Quando o professor Tiago da Luz, entrou pela primeira vez em uma sala de aula na Unidade de Internação Provisória de São Sebastião (UIPSS), não sabia o que esperar. O primeiro retrato era de uma turma formada majoritariamente por alunos negros. O docente deparou-se com a primeira aula que receberia: eles são vítimas da falta de oportunidades e dos direitos negados.
O professor de química viu-se sem as fórmulas. Ele, concursado da secretaria de Educação, percebeu durante os cinco anos seguintes em que lecionou na unidade que tinha facilidade para conversar, entender e ensinar para os adolescentes encarcerados. O motivo estava na pele: ele também é negro. “Quando eu cheguei na UIPSS, os meninos me olhavam diferente. Eu era um dos poucos professores negros. Em mim, eles se reconheciam”.
Como planejar as salas de aula e a representatividade de professores quando não há dados disponíveis? Nem a Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF) nem o Ministério da Educação (MEC) têm levantamentos que revelam a quantidade de professores negros no sistema público de educação do Distrito Federal (DF). Sem informações, o estado precisa ter a sorte de ter uma luz, como a do Tiago.
Já em relação aos alunos, o mais recente levantamento (2020) do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (Inep) mostrou que eram 200 mil estudantes pretos ou pardos matriculados, dos quais 186 mil se consideram pardos.
Essa não é uma coincidência. Para a professora de história Germana Costa, de 28 anos, do Centro de Ensino Fundamental de São Sebastião, é fundamental que alunos negros tenham em sala de aula referências de professores da mesma cor.
“O corpo docente das escolas ainda é bastante branco. Um ou outro são os negros. A questão do racismo ainda não é bem abordada em sala de aula”, argumenta Germana. Ela indica que são necessários profissionais capacitados. “Ou pelo menos interessados em abordar temáticas racistas e ensinar em sala, nada vai mudar”, explica.
“Ato político”
Tiago é nascido e radicado em Belém (PA), onde se formou e começou a carreira. Ele mudou-se para a capital do país somente em 2010, quando foi convocado após passar no concurso da secretaria de Educação.
Em uma nova cidade encontrou uma realidade completamente diferente. “Em Belém, meus colegas, conhecidos, familiares eram majoritariamente negros. Poucos eram os brancos do nosso convívio. Já aqui em Brasília é o contrário”, reflete.
Além da UIPSS, Tiago lecionou em diversas escolas da periferia do Distrito Federal e entendeu o padrão das pessoas marginalizadas no DF, majoritariamente negras. “Tendo essa consciência, para mim ser um professor negro hoje é um ato político. Eu não sou só um professor de química”, diz.
Hoje, Tiago é vice-diretor no Centro de Ensino Médio 01 de São Sebastião, e afirma que é importante que o corpo docente dos colégios seja mais diverso do que o comum. “E eu não falo somente de mais professores ou professoras negros, falo também de professores trans e de toda comunidade LGBTQIA+ também”, afirma.
“Isso é importante porque a gente não precisa abordar a discriminação racial, por exemplo, só em novembro (mês da consciência negra). E mais, quem fica à frente das ações das escolas são professores brancos que determinam o que é e o que não é racismo”, critica.
Novas equações
Em Sobradinho II, o desafio de David Nogueira, professor de história, tem outros percursos. Os alunos são mais do que personagens. “Eu gosto de passar exercícios para os alunos fazerem em sala, mesmo sabendo que não vão fazer, mas aquela aula não é exatamente para a atividade. Faço isso para poder andar entre as carteiras e conversar com meus alunos, conhecê-los. É menos sobre o exercício e mais sobre entender quem está ali”
Ele recorda-se de uma ocasião em Sobradinho II em que reparou um aluno cabisbaixo. “Perguntei para ele o que tinha acontecido e ele respondeu que antes da aula, pela manhã, os policiais entraram na casa dele e prenderam o irmão, que estava envolvido com drogas”.
Foi um choque para o professor. “Eu dava aula em um cursinho no centro e isso jamais aconteceria lá. E não é porque no centro não tem traficante. É porque a polícia age de forma diferente nesses espaços marginalizados, na periferia”.
David Nogueira também é gerente de educação ambiental, patrimonial, língua estrangeira, arte e educação da secretaria. Ele leciona em um colégio do centro da cidade e diz que tenta chamar a atenção dos seus alunos para que percebam os poucos negros ali presentes. “Mas eu preciso fazer isso com cuidado, porque às vezes o único aluno negro da sala pode se constranger. Essa relação é bem complicada”, constata.
Para ele, um professor tem a obrigação de entender o contexto em que está inserido ao entrar em sala de aula. Não é a mesma coisa entrar e dar uma aula na periferia e no centro da cidade.
“O principal desafio é a empatia. Se colocar no lugar do outro e entender o que se passa ali. É importante saber qual o repertório cultural, o que eles estão ouvindo, assistindo, em que aplicativo eles tão mexendo e o que estão lendo, porque isso faz diferença”, explica.
David destaca que professores de exatas e humanas têm o mesmo desafio, mas que as equações e conceitos de matérias como matemática e física disfarçam a provocação.
“Alguns professores das matérias exatas às vezes tem a ilusão de que as equações são as mesmas em qualquer lugar, elas podem até ser, mas as pessoas não são. Então não adianta achar que o que é ensinado é do mesmo jeito em todo lugar, nós de humanas não temos essa pretensão”.
Racismo em sala de aula
Não bastassem os desafios impostos no dia a dia na luta contra o racismo, professores se defrontam também dentro das escolas pelo seu lugar. Para alunos negros inseridos em contextos majoritariamente brancos, os desafios sociais expostos principalmente pelo racismo estrutural – discriminação racial enraizada- também afetam na aprendizagem.
“A gente se move por motivações. Se você está em um ambiente que te motiva, te acolhe, fica mais fácil. Então, se o aluno está chateado porque alguém no recreio foi racista com ele, no restante da aula ele não vai aprender.. Não adianta, não é ‘só esquecer’ e voltar a prestar atenção na aula”, explica David. Germana destaca que a exclusão que um aluno sofre “é diretamente proporcional ao seu desempenho escolar”.
Embora o racismo ainda seja uma realidade bastante presente dentro dos colégios, David percebe que a questão racial é mais debatida hoje em dia. “Por exemplo, quando a gente vai falar da escravidão e do legado da escravidão, eu sinto que é mais confortável para todo mundo porque eles já partem de algum lugar”. Ele lembra-se que, 10 anos atrás, quando se falava de cotas, ninguém entendia nada daquilo, “Ninguém tinha nenhuma ideia. Hoje eles parecem ter um repertório melhor e isso reflete nos posicionamentos deles”, afirma o professor que está há 18 anos em sala de aula.
A professora germana também afirma que seus alunos, adolescentes entre o sexto e o nono ano, também conseguem perceber situações de racismo e não mais reproduzi-las. “Entre os alunos negros, a gente vê algumas ações que provam isso, por exemplo quando assumem o cabelo deles. Na minha época isso era impossível”, diz. No entanto, a docente pondera que no racismo estrutural todos, inclusive adultos, encontram dificuldades para entender e combater.
Por João Carlos Ferreira
Supervisão de Luiz Cláudio Ferreira