Negro, publicitário conta que não quer sair da periferia de Santa Maria (DF) porque sente acolhido; ao contrário da forma que se sente quando vai ao Plano Piloto
14h17. Esse é o horário que nossa entrevista começou. Ele não sabia que tinha começado ainda. E eu também não deixei claro. Para falar a verdade, não sei quem estava mais nervoso. Fui recebida com um aperto de mão bem firme. Apertei a mão dele, sorri, e disse “prazer, Caio”. A cara seguiu fechada.
O amigo dele, Bryan, meu companheiro, nos direcionou ao local que seria mais confortável para a gente sentar e conversar. Eu me sentei em uma cadeira giratória, e avisei que começaria com perguntas introdutórias, como “qual o seu nome completo?”, e que ele pudesse me contar partes de sua vida à medida em que se sentisse confortável.
De primeira, parecia nervoso. Não sorria. Apenas respondia às perguntas e logo se calava. Quando brinquei que ele se vestia como um adolescente, principalmente porque completou 37 anos recentemente (no dia 7 de março), ele me respondeu que se veste assim por influência do skate. Andou dos 13 aos 22 anos. Hoje, não é mais uma prática.
Participou até de campeonatos. “Cheguei a ganhar umas coisinhas [com os campeonatos]…”, ele conta. “Daí, veio o grafite”. Nesse momento, senti que uma barreira foi derrubada. Caio narra sua retrospectiva na cultura do grafite com um sentimento saudosista. Ele começou a pichar, por influência do grupo de skate, e depois conheceu o bomb (uma forma de grafite).
Ainda no ensino médio, aspirando ser um atleta profissional de skate, Caio César Silva Ferreira conheceu uma crew do grafite durante um evento de skatistas. No entanto, ele não sabia que o grafite era uma expressão de arte. “Para mim, era uma agressão”. Logo, ele conheceu várias técnicas da expressão. Uma professora de artes observou o interesse por desenhos e o incentivou a participar de uma feira de profissões que ocorreu na escola. Lá, ele prestou um workshop ensinando a técnica dos sprays e dos pincéis e se surpreendeu: teve mais público do que esperava. “Fluiu bem, a galera aprendeu e pediram até mais. Mas como era o último ano, não tinha como”.
“O que que eu vou fazer?”. Já com 20 anos, Caio terminou o ensino médio. Já era tarde para se profissionalizar no skate. E a arte… A arte ainda mexia com ele. Foi quando um colega que estudou com ele o convidou para ser professor de grafite em uma Organização Não Governamental (ONG) na Cidade Ocidental, no Goiás, chamada Judec. “Vamos lá!”, ele contou sorridente. À época, o grafiteiro morava em Valparaíso de Goiás (GO) e pegava um ônibus que levava 20 minutos para chegar ao local de destino. Com o tempo que tinha livre, conciliava os estudos para o vestibular da Universidade de Brasília (UnB). Não foi muito tempo até ser aprovado para o curso de Artes Visuais no período noturno. Eis então a nova rotina: Caio acordava, pegava um ônibus do Valparaíso de Goiás para a Cidade Ocidental, depois para a UnB, e depois voltava para casa.
Na Judec, o objetivo do professor era ensinar o grafite como arte. Mostrar o movimento. Ele conta que tinha aluno de até de 60 anos de idade. “Para eles, era uma terapia”. No entanto, passava por alguns perrengues durante as aulas: percebia gente que não queria estar ali de verdade, e desabafou: “a maior frustração de um professor é não conseguir dar um caminho ao aluno”. Caio se sentia na responsabilidade de influenciar positivamente na vida dos estudantes, visto que a ONG era localizada em uma área periférica, composta por pessoas em situação de vulnerabilidade por conta do alto índice de criminalidade no local.
Hoje, Caio é publicitário. Eu questionei o porquê de ele ter decidido parar de lecionar. Ele conta sem muito segredo que, durante o período de estágio obrigatório em uma escola no Céu Azul, no Valparaíso de Goiás, um adolescente pulou o muro, entrou na sala de aula e deu um tiro na cabeça de um de seus alunos.. “Foi um baque grande, mas como eu nasci e cresci na periferia, e tive amigos que foram assassinados perto de mim, você cria esse costume. Você cresce com esse costume”. Daí, eu entendi. Eu entendi que o aluno assassinado foi mais uma pessoa que Caio vira morrer. Não como se o adolescente fosse mais um; mas ele não tinha como mudar a situação.
Nascido e criado em Valparaíso de Goiás (DF), ele e a esposa, Karolliny Medeiros Costa, dez anos mais nova do que ele, não pensam em sair de lá. “Por que continuar na periferia?”, eu perguntei. “Nós gostamos de lá por nos identificar com as outras pessoas”, ele responde. E continua, com um ar de satisfação: “quando você vai para outro lugar, te olham diferente do que você realmente é”. Caio é um homem preto, e Karol, como ele a chama com muito carinho, é uma mulher branca. Eles compõem um casal que “foge dos padrões”. Relatado por ele, Karol sofre mais preconceitos porque tem o cabelo bem curto, e é olhada de cara feia muitas vezes.
Sinto um certo receio vindo dele em falar sobre situações de racismo que sofreu. Inclusive, ele foi vítima de racismo na semana passada. Caio estava aguardando o elevador no prédio do local onde trabalha, na Asa Norte, quando três homens brancos engravatados pararam ao lado e também aguardaram. Quando o elevador chegou ao térreo, os três entraram e disseram para ele: “você não pode entrar. Vamos ter uma conversa. Pegue o próximo”. Como assim Caio não pode entrar no elevador do trabalho? Que tipo de conversa três homens brancos vão ter que ele não poderia ouvir, ou então, conversarem no escritório? A indignação de todos que ouviram a história parece ser maior que a de Caio, que foi vítima de um crime. Ele conta a situação muito sem graça. Então, eu me dou conta: não é falta de indignação, é vergonha.
Por Evellyn Paola
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira