Na rua e no frio. Uma rotina de fome e dores. De repente, a vida da colombiana Glória Isabel Grajalez, que morava na cidade de Santa Elena, na Venezuela, havia virado pelo avesso. Ela tinha 57 anos de idade, em 2018, quando sofreu a maior decepção. A filha a expulsa de casa. Chegou a tentar cometer suicídio. A briga ocorreu porque Glória entrou em conflito com o genro. Era uma crise familiar em um país arrasado por dificuldades econômicas e sociais. A reviravolta da colombiana ocorreria longe dali. Depois que conseguiu abrigo na capital do Brasil.
Ela lembra-se de como essa história se deu, mas a fome e o frio foram trocados por um teto e esperança, ainda que solitária. Para a Venezuelana, a mudança se deu após um divórcio traumático e a morte da mãe, em 2005. Ir para a Venezuela era o objetivo de conseguir novas oportunidades.
Morando no país vizinho com duas filhas pequenas, na época com 4 e 7 anos, Glória voltou a ter esperança depois de anos desiludida. Arrumou um emprego em uma padaria, pagava seu aluguel e vivia tranquila com sua família.
O país estava um caos e o dia a dia com suas filhas também. Naquele ano, as filhas já estavam casadas e viviam com seus maridos na casa de Glória. A briga, que causou a ida para a rua, teve até luta corporal e Glória chamou a polícia para conter o genro. “A minha filha não gostou e me expulsou de casa”.
A mudança para o Brasil ocorreu depois que um um homem desconhecido lhe convidou a largar a Venezuela e partir rumo a Boa Vista (RR), no Brasil.
Recomeço
Sem dinheiro ou qualquer perspectiva de voltar para casa, dessa vez a mudança para um país vizinho seria solitária. Quando chegou, numa sexta-feira, teve que esperar até segunda para tomar as vacinas obrigatórias para entrar definitivamente no país. Até lá, foram mais 3 dias na rua. Mais especificamente, no chão da rodoviária.
Antes de Boa Vista, passou por Pacaraima, a 200 km da capital. Não sabia falar português e hoje só entende “bom dia” e “tudo bem?”. Chegou a, de novo, tentar cometer um suicídio, mas um homem a impediu. Glória disse que não entendia nada que o homem falava, só via a expressão de susto em seu rosto e as mãos fazendo o sinal negativo.
Socorro
Nos três anos na capital de Roraima, Grajalez foi acolhida na sede da ONG SOS Aldeias Infantis. Lá, conheceu estrangeiros que estavam em situações parecidas com a sua e, assim como os outros, voltou a comer, dormir e ter uma vida digna.
Depois de 24 meses morando no norte do Brasil, em janeiro de 2021, Glória se mudou para o Centro-Oeste e chegou à capital do país sem saber como seria essa nova etapa da vida.
A colombiana, agora com 60 anos, foi recebida novamente pela SOS na filial de Brasília, na Asa Norte Glória, e outras dezenas de imigrantes vivem em uma casa de acolhimento. O terreno se assemelha com uma pequena vila. Com várias casinhas coloridas de dois andares, os refugiados se distribuem entre famílias e pessoas que vieram desacompanhadas.
O local também possui um parquinho para as crianças, uma quadra poliesportiva e uma área para que as pessoas possam se reunir, bem no centro das casas, que ficam ao redor de um grande gramado com muitas árvores.
Olhar triste
Glória já é uma mulher idosa, tem cabelos claros, quase grisalhos e um olhar triste, cansado da vida. Com um vestido simples, uma máscara de pano e os olhos delineados com tinta preta, ela me recebeu para a entrevista, na sala de reuniões da ONG. A conversa foi feita em espanhol, já que Isabel não domina a língua portuguesa. Logo na primeira pergunta, quando questionada sobre sua jornada até o Brasil, a mulher tímida e quieta se pôs em lágrimas. Ela dizia que o coração doía muito quando lembrava de tudo que passou e, principalmente, quando lembrava das filhas e dos três netos que nunca pôde conhecer.
Glória ainda sonha em conhecê-los e deseja reunir a família mais uma vez, mas diz que infelizmente as filhas só lembram dela para pedir dinheiro, que ela não tem.Fala que não acredita mais no amor de ninguém, somente de Deus, que dá forças à ela. “Sufrí demasiado en Venezuela, niña”, diz. Por isso, afirma que hoje prefere ficar o resto da vida em um asilo do que voltar para o país afundado na crise e no desamor das filhas.
Apesar de tudo o que ocorreu, é uma mulher grata. Ama as pessoas no Brasil, diz que nunca foi maltratada aqui. Fala com muito carinho de Samantha, a responsável pela SOS em Brasília.
Há 9 meses na capital do país, Glória diz que se encantou por Brasília. Descreve com detalhes sobre tudo o que viu lá de cima, no avião, quando chegou aqui pela primeira vez. “Não entendi direito como as pessoas não se perdiam aqui. Todas as ruas parecem iguais! Ainda não aprendi a andar pelas… como é o nome mesmo? [digo que são as quadras] sozinha.”
Glória ficou espantada com a organização da cidade, com as árvores e com “os prédios diferentes”, como ela mesma disse. Em um momento, ainda falando sobre a cidade, volta a lembrar do sonho de trazer as filhas e netos para cá. “Eu gostaria muito de trazê-los aqui um dia. Tenho certeza que eles se encantariam também, assim como eu”, diz ela, com a voz trêmula, embargada.
Glória começa a desconversar e mudar de assunto. Pergunta sobre minha tatuagem de Nossa Senhora de Fátima, fala que é muito católica e gosta de frequentar a missa na igreja São Francisco de Assis, que fica do lado da casa de acolhimento que ela mora.
Eu me interesso pelo assunto, digo que conheço uma igreja em Brasília que celebra missas em espanhol. Ela logo se anima e começa a falar rápido. Passado o entusiasmo, Glória me pede para anotar o endereço da igreja em um pedaço de papel cor de rosa que estava em cima da mesa. E assim o faço.
Depois disso, começo a me despedir e peço desculpas por fazê-la lembrar de tantos momentos difíceis. Ela me responde que, apesar da tristeza, sabe que é importante externalizar tudo o que sente, para que assim se sinta melhor. Digo que gostaria de poder dar um abraço nela, mas a necessidade de distanciamento social por conta da pandemia de covid-19 me impede. Ela sorri com os olhos, acena e me agradece de forma carinhosa.
Por Maria Regina Mouta
Supervisão de Luiz Cláudio Ferreira