Dívida e estresse: crise gera diferentes impactos mentais, afirmam especialistas

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Ansiedade e depressão passaram a fazer parte da vida de Joana* (hoje com 24 anos de idade) desde que ela era adolescente. Ela diz que não tem condições de fazer acompanhamento terapêutico. Hoje, a rotina envolve acordar às 6h e só voltar para casa às 21h. Tudo para evitar situações como ela já passou em família. Por causa de dívidas da mãe com jogos, teve a vida profundamente alterada em sua rotina. 

Por causa dos problemas financeiros, Joana comia arroz com sardinha todos os dias. Era por pura necessidade de uma garota que tinha apenas 18 anos na época. Todos os dias, após o trabalho, ela se sentava na cerâmica fria de uma casa sem móveis. E naquele lugar fazia todas as suas refeições. “Além de muita sardinha, comi o pão que o diabo amassou”, relata e ri. Sempre com um bom humor no rosto, ela não demonstra dificuldade alguma em contar a história de uma fase difícil na vida. 

Adoecimento

O impacto emocional de uma dívida pode acarretar danos imediatos e de longo prazo, segundo explica a psicóloga Lucianna Brasil. De acordo com ela, o endividado está em uma situação de adoecimento e de compensações. A especialista relata que são muitos os pacientes que se endividam por estarem descontando outros problemas nas compras, e que, no consultório, o endividamento é tratado como uma compulsão.  

“O paciente vai mesclando problemas desse tipo. Para de gastar mas aí começa a comer demais, para de comer mas começa a beber demais. Muitas vezes, o problema se apresenta dessa forma”. 

No caso de Joana*, somou-se a situação de dívida da família com o momento de adolescência. “Naquela fase em que todos somos rebeldes, comecei a matar aula da escola para sair e beber com meus amigos, mas nunca fui de tirar notas baixas. Tinha facilidade na escola e, por não achar que precisava ir pra aula, eu matava pra beber e fumar”.

Ela diz que gostaria de fazer acompanhamento terapêutico, mas não acha que isso é possível. Apesar de reconhecer o trabalho dos profissionais da psicologia, ela lembra que o reconhecimento tem um preço e, no momento, não possui condições ainda. Outra queixa é o tempo que falta na rotina. 

“Indignas”

Também procurada pela reportagem, a psicóloga clínica Rita Rocha, profissional com formação em traumas e fobias, afirma que, para muitas pessoas, o estresse financeiro acaba se tornando em algo de grande magnitude pois as dívidas mexem diretamente com a sua dignidade, como no caso daqueles que se veem em dificuldade para arcar com custos de elementos essenciais, como água e luz, por exemplo.

“Essas dívidas fazem com que as pessoas se sintam indignas, se sintam desvalorizadas. A situação que mexe com a dignidade é algo difícil de ser revertida”.

De acordo com ela, esses pensamentos negativos começam a permear o indivíduo, fazendo com que, além de apresentar altos níveis de estresse, desenvolva doenças relacionadas às questões emocionais e psíquicas, o que faz com que tenham de lidar com emoções que não conseguem controlar, como o sentimento de menos-valia e a impotência, por exemplo. 

Segundo ela, são nesses contextos onde entram em cena os momentos mais difíceis: as dificuldades que começam a afetar o cotidiano, o dia a dia, que, através justamente das respostas do corpo, atravessam diversos momentos que, muitas vezes, deveriam servir para finalidades positivas. 

“O indivíduo preocupado e  estressado por conta da existência de um problema como uma dívida, acaba por ter lançado em sua corrente sanguínea o cortisol”. Rita explica que, através disso, são provocadas consequências como a ausência do sono e a alteração do apetite, por exemplo. 

Explorados

De acordo com uma pesquisa realizada pela Confederação Nacional do Comércio, no último mês de abril, o índice de famílias com dívidas em Brasília ultrapassou os 80%, além de estar acima da média de endividamento de todo o território nacional, que é de 77,7%. 

Os motivos para isso, segundo Larissa Lancaster, advogada da Associação dos Consumidores Explorados do DF (ACODE), são a desorganização financeira e, principalmente, a abundância de empréstimos feitos junto a instituições financeiras. 

“Quando as pessoas não dão conta de pagar suas dívidas com o valor do salário, com o valor da renda familiar, elas têm uma tendência a procurar empréstimos”, explicita. 

Ainda segundo a advogada, os empréstimos são feitos pelo desejo das pessoas em realizarem seus sonhos, como a compra de uma casa própria, ou de um veículo próprio, por exemplo. Por isso, se comprometem com essas instituições, mas terminam por não possuir o suficiente para pagar essa dívida, por não terem realizado um planejamento da forma devida. “Esses empréstimos acabam virando uma bola de neve nas vidas das pessoas, porque elas nunca mais conseguem sair daquilo”, explica ela. 

Por conta de uma população majoritariamente de classe média, de servidores públicos, a advogada  entende que, no Distrito Federal, há um cenário um pouco diferente do restante do país. “As pessoas aqui têm uma possibilidade e uma vantagem muito alta de crédito”. 

Segundo ela, o banco já libera valores altos e de fácil acesso para essas pessoas, que são funcionários públicos, e o que vemos, atualmente, é uma classe que, além de altamente endividada, não recebeu instrução financeira adequada, mesmo tendo usufruído de educação de qualidade. 

Por não saber administrar o que ganha, o recém-empregado acaba dando a largada para a sua vida adulta já endividado, o que tem se tornado comum, assim como a ausência de bens e um patrimônio próprio.

“Tenho plena certeza de que falta educação nesse sentido. A presença de uma educação financeira na vida de qualquer criança é essencial para a vida adulta”, sintetiza a advogada. 

As complicações geradas pelas dívidas, como se não bastassem, são ainda acompanhadas de desgastes mentais. “A dívida gera um desgaste emocional muito grande, pois possui consequências muito amplas, não somente para a pessoa em si”, argumenta a advogada Larissa Lancaster,. 

Conforme relata, o indivíduo que está em débito financeiro é afetado em diversos campos de sua vida. O endividado passa a ter problemas em seu emprego, pois passa a duvidar da sua capacidade profissional, por não estar produzindo o suficiente para quitar o que deve. “O sujeito pode acabar se prejudicando até mesmo em um relacionamento afetivo, pois o marido paga uma conta maior, por exemplo, ou nenhum dos dois dá conta de pagar, e isso gera um grande desgaste, por fazer a pessoa se sentir incapaz”.

Uma pesquisa da Serasa em parceria com a OpinionBox mostrou que o desemprego é o principal motivo de endividamento e, de acordo com o levantamento anual, a pandemia afetou “totalmente” o bolso de 70% da população e cerca de 85% dos brasileiros têm dificuldades para dormir por estarem muito preocupados com as dívidas.  Confira aqui a pesquisa.

Leia mais: “O que esperar da economia após a pandemia

Por Gabriel Botelho e Lucas Fermon
Foto de capa: José Cruz / Agência Brasil

 

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