Nos fundos da casa

COMPARTILHE ESSA MATÉRIA

O colchão era fino, travesseiro tão ralo que Ana* jurava que ele era estofado com papel, além do cobertor de baixa qualidade que lhe foi fornecido. A empregada tinha uma rotina restrita, recebia folga apenas nos feriados e nos domingos, e durante o dia a dia acordava cedo e parava de trabalhar apenas por volta das 8 da noite. Ela se alimentava apenas após seus patrões terminarem sua refeição e em um local isolado da casa, como uma cadeira na parte de fora da casa ou até mesmo dentro do seu próprio quartinho.

As refeições também eram diferentes. Ana explicou que sua patroa deixava as comidas que ela era permitida comer separadas do resto. “Ela nunca me deixou faltar comida, era sempre com fartura, mas enquanto ela comia filé mignon, eu comia coxão duro. Me dava água na boca quando eu preparava o almoço dela, sempre me perguntava se um dia eu ia provar daquilo”, brincou a empregada.

Para Ana, foi difícil perceber que estava em uma situação de assédio trabalhista. Ela explica que sempre foi tratada de forma similar e que ao morar naquela casa não foi diferente. Quando ela cometia algum erro, sua patroa gritava e a chamava de nomes como “burra” e “inútil”, repetindo que ela não exercia seu trabalho da forma correta. “A dona era bem explosiva, sabe? Até com o marido ela brigava, já ouvi ela gritar durante o almoço com ele. Quando eu percebia que ela estava de mal-humor, eu evitava a dona pela casa toda para não descontar a raiva em mim”.

Sem horário

Incapaz, errada, pequena… O peso do mundo nos ombros da empregada doméstica Lucimar*, de 59 anos, não era suficiente. A patroa ainda fazia de tudo para diminuí-la. Ela não dormia na casa onde trabalhava. Para ela, não havia o famoso “quartinho da empregada”. Mesmo assim, ela estava enjaulada, presa dentro das paredes do seu emprego, presa ao tormento de estar trabalhando num local onde não era tratada bem. Não era tratada como gente. “Ela fazia tudo para me diminuir, queria que eu me sentisse pequena e sem valor”, recorda.

Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), em 2020, o número de trabalhadoras domésticas atuando na informalidade representava 75% da categoria, cerca de 3,4 milhões de pessoas. O trabalho informal é aquele no qual não há carteira assinada e, portanto, não há o resguardo de direitos trabalhistas para a pessoa em questão.

Fonte: Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE)

Lucimar e tantas outras brasileiras que trabalham no Distrito Federal e Entorno são pessoas que, além de não terem seus direitos garantidos, sofreram algum tipo de violação

No caso de Lucimar, a rotina era intensa. Nos dias de trabalho regular, a patroa mandava ela chegar antes do horário combinado e nunca respeitava a hora de sair. Ela nunca recebeu hora extra pelas horas adicionais. “Eu trabalhava de segunda à sábado. Tinha folga apenas nos feriados e não era respeitado meus horários”, explica a empregada.

A rotina era baseada no dia a dia da patroa. Lucimar podia ir para casa apenas quando ela chegava do trabalho, às vezes três ou quatro horas depois do fim do seu expediente. Quando Lucimar era liberada do emprego e podia voltar para casa, existia mais um obstáculo no caminho. A patroa não fornecia o dinheiro da passagem: Lucimar tinha que retirar dinheiro do seu próprio salário para pagar o transporte de ida e volta.

Quartinho

Assim como Lucimar, Ana, de 63 anos, relatou que não havia horários de trabalho com uma de suas ex-patroas. Ana morava na casa da patroa pois sua moradia era muito longe do trabalho. Então, a patroa disse que, para que ela não chegasse atrasada no trabalho, iria lhe fornecer um local para dormir. Esse local era um pequeno quarto que a dona da casa usava para colocar bagunça. Ela retirou parte do que estava no cômodo, deixando apenas uma estante recheada de livros e papéis entulhados, e colocou uma cama pequena para Ana dormir.

Com Júlia*, a situação foi diferente. Ela conta que trabalhou durante nove anos para a mesma família, não tinha folga e trabalhava todos os dias, até em feriados. Seu patrão não pagava o décimo terceiro salário e começou a pagá-lo apenas quando ela o questionou. A mulher ainda acrescenta e explica que foi demitida após perder um dia de trabalho para levar sua filha menor de idade ao hospital. “Minha filha teve que ser internada e eles queriam que eu largasse ela lá para ir trabalhar, eu não ia fazer isso. Quando voltei no dia seguinte, já havia outra pessoa no meu lugar, e olha que eu trabalhava lá há nove anos!”, indaga Julia.

Denúncias

Joyce da Silva, rapper e historiadora conhecida pelo nome artístico de Preta Rara, lançou o livro “Eu, empregada doméstica”, em 2019, como forma de extensão da sua página no Facebook de mesmo nome. A página, que conta com mais de 150 mil curtidas, foi criada no intuito de denunciar casos de assédio moral e abuso no ambiente de trabalho de empregados domésticos numa tentativa de dar voz a esta minoria.

Em seu livro, Preta Rara traz a reflexão das condições trabalhistas desta classe social a partir da frase “O quartinho de empregada é a senzala moderna”. A advogada Vera Araújo concorda com a afirmação e comenta que ainda há um impacto grande da época escravocrata do Brasil na sociedade moderna, principalmente na questão do trabalho doméstico.

“Talvez o elo mais contínuo que temos entre o passado escravagista e as modernas formas de escravidão no Brasil é exatamente o trabalho doméstico. Essa é a nossa ligação que jamais se interrompeu”. A advogada contextualiza que o Brasil aboliu o trabalho escravo do ponto de vista jurídico e formal, entrou no mundo moderno do capital financeiro. “O elo contínuo entre o Brasil Império, Brasil escravização e Brasil República nunca rompeu totalmente as suas raízes escravagistas”, explica Vera Araújo, da Frente Negra do DF.

A jurista acrescenta que há uma luta trabalhista muito clara porque, apenas em 2015, houve uma regulação constitucional da legislação trabalhista dos trabalhadores domésticos, a PL 150. “É sabido que ela não tem plena eficácia, a proteção ao trabalho doméstico não se deu nunca”, finaliza a advogada. A PL 150 mudou de forma positiva para os trabalhadores e com a reforma, houve a criação da demissão por acordo, a contribuição sindical patronal e laboral se tornou opcional, e também aumentou os gastos que os empregadores têm para cuidar dos seus funcionários.

Júlia relembra que quando seu patrão a substituiu, ele ainda a orientou a ensinar tudo que sabia sobre cuidar da casa para a nova empregada, mas ela recusou. “Eu disse que eu havia aprendido tudo sozinha e não ia ensinar, eu estava no hospital com a minha filha. Parece que ele não tinha gostado muito e disse que era eu quem sabia e que era para eu me virar e ir atrás dos meus direitos. Falei para ele que eu ia mesmo, mas foi difícil. Eu, desempregada com três filhos, imagina, né? Mas no final eu venci”.

A PL garantiu o seguro-desemprego, seguro contra acidentes de trabalho e indenização em caso de dispensa sem justa causa para trabalhadores domésticos, e também ajudou a firmar as questões de horário de trabalho. Trabalhadores domésticos passaram a ter direito ao adicional noturno e qualquer trabalho realizado das 22h até as 5h tem um ganho de 20% sobre a hora diurna de trabalho. (esse parágrafo podia vir antes. o que acha?)

Mas, ainda assim, situações de injustiça são encontradas. Lucimar relata que sua patroa atrasava para pagar suas férias e ela, com medo, fica à mercê do tempo, na espera para receber o dinheiro. “Eu estava sempre pensando em sair do emprego, mas eu não queria ficar sem trabalhar porque tinham que cuidar das minhas filhas. Eu acho que eu deveria ter saído logo que eu percebi que não era um trabalho saudável”.

Filhos

Assim como Lucimar, Ana e Júlia também contaram que não saíram do emprego, mesmo sendo submetidas àquelas situações, porque ambas tinham filhos para cuidar; Julia tinha três e Ana tinha dois. Ana diz que foi um processo muito complicado e que ela pensou por muito tempo antes de pedir demissão. Com Júlia foi ainda mais difícil: ela foi demitida antes mesmo que pudesse pedir.

Em relação à fiscalização dos direitos desta classe, Vera Araújo lamenta e diz que é uma situação dolorosa, pois depende da dignidade e civilidade humana. A especialista diz que não pode ser admitido que empregadas domésticas sejam submetidas tanto à desproteção dos direitos formais como à própria dignidade. “(Devem ser garantidos) igualmente o direito à privacidade, à honra, de não ser violada e não sofrer nenhum tipo de abuso, nem moral, nem sexual, nem psicológico”.

“As garantias constitucionais que devem ser respeitadas e a ligação com a capacidade do controle de fiscalização das condições do trabalho doméstico estão entre os desafios que temos”, diz a advogada.

Lucimar, hoje, está trabalhando em outro país com uma família que a trata muito bem e a respeita; Ana se aposentou há três anos e se dedica em vender suas peças de artesanato como renda complementar a sua aposentadoria. Júlia trabalha em outro local, como doméstica, e é otimista apesar de tudo. “Nem todos são iguais, têm pessoas que não nos valorizam, mas ainda tem outras que nos valorizam”, conclui Júlia.

*Todos os nomes das trabalhadoras foram alterados para proteger a identidade das mesmas

Por Mayarianne Castro

Supervisão de Luiz Cláudio Ferreira

Este obra está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição-SemDerivações 4.0 Internacional.

Você tem o direito de:
Compartilhar — copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato para qualquer fim, mesmo que comercial.

Atribuição — Você deve dar o crédito apropriado, prover um link para a licença e indicar se mudanças foram feitas. Você deve fazê-lo em qualquer circunstância razoável, mas de nenhuma maneira que sugira que o licenciante apoia você ou o seu uso.

SemDerivações — Se você remixar, transformar ou criar a partir do material, você não pode distribuir o material modificado.

A Agência de Notícias é um projeto de extensão do curso de Jornalismo com atuação diária de estudantes no desenvolvimento de textos, fotografias, áudio e vídeos com a supervisão de professores dos cursos de comunicação

plugins premium WordPress