Direitos da gestante: como nascem as garantias e invalidações da maternidade

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Ano de 1962. No mundo de fora, homens construíam mundos. Mas em que mundo estavam as mulheres? Provavelmente no mundo da casa, ajustando a mesa para as refeições do dia. E não se esqueça, as limitadas atividades eram acompanhadas da desafiadora e invalidada tarefa: gerar filhos. Um gerar que gira em torno do desenvolver, criar, formar e educar o próprio filho. No mundo de dentro, as mulheres casadas possuíam uma falha garantia, a de que haviam permissão para realizar outros trabalhos somente com consentimento do marido. Até 1962, essa esperança poderia até ser revogada a qualquer momento, já que era o que o Código Civil de 1916 afirmava. Invalidadas e incapazes, essa era a visão do Estado sobre as mulheres. Agora, não muito distante, em 2021, quem disse que a situação foi resolvida? Pelo menos, se olharmos pelo aspecto de que estamos tratando de um problema social, então a resposta é não.

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Pelo lado judicial, não há como negar, tivemos avanços. Dentro das linhas gerais da Constituição Federal e da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), atualmente, as mulheres trabalhadoras gestantes estão asseguradas da proteção ao trabalho. Essa proteção está escalada em diferentes níveis. Uma delas é o que o Estado chama de “Estabilidade provisória”, em que é proibida a demissão sem justa causa no período desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. Entretanto, por mais eficaz que a lei aparente ser sob o olhar do Estado, a realidade é outra. No mundo das mulheres, em muitos casos, o que se confirma não é a estabilidade, mas sim a demissão. De acordo com a pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de 2016/2017, metade das mulheres após o período de gestação foram demitidas, sendo o maior número da porcentagem entre aquelas de baixa renda e baixo nível escolar. Tamanho dado comprova que muitas empresas optam pela demissão da trabalhadora após o período da estabilidade provisória.

Sabendo do risco, a jovem Eduarda Lorrana Mesquita Silva, 22 anos, grávida de 3 meses, escolheu não tirar a licença maternidade. A empresa em que trabalha, um centro de análise clínica, propôs para a jovem aceitar a licença maternidade, mas Silva decidiu continuar trabalhando. “Devido ao tempo de afastamento dentro da empresa, o medo de ser demitida é maior. Eles vão ter que suprir a mão de obra, vão ter que colocar alguém no lugar daquela pessoa. Então, eu vejo como um risco de ser demitida. Esse foi um dos motivos maiores que me fez recusar a licença maternidade”. 

Eduarda Lorrana e a família Silva, composta pela mãe, pai e duas irmãs mais novas, não esconderam o medo que é viver no ano de 2021. Eduarda e os pais são os responsáveis por ajudarem na renda da casa. Por saber que o custo de vida está caro no Brasil, Eduarda desabafou que se via preocupada com a situação na residência. “Essa foi a preocupação maior. Eu não podia perder essa renda e deixar de ajudar em casa”. Com medo de perder o emprego, estando grávida e contando com o trabalho, ela confessou o sentimento ímpar que resume a preocupação de muitas gestantes trabalhadoras: “Geralmente a empresa vê o filho como um empecilho para a mulher”.

Construção da Lei e controvérsias

Dentro do universo feminino, a lei n. 13.467/2017 da Reforma Trabalhista pode ser vista como uma “via de mão dupla”. Ao mesmo tempo em que declara a proteção ao trabalho, a lei também abriu espaço para atos inconstitucionais que colocassem a saúde da mãe gestante e do bebê em perigo. Assim como é garantida a proteção ao trabalho, um segundo aspecto importante é a proibição do trabalho insalubre e perigoso para as trabalhadoras gestantes. E é em cima desta garantia que recentemente o Estado brasileiro tornou o direito feminino em um ato palpado em controvérsias. Controvérsias essas que surgiram com alterações na lei da Reforma Trabalhista dentre os anos de 2017 e 2019.

Sob proteção dos direitos propostos na CLT, era garantido às trabalhadoras gestantes que elas fossem afastadas de atividades insalubres e perigosas durante tanto a gestação quanto o período de lactação. No ano de 2017, a Reforma Trabalhista alterou o artigo 394-A da CLT e inviabilizou o afastamento das gestantes que exerciam tais trabalhos caracterizados como perigosos e insalubres. A advogada e especialista em leis trabalhistas Larissa Rodrigues de Oliveira, 29 anos, explica que a Reforma “retirou uma garantia que antes era incondicional, porque antes bastava a mulher estar grávida e no período de amamentação para ser afastada das atividades insalubres. A Reforma Trabalhista de 2017 então disse que não. Ela só vai ser afastada incondicionalmente em grau máximo. E se a atividade for em grau médio ou mínimo de insalubridade, só se o médico recomendar o afastamento”. Já em 2019, o Supremo Tribunal Federal julgou que a Reforma violava  uma garantia constitucional. Diante do cenário, a lei foi novamente alterada e voltou a determinação anterior à mudança. 

Diante desse sentido de precariedade, empresas viram a possibilidade de se beneficiarem a partir da brecha que o Estado criou. A advogada Larissa de Oliveira analisa que a “via dupla” está justamente na existência de empresas que valorizam a prática social de proteção às gestantes, independente de reforma trabalhista, mas ela também não descarta o fator “lucro” como o “carro chefe” nos negócios. “Muitas empresas se sentiram beneficiadas com a precarização que a Reforma Trabalhista trouxe, porque muita empresa é discriminatória com as mulheres. Elas não querem repensar nos direitos das mulheres, não querem pagar pelo auxílio médico para as gestantes”. A advogada esclarece que, por mais que existam garantias legais, há ainda casos de empresas que adotam práticas violadoras que colocam as trabalhadoras em situação de risco.

A trabalhadora Ana Paula Azevedo da Silva, 26 anos, é um exemplo da interferência de empresas na decisão sobre o trabalho das gestantes. Como atuava na função de auxiliar de laboratório, a gestante de 5 meses revelou que não teve a escolha de tirar a licença do trabalho, mas na verdade foi obrigada. Com a lei sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, a qual determina o afastamento de atividades presenciais de funcionárias grávidas durante a pandemia, sem prejuízo na remuneração, Ana Paula não pôde continuar trabalhando em laboratórios, locais em que tinha contato diário com diferentes pessoas. Ao olhar além da perspectiva de proteção das gestantes que a lei sancionada pelo presidente traz, a mesma lei encontra efeitos comuns na “estabilidade provisória” já garantida pela Constituição Federal. 

Em decorrência do afastamento, ela desabafa que não acredita estar protegida de forma legal. “Antes as mulheres trabalhavam até o 8° mês, até porque gravidez não é uma doença, apenas há algumas que exigem mais cuidados devido às complicações que acontecem durante o período gestacional”. Ela finaliza o depoimento revelando que também acredita que o afastamento do trabalho durante o período de gestação é o responsável por aumentar as chances de perder o trabalho e acrescenta: “acredito que contratações de mulheres se tornaram mais difíceis com as empresas descobrindo que a trabalhadora já é mãe e com mercado de trabalho sendo cada vez mais exigente”.

Desigualdade aflorada 

Dentro do mito de proteção que o Estado oferece, há ainda a necessidade de se discutir o fator social que a lei carrega. O lado social é um dos responsáveis por provocar o medo generalizado da demissão dentre a população feminina e ganha força quando a lei traz problemas em si. Ainda mais durante o período pandêmico, que contou com uma lei para gestantes, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro. Vejamos no exemplo que ilustra como o caráter social é determinante para empresas decidirem sobre manter ou não a empregada.

Comparemos dois exemplos de realidades muito diferentes. Uma é a situação de uma secretária grávida. A outra é de uma trabalhadora doméstica. Pela lei que o presidente sancionou durante o período pandêmico, as trabalhadoras teriam que ficar afastadas do trabalho. No caso da secretária grávida, o escritório onde trabalha daria condições da trabalhadora continuar o trabalho à distância. Já sobre a situação da trabalhadora doméstica grávida. Com a lei em vigor, a empregadora da trabalhadora é obrigada a mantê-la afastada das atividades de trabalho presencial. Agora, o momento do entrave. Supondo que a empregadora teria que colocar outra trabalhadora dentro de casa para fazer as tarefas domésticas de forma presencial e ainda manter a antiga trabalhadora grávida remunerada, a chance de ser demitida pende para um dos lados.

São em casos assim que a advogada Larissa Rodrigues de Oliveira explica que a proteção garantida pela lei sancionada pelo presidente simplesmente só “vai de encontro” com o que está garantido pelo Estado, sem trazer mudanças estruturais à questão: “Desde o momento da gravidez, a trabalhadora já está protegida pelo instituto da estabilidade, ou seja, não pode ser demitida. Independente da lei do Bolsonaro, a secretária já tem a estabilidade que a Constituição Federal garante e mesmo assim tem a chance de ser demitida depois do período de estabilidade”. 

A especialista ainda declara que “a chance da trabalhadora doméstica ser demitida se torna muito maior que a da secretária. Já que a lei não distingue as gestantes, a lei impõe que a trabalhadora fique afastada, sem ter prejuízo na remuneração. Esse embate facilita a demissão e a parte da população feminina de baixo nível escolar e de renda acaba sendo mais prejudicada, já que as chances de serem demitidas são ampliadas”. 

Precariedade nas garantias

O ventre da questão tem suas garantias que são dignas de constante afirmação. Pelo benefício da “estabilidade provisória”, os constantes casos de demissões passam a ser restringidos. A comprovação está no acolhimento das trabalhadoras, as quais se forem demitidas e durante o período em que forem “notificadas” da demissão, caso descubram sobre a gravidez, a empresa fica impossibilitada de demiti-las sem justa causa, pois já estão protegidas pela estabilidade provisória. 

Entretanto, esse ventre também dá lugar para a questão estruturante e social brasileira que está por trás da lei da estabilidade, a qual também enraíza a problemática das demissões das trabalhadoras gestantes. Voltando para a origem da questão, a advogada Larissa Rodrigues de Oliveira acredita ser necessário questionar “quem são as mulheres que irão perder o emprego”. Sob o olhar da especialista, “essa questão da demissão para a trabalhadora gestante é uma constante na vida das mulheres trabalhadoras, sempre e em qualquer situação, desde o nível mais baixo de instrução até o mais alto”. 

No ano de 2016, a FGV divulgou informações que embasam a luta por direitos para gestantes. A partir de uma pesquisa levantada por Cecilia Machado, doutora em economia, os dados recolhidos informaram que mais da metade das mulheres perderam seus empregos após a licença maternidade. Além disso, ao fazer um recorte por nível de escolaridade e de renda, os números de trabalhadoras demitidas com maior escolaridade apresentam queda de emprego de 35% após 12 meses do início da licença. Já para as mulheres com nível educacional mais baixo, o número de demissões alcança a taxa de 51%.

Dessa forma, comprova-se de que, de fato, há precariedades nas garantias e que a precariedade atua sobretudo na falta de políticas públicas. Para explicar o porquê, a especialista compara a realidade brasileira com a de países europeus. “Lá, a licença maternidade é concedida pelo mesmo prazo que a licença paternidade. Ou seja, aqui no Brasil, o pai tem direito à licença de 5 dias, com possibilidade de prorrogação para 15 dias. A mãe tem 120 dias, podendo chegar até 180 dias. Estruturalmente e historicamente falando, a mulher continua assumindo um ônus maior pela função de ser mãe. O resultado acaba em demissão. Assim que encerra o período de estabilidade, as empresas mandam as empregadas embora”.

Então, uma vez que a problemática envolve “a estabilidade provisória”, a especialista cita que talvez uma solução seria aumentar o período de estabilidade. Porém, o caráter estruturante é fator de entrave entre solução e precariedade. Em cima disso, Larissa de Oliveira revela que “essa questão não vai ter fim enquanto a mulher continuar a ser vista como a grande responsável pelo provimento da criança e isso acaba significando o sacrifício do trabalho. Então, o ajuste dessa problemática está na formulação de políticas públicas, como a existência de um incentivo. Um exemplo seria subsídio fiscal para empresas, medidas que estimulem elas a enxergarem a maternidade como um processo natural para as mulheres e não algo que vai prejudicar o desempenho profissional da trabalhadora”. 

Agora, enquanto mundos forem construídos sem a participação da esfera feminina, não abrace uma concepção conjunta e igualitária entre diferentes mundos, o resultado será declaratório, como explica a especialista. “Essa lógica de desprezar a mulher e a maternidade como algo prejudicial continua sendo uma lógica exploratória da mão de obra”. Enfim, vai continuar sendo o caminho para invalidar a existência das mulheres trabalhadoras e gestantes.

Por Sandy Melo

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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