Na fila do Cras, brasilienses pedem socorro para ter acesso ao básico

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Eram aproximadamente 5h15 de uma segunda-feira, dia 7 de novembro de 2022, e ela estava lá, era apenas mais uma no meio da multidão. Não fazia diferença alguma. Cleide Assunção, uma baiana de 52 anos, mãe de três filhos, estava junto com outras mães na fila do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) de Ceilândia Norte desde às 2 horas da madrugada. O objetivo de tanta luta era conseguir uma senha de atendimento para tentar o benefício Prato Cheio, disponibilizado pelo Governo do Distrito Federal (GDF), e o Auxílio Brasil, do Governo Federal. 

Cras de Ceilândia Norte (Crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)

A temperatura beirava os 18 graus, mas o vento gelado deixava pior. Mesmo assim, lá estava ela com um casaco fino que aparentemente não barrava nem o vento, enquanto seus três filhos, um menino de 7 anos, e duas meninas, de 5 e de 2 anos estavam deitados em cima de um papelão e enrolados em uma coberta de manta fina para fugirem do clima gelado. Todos dormiam tranquilamente. A inocência e pureza de cada uma não deixava eles saberem da a situação em que estavam inseridos. 

Ao conversar com Cleide, a sua revolta com a situação e o cansaço eram transparecidos em cada detalhe do rosto. A moradora de Ceilândia conta que está desempregada e com aluguel atrasado.

“Eu morava com os pais das crianças. Ele até trabalhava, mas o vício pelas drogas era algo que estava me causando medo e colocando minha vida e das crianças em risco. Hoje, ele e nada são a mesma coisa. Sou eu por eles. E para conseguir o pão de cada dia eu vendo doces no sinal da Ceilândia enquanto deixo as crianças na escola. Só a mais nova que carrego comigo, mas em 2023 ela vai começar na creche”, conta Cleide. 

Até o horário da conversa, a única refeição feita por eles tinha sido no dia anterior, por volta das 20h, mas a matriarca tinha levado quatro pães de sal para comer no período da manhã. Com isso, questiono quando será a próxima refeição e ele responde: “Quando conseguir ser atendida aqui tenho que pensar no que fazer”. 

Essa não é a primeira tentativa dela no Cras. “Já é a segunda vez que tento atendimento, na primeira eles distribuíram apenas 20 senhas e não consegui nenhuma, mesmo ficando 8 horas na fila, mas vou seguir tentando, pois as coisas não estão fáceis não”, expressa. 

Ela pega a sacola de pão, me mostra e fala: “até o momento, a única comida que já tenho garantida para meus filhos hoje são esses pães”. “Pior que nem para escola vou levar eles, e também não vou conseguir vender os doces porque estou na fila”, completa.

Cleide comenta que o “quebra galho do dia a dia” é a merenda escolar que as crianças têm garantida. Após quase 10 minutos de conversa, ela prefere parar de falar, pois sua caçula acordou.  

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O problema da falta de atendimento não é algo recente. Ao longo dos últimos meses, famílias de baixa renda do DF vêm sofrendo nas filas de acolhimento do Cras. Em agosto, por exemplo, uma mulher morreu após passar mal na fila. Ela foi levada ao hospital, mas não resistiu. Já no mesmo dia da entrevista com Cleide, uma outra mulher sentiu-se mal no Cras do Paranoá. As duas estavam tentando apenas atualizar o cadastro. Acontece que o Cras disponibiliza a senha uma vez por mês, o que acaba ocasionando muitas vezes e confusão por parte dos não atendidos.  

Agravada pela pandemia de covid-19, a pobreza no Distrito Federal não poupou vítimas. Segundo a Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes), em abril de 2022, o número de pessoas de baixa renda na capital do país é de 222.430. Os números fazem parte do Cadastro Único e atualmente, de acordo com a Agência Brasilia, em 2022, apenas 87.721 pessoas são agraciados pelo programa que concede benefício mensal de R$ 250 para as famílias com renda per capita de até meio salário mínimo. 

Sofrimento familiar e falta de informação

No mesmo dia, em outra unidade do Cras, desta vez em Taguatinga, vejo uma multidão contestando a falta de senhas e, ao mesmo tempo, gritando: “Ei, Ibanez, pobre também é gente”. A cena me chamou atenção. Quando me aproximo, na mesma hora me deparo com uma moça jovem, aparentemente saudável, sozinha e branca (haja vista que maioria das pessoas na fila eram mãe negras). Todas essas características de Magia Denise de 49 anos chamou minha atenção e me fez pensar o que uma moça com características de uma pessoa privilegiada precisa de auxílio – admito que no momento o preconceito falou mais alto que eu. 

Ao me apresentar, explico o meu trabalho e pergunto o que ela faz ali. Ela olha fixamente nos meus olhos e diz: “Ah que bom, um jornalista! Eu só quero atualizar meu cadastro e nunca consigo. Eu tentei tirar a senha por meio do telefone 156 e nem sequer chamou. Divulga essa falta de respeito pelo amor de Deus!”, clamou. 

Magia, revoltada com a situação,  explicou que já estava há um tempo tentando a atualização de cadastro para voltar a receber auxílios sociais. Ela mora com sua mãe, Adalgisa, de 89 anos, e vivem exclusivamente apenas da aposentadoria. 

“Hoje moro sozinha com minha mãe, eu vivo para cuidar dela, ela não consegue fazer nada sozinha. Ela só tem a mim. E sinceramente, é muito angustiante, o que nos salvam muito são as doações, mas mesmo assim está complicado. Às vezes amanhece e não sei o que fazer”, explica Magia. 

A mãe de Magia era uma beneficiária dos programas sociais do governo, mas perdeu os benefícios devido às faltas de atualização cadastral. De acordo com ela, já é o terceiro mês que tenta o atendimento e não consegue a senha. 

“O problema é a questão das senhas distribuídas, são poucos comparadas ao número de pessoas. No dia de distribuição eles fazem o agendamento pelo número 156 mas nem chama. Aí descobri hoje que a melhor forma de conseguir uma é acampando na fila do Cras”, explica.

Entre as várias reclamações de Magia, pergunto qual é a maior dificuldade enfrentada por ambas. De acordo com ela, a pior parte são os remédios da mãe. Adalgisa, que sofre de plaquetas baixas, faz uso recorrente do remédio revolade, onde uma caixa com 14 comprimidos custa em torno de R$ 2.300. Adalgisa necessita de 30 comprimidos por mês.  

“Ela já está a mais de dois meses sem tomar a medicação porque o remédio simplesmente não chega nas farmácias de alto custo. E eu não tenho a menor possibilidade de comprar. E nessa a saúde dela só está se deteriorando. Eu realmente fico sem norte, desorientda”, desabafa. 

A essa altura da conversa, as emoções já dominam Magia, a inquietação era algo incontrolável. Nesse momento, aproveito e questiono sobre a importância desses auxílios, ela olha para mim, seca os olhos, rapidamente muda a expressão, levanta as sobrancelhas e diz: “garoto, a aposentadoria de minha mãe paga só o aluguel, comida a gente sobrevive por meio das doações da igreja. Nunca estive em uma fase tão complicada”.

Apesar de todas as barreiras, a fé e devoção é algo visível em Magia. No meio da multidão, chama a atenção um terço usado por ela como se fosse uma pulseira e uma camisa estampando Nossa Senhora de Aparecida. Segundo ela, buscar a Deus e frequentar a igreja são as únicas coisas que a acalmam e ajuda. 

“Sempre que posso estou lá. É o único momento em que me distraio e que tenho ajuda. Afinal, já faz uns dois meses que estamos sobrevivendo com as doações de igreja”, disse e se benzeu em sequência. A ação parece ser um ritual que a faz acalmar.

Após algum tempo de conversa, Magia recebe uma ligação, puxa do bolso um telefone de botões e vê que é sua vizinha que estava cuidando de sua mãe. Sem muitas palavras ela olha para mim e fala: “preciso ir”. 

Diante das acusações da demora e falta de atendimento o Sedes informou a seguinte nota:

A Secretaria de Desenvolvimento Social informa que está empregando a metodologia de agendamento mensal e a quantidade de agendamentos varia de acordo com a capacidade de atendimento de cada unidade. Não obstante, as famílias saem com data e horário para atendimento.

A nível de comparação, anteriormente, o cidadão se deslocava dia após dia para as filas e sem a certeza de quando ou se seria atendida. Atualmente, o agendamento ocorre de forma mensal, ou seja, um único dia, e sai de lá com a data e horário que será atendida.

A Pasta ainda informa que vem implementando seguidas ações para viabilizar o atendimento ao cidadão. Dentre as ações, destacam-se:

1 – Reestruturação do quadro de pessoal, com mais de mil nomeações de novos servidores da carreira de assistência social;

2 – Ampliação da carga horária dos servidores de 30 para 40 horas;

3 – Depois de 10 anos sem inauguração, abrimos 4 unidades nesta gestão: 2 CRAS (Sol Nascente e Recanto das Emas), reabertura do CRAS Samambaia Expansão e um CREAS em São Sebastião;

4 – Equipe móvel para as regiões com maior índice de vulnerabilidade social. Só esta equipe faz uma média mensal de 2,5 mil atendimentos;

5 – Parceria com uma organização da sociedade civil colocando mais 14 pontos de atendimento de cadastro único, sendo que todos já estão em pleno funcionamento.

6 – Convênio com o Corpo de Bombeiros para realizar mutirões aos sábados para preenchimento e atualização do Cadastro Único nos CRAS;

7 – Atuação conjunta com a EMATER, com foco no atendimento das famílias residentes na zona rural do Distrito Federal;

8 – Atendimento da SEDES nas 7 unidades do NA HORA, sendo que antes não tinha.

9 – Parceria com a DEFENSORIA PÚBLICA DO DF para reforço nas ações de atendimento a pessoas que precisam de atendimento socioassistenial.

Neste ano, após dois anos de pandemia da covid-19, as famílias foram convocadas para atualizarem seus Cadastros Únicos. No DF, o quantitativo de famílias com essa pendencia era de cerca de 70 mil. Por meio de todas essas ações, foi possível uma redução para a casa de 5 mil, que seguem sendo convocadas pela SEDES.

Já quanto a quantidades de pessoas que são beneficiadas pelo Prato cheio, também, por meio de uma nota, o sedes informou o seguinte: 

Primeiramente, é importante destacar o que é o Prato Cheio:

– Benefício mensal de R$ 250 concedido em situação temporária de insegurança alimentar e nutricional. Durante nove meses, as mães chefes de família, público prioritário do programa, podem utilizar o Cartão Prato Cheio para fazer compras no comércio local. O Prato Cheio não é um programa de transferência de renda como DF Social ou Auxílio Brasil. O benefício é concedido por um período determinado para dar suporte às famílias vulneráveis em um momento de crise. Por isso, a renovação não é automática. Têm prioridade para receber o benefício as famílias monoparentais chefiadas por mulheres com crianças de até 6 anos de idade e aquelas que têm na composição familiar pessoas com deficiência ou idosas, além das pessoas em situação de rua, acompanhadas por equipes da assistência social e em processo de saída dessa condição.

É preciso lembrar que, até 2019, ele não existia e o atendimento das famílias era feito por meio de cestas emergenciais (cestas básicas), com uma média mensal de 8 mil cestas. Implantado e fortalecido, o Prato Cheio passou a oferecer um valor maior que a cesta básica tradicional. Além disso, foi ampliado para mais de 87 mil concessões mensais por um período de nove meses.

Dito isso, é preciso destacar que, atualmente, o Prato Cheio contempla mais de 87 mil famílias por mês. No entanto, desde sua implantação o programa já beneficiou mais de 230 mil famílias, ou seja, mais do que o número citado de pessoas em situação de baixa renda. Ocorre que o objetivo a Política de Assistência Social é justamente que essas famílias se empoderem e consigam superar a situação de vulnerabilidade, o que pode ter ocorrido.

Por Luis Fernando Souza

Supervisão de Luiz Cláudio Ferreira

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