Racismo religioso: em 3 anos, houve 52 denúncias no DF, mas só 19 tiveram evolução na investigação

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Foto: Valquíria Velasco. Altar de ritual da Umbanda

Neste ano, uma aluna sofreu racismo religioso no Centro Educacional 3 de Sobradinho, uma escola cívico-militar da região, por usar um colar característico de religiões de matriz africana, como Umbanda e Candomblé.

Autoridades da escola exigiram que ela não utilizasse o objeto no ambiente escolar. Ao se recusar a atender à exigência, uma tenente da instituição tentou tirá-lo à força.

A família da jovem, um sacerdote e a direção da escola se reuniram a fim de solucionar a situação. Na ocasião, a tenente se desculpou e os integrantes concordaram que a menina poderia usar o objeto por dentro do uniforme.

O caso foi denunciado na Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa, ou por Orientação Sexual, ou Contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência (Decrin).

Segundo a Polícia Civil, essa foi uma das 52 denúncias de discriminação religiosa nos ultimos 3 anos no Distrito Federal, mas apenas 19 delas tiveram procedimentos instaurados. De 2021 para 2022, houve um aumento de 13% nos registros.

De acordo com os estudos da historiadora Valquíria Velasco, o racismo religioso reforça crenças pregadas ainda no período do Brasil colônia. “Até hoje, nós temos um sistema político e educacional que nos atrela a valores colonizadores”. 

A especialista, que estuda racismo religioso há oito anos, explica que o preconceito contra religiões de matriz africana no Brasil começou com a colonização do povo africano no território brasileiro, por volta de 1535. Nesse tempo, tudo o que vinha do continente africano, inclusive pessoas negras, era visto como negativo e sofria repressão.

Em 1830, ainda durante a escravidão, D. Pedro I assinou o primeiro código penal do país, que perdurou até 1890. O documento definia punições distintas para negros escravizados e cidadãos livres, mesmo que os crimes cometidos fossem os mesmos. Entre as punições dos escravos estavam os açoites, pena proibida para os demais indivíduos. Em 1888, a Lei Áurea libertou os escravizados, mas não providenciou recursos que hoje são entendidos como básicos para uma vida digna.

A ditadura militar (1964-1985) foi outro período que “intensificou a repressão que já existia”, explica Valquíria Velasco. Segundo ela, existiam decretos que exigiam que os líderes dos terreiros, conhecidos como pais e mães de santo, informassem os horários que seriam realizadas as sessões religiosas. 

Então, policiais verificavam se os rituais estavam acontecendo fora dos horários,“de acordo com a vontade deles”. Caso estivesse, todos eram direcionados para a delegacia. Essa repressão se dá devido às suspeitas de que os rituais fossem, na verdade, reuniões de grupos de resistência disfarçados. “A existência do terreiro, seja de Umbanda seja de Candomblé, é suficiente para estabelecer uma associação ao crime”, analisa Velasco.

Atualmente, existem leis que combatem o racismo religioso. O professor e mestre em direito, Tédney Moreira, destaca que o Código Penal define como crime atos como escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crenças. A lei também proíbe o impedimento ou perturbação de cerimônia ou prática de culto religioso. A pena pode chegar a um ano.

O advogado ainda enfatiza que o Estatuto da Igualdade Racial, Lei 12.288/2010, define a liberdade de consciência e de crença como inviolável. No artigo 26 do documento,  determina-se o dever de o poder público adotar as medidas necessárias para o combate à intolerância com as religiões de matrizes africanas e à discriminação de seus seguidores.

Apesar da legislação vigente defender a liberdade religiosa, o preconceito ainda afeta a vida de muitas pessoas. Carlos Juca Pacheco, conhecido como Pai Juca Violeiro, pratica a Umbanda há 25 anos, aproximadamente. Ele admite que conhece a religião há muito mais tempo, mas demorou para se aprofundar devido ao preconceito que ele mesmo sentia. 

Pai Juca conta que já sofreu olhares preconceituosos em diversos lugares. No trabalho, foi demitido por uma chefe evangélica e acredita ter sido por sua religião. Também foi expulso de um condomínio, no Paranoá, onde tinha um terreiro. Entretanto, o local permitia a existência de templos de religiões cristãs.

O pai de santo também conhece pessoas que sofreram algum tipo de racismo religioso, mas não houve denúncia em nenhum dos casos. Ele explica que denunciar ainda é pouco habitual porque, segundo ele, “o que é comum na nossa religião é se retrair. Essa questão de dar voz é algo muito recente. Se uma pessoa sofria preconceito (religioso), se calava e ficava por isso mesmo porque a gente sabe como funciona essa perseguição no Brasil”.

Foto: Valquíria Velasco. Ritual umbandista

Para a historiadora Valquíria Velasco, a melhoria do cenário de racismo religioso no país depende de iniciativas do Estado e da sociedade.

A especialista defende que as leis de criminalização do racismo religioso devem ser mais efetivas. Uma outra medida que pode ser adotada é a disponibilização de bolsas de estudo em instituições que tenham interesse em estudar essas temáticas.

Ela ainda ressalta a necessidade de formação de profissionais, como policiais civis, a fim de que não reforcem os preconceitos em sua atuação, mas o combatam.

Por outro lado, a coletividade precisa ter mais interesse em entender e debater o assunto “para não continuar reproduzindo falácias que são impregnadas na sociedade”.

A importância de políticas públicas que incentivem esse debate se justifica devido à falta de interesse por parte de quem pratica o preconceito.

“Não dá pra esperar as pessoas terem interesse em se informar sobre o assunto porque quem tem interesse é quem sofre com isso e não quem pratica”, defende Velasco.

Porém, ao buscar informações na internet, por exemplo, é importante se atentar à fonte do conteúdo.

A historiadora alerta que os resultados das buscas são, geralmente, casos de pessoas sofrendo racismo religioso ou conteúdos que apresentam as religiões de matriz africana como algo negativo. Segundo ela, as melhores fontes são livros e pesquisas acadêmicas.

Por Maria Cecilia Lima

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