Empreender na vulnerabilidade

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Em uma das orelhas um alargador prateado. Tatuagens espalhadas pelo seu corpo. No pescoço tatuado um “cifrão”, símbolo do dinheiro, e que desde o início da pandemia, o tal cifrão que nunca foi fácil, ficou mais difícil de estar em seu bolso. Ele é um dos comerciantes que viram em seus empreendimentos formas de sustentarem suas casas.

Khallew Arraes está sentado no sofá, coberto por lençóis, que também se estendem pelas paredes. Ora fazendo a divisão de cômodos, ora como cortina para impedir que a luz do sol entre dentro da casa com chão de cimento batido.

O tatuador trabalha no estúdio que montou dentro de sua casa, localizada na Chácara Santa Luzia. Local sem endereço e CEP. Com ruas sem asfalto, em que a poeira levanta ao passar carros e pessoas. Próximo a sua casa, há os restos dos lixos que foram deixados nas laterais, espuma de sofá e roupas, uma parte foi recém queimada. Cachorros correm e crianças brincam com os pés descalços, mesmo com o sol forte.

O desenho sempre esteve com ele, mas foi a pandemia que tornou necessário que ele seguisse esse caminho para trazer comida para o seu lar. “Na época, eu decidi procurar serviço. Pensei que não dava dinheiro. E com a pandemia, e tudo o que surgiu de consequência, eu não queria mais trabalhar pra ninguém e decidi abrir o estúdio. Agora em janeiro, eu comprei tudo que eu precisava para abrir, porque até onde eu trabalhava fechou”.

Khallew Arraes possui tatuagens por todo o corpo e nem sempre viu ser tatuador como primeira opção de sustento. Após sair do local em que estava trabalhando, ele usou o dinheiro do seu INSS para comprar os aparatos necessários para fazer o que gostava. Ele investiu em uma maca, máquina, tintas e materiais descartáveis.

Ele conta com os serviços básicos que não são fornecidos oficialmente. Os postes de eletricidade de concreto, como comumente são feitos, dão espaço para os postes de madeira que foram feitos por moradores da região. Há fios que se ligam e vão direto para as casas. Água encanada e sistema de esgoto também são inexistentes, pessoas que possuem poços artesianos compartilham de sua água com os demais moradores.

As casas, em sua maioria, são feitas de madeirite e resto de construções. Pelo receio frequente de derrubadas, poucas pessoas optam por construírem suas casas com tijolos e massa corrida, afirmaram os comerciantes entrevistados para esta reportagem. E em uma dessas casas, é possível observar um cartaz que diz “Arraes Tattoo”. Ali vive o tatuador com a esposa, três filhos e enteada.

Ruas sem asfalto da Chácara Santa Luzia.

Chácara Santa Luzia

No caminho à Chácara, sacos brancos grandes, com o que parecem ser materiais para serem reciclados. Na entrada do local, que fora um lixão até janeiro de 2018, há entulhos, madeiras e papelão. Caminhões entram a todo momento. Ao parar para observar, há lixos que foram deixados e grandes pedaços de resto de construções. A rua, mesmo que com asfalto, tem buracos e água que parece ser de esgoto devido ao mau cheiro.

Ao final da pista esburacada, é possível encontrar um caminho de terra com placas de pessoas que vendem madeiras e madeirites. Ali fica a Chácara Santa Luzia, localizada na Cidade Estrutural. Próxima ao antigo Lixão e que, hoje, é uma Unidade de Recebimento de Entulhos (URE) do Serviço de Limpeza Urbana (SLU). A área está situada na faixa de tamponamento do Parque Nacional de Brasília e, de acordo com a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação (SEDUH), não é passível de regularização.

Segundo levantamento da Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal (Codhab), há, aproximadamente, 3 mil famílias que moram na Chácara Santa Luzia. Porém, em dados extra oficiais, esse número chega a 10 mil famílias. Por viverem em área considerada irregular, o governo não executa serviços de infraestrutura, ou seja, essas famílias vivem em meio a ruas sem asfalto, sem acesso a água encanada ou própria para consumo, saneamento básico e luz elétrica. Mas que, em meio ao contexto que estão incluídas, procuram formas de sustentar seus lares.

E para suprir, minimamente, a falta de água para os moradores, a Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (CAESB) construiu um chafariz em 2018. Estrutura com caixa de água, que diariamente é abastecida por caminhões pipa, e torneiras para que a população possa pegar água a todo momento

A administração da Santa Luzia informou que a região é irregular e por isso os problemas ainda não foram solucionados. De acordo com a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação, ainda não há previsão de regulamentação da área no Plano Diretor de Ordenamento Territorial do DF.

Empreendedores

Andando pelas ruas da Chácara, à procura de mais pessoas que empreendem naquele local, aparece uma mercearia. Há, na parede, coqueiros pintados, com uma estrutura improvisada de telha, vigas de madeira para sustentar e um banco de madeira. No local em que é feito o atendimento há grades. Na parte de dentro garrafas de diferentes tipos de bebidas, uma estante com alimentos, sacos de salgados no teto e doces.

Uma mulher que atende o cliente que está do lado de fora pedindo uma dose de cachaça. Ela se chama Josiane Alves, de 38 anos, e ao ser abordada para ceder a entrevista, prontamente responde que poderíamos conversar com um sorriso no rosto.

A empreendedora conta que ela e o marido, no início da pandemia, montaram a mercearia. Antes de montar a estrutura que está no local, era utilizado um carrinho para fazer as vendas. “Foi muito dificultoso, pois como a gente tem um carrinho grande de empurrar. Nós começamos aqui, colocamos o carrinho na frente. Aí começamos com umas garrafinhas de bebidas, uns pacotinhos de salgadinho, uns potinhos de balinha, e assim foi”.

O marido empurrava o carrinho, mas devido a uma queda de moto adquiriu um problema em seus pés, que incham e doem quando percorre longas distâncias. Então, tiveram que optar em construir o espaço físico para atendimento de seus clientes.

Fiado

Na viga que sustenta o telhado da parte de dentro de sua mercearia há uma placa acerca de vender fiado. “Não posso vender fiado, pois os devedores não gostam de ser cobrados e minhas contas estão atrasadas por conta disso.” Ela compartilha que uma, dentre as suas maiores dificuldades, está o vender fiado. Pois as pessoas que compram dessa forma demoram a pagar ou, simplesmente, não pagam.

“É bom empreender aqui, mas não é fácil, devido a dificuldade financeira das pessoas que moram aqui. Mas a gente atende mais o pessoal daqui mesmo.Tem pessoas que são boas pra pagar, outras não. Aí tem o tal do fiado, que uns pagam, outros não.”

Além dos problemas financeiros enfrentados, também há a questão da falta de estrutura no local. Ela conta que gosta de empreender no local, mas que acredita que os empreendedores poderiam aumentar os seus lucros com a implementação de serviços básicos no local.

“Estar aqui é muito bom, eu acho que aqui, acho que todos os empreendedores daqui, nós poderíamos empreender melhor, se caso tivesse uma estrutura diferente. Se tivéssemos mais condições para aumentar os nossos negócios. Não falo só por mim, mas pelos outros também. Se tivesse asfalto na rua, luz e água com dignidade. Eu acho que seria bem melhor”, finaliza.

Próximo ao local que fica a mercearia da Josiane Alves, há um chafariz que é abastecido diariamente por caminhões pipa da Caesb. A esposa de Arraes, que me acompanhou durante o caminho, pede pra eu ir mais perto. Ao verificar os locais que seriam das torneiras, é possível ver longas mangueiras conectadas.

“As pessoas daqui botam as mangueiras e levam para casa. Uma vez pedi para o meu pequeno vir buscar um pouco de água pra gente. Ele tirou uma das mangueiras e um cara veio e ameaçou ele. Disse que iria bater nele se o visse por lá de novo. Agora ele não chega nem perto daqui, ficou traumatizado. E não tem ninguém pra gente reclamar, porque ninguém tá nem aí”.

Mais adiante, uma casa diferente das demais Ela é feita de tijolos, pintada de azul, escrita mercearia e grade prateada. Há uma criança parada na frente que me olha com atenção e curiosidade. Uma mulher vem próxima a grade e sorri. Pergunto se ela poderia compartilhar histórias de vida. Ela fala que sim, mas que, por questão de segurança dela e do filho, não poderia revelar seu nome e nem queria que tirasse foto dela. Então, a partir deste momento, utilizaremos o nome Ana Maria* como referência a ela.

Ela conta que faz cerca de um ano que começou a empreender no local. A sua mercearia conta com doces, produtos de higiene, de limpeza, refrigerantes e panos de prato e chão. “Aqui a gente começou ainda tem pouca coisa. Porque aqui, como a comunidade é carente, fica meio complicado da gente colocar muita coisa”.

Ana Maria compartilha que é difícil empreender no local. E que, além da mercearia, também montou um salão. Lá ela presta serviços de manicure, pedicure, cortes, progressivas e escovas. “Já tem uns 15 dias que eu não vendi nada. Então é só pra me manter mesmo, porque eu tenho um filho um pequeno. É só pra suprir as necessidades e ainda nem dá ainda, aí é meio complicado”.

A mercearia foi montada para que ela pudesse trabalhar próximo de seu filho, pois não confia em deixar a criança com alguém para cuidar. “Ele é muito pequeno ainda pra eu deixar ele com alguém e ir trabalhar fora. Aí eu preferi eu montar isso aqui. E também tem o meu salão aqui do lado. Só que assim, só raramente aparece cliente”.

Mas mesmo com as dificuldades enfrentadas no local, Ana Maria gosta de morar lá. Conta que questões de violência, como roubo, ela raramente vê no local. “Eu prefiro morar aqui na Santa Luzia do que no meio da Estrutural, mesmo com a carência daqui. Mesmo não tendo asfalto, não tendo nada para suprir nossas necessidades básicas, não tem água encanada, não tem energia, é tudo por esses cabos aí. Mas aqui por não ter esse tipo de violência, roubo e esse tipo de coisa, eu gosto”.

Desemprego

Mesmo com os impactos econômicos causados pela pandemia da Covid-19, abrir um negócio próprio permanece uma alternativa para a geração de renda, principalmente para quem está desempregado. Segundo o balanço realizado pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), referente a julho de 2021, há 308 mil pessoas sem emprego no DF. Correspondente a 18,7% da população geral.

Dados da Junta Comercial, Industrial e Serviços do Distrito Federal (Jucis) mostram que, de 17 de março até 17 de agosto, 24.716 empresas iniciaram as atividades no DF. Dessas, 19.368 são de microempreendedores individuais (MEIs).

Por Malu Souza

Supervisão de Luiz Cláudio Ferreira

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