes ela trabalhava sete dias na semana, hoje em dia trabalha quatro. Segundo ela, a situação de emprego está difícil agora até na capital. Por isso, perdeu três dias de trabalho em relação ao que tinha antes. O grande sonho de ter uma casa própria ainda não foi realizado. Paga um aluguel de R$ 550. Ao descrever onde mora, afirma ser um “barraco” com 3 cômodos: sala e cozinha juntos e um quarto com banheiro. 

Vanderlice disse que sentiu que teve seus direitos negados na hora de conseguir uma casa pelo programa da Codhab porque “lá existem muitas burocracias”. “Eu sou autônoma. Não tenho carteira assinada e as pessoas precisam comprovar a renda para conseguir ter a documentação aprovada”. 

A Codhab é a Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal e é responsável pelo programa de moradia que atende cerca de 130.000 pessoas por ano, segundo o órgão. Sua finalidade é executar a Política de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal e uma de suas competências é a de realizar planos, programas e projetos habitacionais. Segundo Vanderlice, quem é autônomo tem mais dificuldades em comprovar essa renda e conseguir preencher o requisito da conta corrente para conseguir o imóvel. 

De Minas Gerais para Brasília

Júnia da Silva, 39, deixou Unaí (MG) e se mudou para Brasília em 2001, com 19 anos de idade. Atualmente trabalha em um salão de beleza na capital federal e mora no Riacho Fundo. Segundo a Codeplan, a renda per capita da região é de R$ 1.328. Veio para Brasília solteira e sem filhos porque queria melhores condições de emprego, e conseguiu. Ela disse que nunca ficou desempregada na capital federal. “Em Unaí os trabalhos são mais difíceis e em Brasília tem mais oportunidades. Em Minas eu não estava trabalhando”. Segundo o IBGE, o salário médio mensal de um trabalhador de Unaí era de R$ 2.100.

“A maioria das pessoas em Unaí trabalham em fazenda, em alguma loja ou em casa de famílias. Não têm outro tipo de serviço”. Júnia conta não ter vontade de voltar para cidade dela agora que tem um emprego e já se “acostumou” com a capital federal. Chegou a trabalhar em Unaí também em um salão de beleza, mas prefere a vida que leva em Brasília.

Ela se inscreveu na Codhab em 2014 e a chamaram para a entrega de documentos em 2020. Entregou documentos como CPF, Certidão de Nada Consta e Certidão de Casamento, mas a análise demorou um tempo. Quando a chamaram, havia documentos que não tinham sido aprovados e ela teve mais um tempo para colocá-los em dia. Júnia os entregou e entrou em análise novamente. Demorou mais alguns meses para ser aprovado, segundo ela, que não recorda o tempo exato, mas que seria menos de um ano. A documentação foi aprovada e ela está na fila de espera agora para conseguir o financiamento de apartamento no Itapoã Park.

Júnia não tem carteira assinada, é autônoma. Mas, segundo ela, conversou com a Codhab e até o autônomo tem como provar a sua renda. “Você pega um papel com seu contador e prova a renda”. Mas, também afirma que é mais difícil provar a renda do que quem tem carteira assinada.

Ainda não há previsão para ela ter resposta na Codhab. “Fica em análise e a gente tem que ficar abrindo o aplicativo para ver quando vai ser aprovado. E eles chamam para ir ao banco. Ainda não fui chamada para negociação, mas pelo que o pessoal falou, tem que dar uma entrada, mas as parcelas são bem baratinhas. Tem pessoas que pagam parcelas de R$ 100, R$ 150, dependendo da renda”, disse Júnia.

“Tem pessoas que não conseguem abrir conta corrente, que é uma exigência da Codhab, e aí a pessoa é negada. Às vezes eles pedem comprovante de residência, algumas burocracias e tem pessoas que não sabem correr atrás e qual documento levar, por isso abrem mão. Mas a conta corrente não é tão fácil quanto a poupança”.

A demora é algo que incomoda. “Não é algo rápido. Às vezes levam até anos para olharem a documentação da pessoa e darem uma resposta”, conta Júnia.

Ela nunca teve casa própria, paga R$ 700 de aluguel atualmente, mas disse achar que se tivesse ficado em Minas Gerais e nunca ido para Brasília, já teria conseguido seu próprio imóvel, porque é mais fácil para comprar o lote e financiar em sua cidade natal. “Brasília é uma cidade maior e hoje em dia o que você vai comprar é com dinheiro ou com cartão. Em Unaí se você conhecer a pessoa você só assina um papel, ela te passa a mercadoria e você depois vai pagando. Tem mais confiança. Aqui é mais difícil. É uma cidade grande e ninguém conhece muita gente”.

Da Bahia para Brasília

Jacinta, 46, trabalha como diarista de faxina e veio para Brasília aos 18 anos, de Bom Jesus da Lapa, na Bahia. Veio para a capital com uma prima para tentar melhores condições de trabalho. Segundo o IBGE, o salário médio mensal de um trabalhador da cidade de Jacinta na Bahia era de R$ 1.800.

Já havia trabalhado como doméstica em sua cidade natal, mas mesmo assim queria uma vida melhor, que Brasília poderia lhe dar porque o salário é maior, segundo ela.

As pessoas na cidade natal de Jacinta geralmente trabalham na roça, em colheita, como é o exemplo de suas irmãs. Acha que se tivesse ficado em Bom Jesus da Lapa, trabalharia com o mesmo que elas.

Descreve a vida em Brasília como também não sendo um conto de fadas, mas um pouco melhor que na Bahia por ser uma cidade grande. Diz não ter vontade de voltar para sua cidade natal porque agora já fez sua vida na capital do país.

Solicitou em 2004 um imóvel na Codhab e até hoje espera a moradia. A documentação que entregou ao órgão está em análise até os dias atuais.

Jacinta afirma que a Codhab pediu que ela tivesse uma conta corrente para que a solicitação do imóvel pudesse prosseguir, mas, como é autônoma, teve dificuldades em abrir essa conta porque não tem carteira assinada e comprovante de renda. Questionada se o órgão lhe deu alguma informação de que mesmo trabalhando como autônoma ela poderia abrir essa conta e provar sua renda, Jacinta afirma que não. “Nunca me informaram nada. Só me mandaram ter a conta corrente porque senão eu não poderia conseguir a casa. E eu não consegui abrir a conta por ser autônoma e não ter comprovante de renda. Hoje eu procuro um emprego que eu possa ter a carteira assinada e criar essa conta”.

Enquanto não consegue criar sua conta corrente, Jacinta diz que seu processo está parado na Codhab. “Eu ligo lá e a moça fala que eu tenho que arrumar a conta corrente”.

Jacinta nunca teve casa própria e paga R$ 500 atualmente no Itapoã. Acredita que já teria conseguido uma casa própria se tivesse ficado em sua cidade na Bahia porque, segundo ela, em Brasília as coisas são mais caras. 

O que diz a Codhab

Segundo a Codhab, um dos critérios para participação da política habitacional do DF é a comprovação de renda de até 12 salários mínimos. No caso dos trabalhadores autônomos, eles devem enviar as páginas da carteira de trabalho em que conste a qualificação civil, a foto, o último contrato de trabalho dado baixa, a página seguinte em branco, além da declaração de atividade informal. No caso de quem ganhe acima de R$ 2.380, também é obrigatório o envio da declaração de Imposto de Renda completa e recibo de entrega.

“Considerando que a informação e os instrumentos necessários estão disponibilizados no portal da Companhia, não se vislumbra motivos para, especificamente, trabalhadores autônomos terem mais dificuldade de se habilitar, em comparação a outros profissionais”, afirma a Codhab. 

Ainda de acordo com a Companhia, os candidatos habilitados são inseridos em 4 faixas de renda e os dados declarados e comprovados lhes conferem uma pontuação, gerando uma posição na fila para indicação. “Reforçamos, ainda, que a lista de habilitados é dinâmica. As posições podem oscilar à medida que candidatos atualizam seus cadastros, adicionando dependentes, atualizando renda ou, ainda, sendo incluídos no Programa por determinação judicial”.

O que diz a profissional do EJA

Segundo a professora do EJA (Educação de Jovens e Adultos), Daniela Andrade, as dificuldades que pessoas vulneráveis têm para entender os documentos que precisam apresentar à Codhab poderiam estar relacionadas a vários fatores, como contextos culturais. “O vocabulário que circula em determinados ambientes não é um vocabulário que as pessoas geralmente usam. Por exemplo, um vocabulário de tribunais, o tal do juridiquês, os jargões, é um vocabulário que os advogados geralmente entendem. O uso de determinadas palavras. O mesmo acontece na burocracia estatal. O vocabulário das repartições públicas, a própria burocracia para se conseguir algum benefício é longa justamente para evitar fraudes, mas entra em um vocábulo que não é comum para as pessoas de baixa renda”.

De acordo com a professora, outro fator de dificuldade seria o analfabetismo funcional. “Se são pessoas de baixa renda, são pessoas, normalmente, alijadas do Estado e do que a gente entende como participação cidadã. Nesse sentido, são pessoas que não conseguem ter contas em bancos, então nunca precisaram de um documento que comprove renda. Normalmente os contratos de aluguel não são feitos como faz a classe média, que tem um fiador, um contrato”, diz Daniela.

A professora fala que são documentos que essas pessoas não vivem, que “não é habitual da vida delas precisar de um documento para abrir conta porque geralmente elas não têm conta, só têm a poupança”. Outro ponto que Daniela aborda é que essas pessoas não têm um contrato de trabalho, sem carteira assinada. “Essa coisa de ter documentação não é muito do universo delas, só em uma questão de saúde e mesmo assim, às vezes nem isso. Então, essas pessoas não entendem esses documentos porque não participam do Estado. Não têm uma participação a ponto de precisar de uma comprovação de renda. Elas não têm os direitos assegurados a ponto de ganharem bem o suficiente para terem uma conta em banco. Um universo que não faz parte delas”.

Por Bruna Costa

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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