Em um cenário tecnológico complexo, profissionais discutem novos desafios da carreira
Nem toda criança pôde brincar de ser fotógrafo. Algumas já tiveram suas próprias câmeras fotográficas, parte delas deixou uma possível vocação de enfeite na estante e vez ou outra passaram seus olhos sobre o visor para capturar retratos de família na ceia de Natal ou em uma das férias de verão. Outras passaram a enquadrar tudo à sua volta com objetivo de ter para si um mundo que já existe. Não sejamos ingênuos, o universo da fotografia é orbitado por subjetividade e intenção, mesmo que no passado das seguintes personagens contenham possíveis fotos com rostos atrás de garrafas pet ou postes de luz sobre as penumbras de um pôr do sol, as mesmas enfrentam um mercado (do fotojornalismo e da fotografia) que sofre das tênues interpretações sobre seus trabalhos.
Intenção não é resposta.
A foto como registro documental é fruto de muito trabalho sobre um espectro do real em alguns frames. Em entrevista com Isabella Lanave, jornalista, fotógrafa ( eleita em 2017 pela revista Time como uma das 34 fotógrafas pelo mundo a se seguir) a imagem é independente da intenção de quem a produz “a partir do momento que ela (a imagem) existe no mundo, a intenção na qual ela foi feita não irá guiar quem a ver” . Sobre esse fenômeno o fotógrafo, pesquisador e professor de fotojornalismo Lourenço Cardoso defende que isso faz parte da produção fotojornalística “O fotojornalista sempre teve que enfrentar essa dificuldade de poder dar a visibilidade, a ênfase e o contexto exato daquilo que foi realizado […] e utilizada (a foto) fora de contexto foi algo que até as próprias redações já fizeram”.a
Há algo de infantil em todas as pessoas que conseguiram se tornar o que queriam quando crianças, talvez os versos da composição de Cazuza e eternizados pela voz de Ney Matogrosso em Poema representem bem aqui o processo de liminaridade que um fotojornalista tem que fazer pela sua paixão, a fotografia: “De repente, a gente vê que perdeu ou está perdendo alguma coisa morna e ingênua, que vai ficando pelo caminho. Que é escuro e frio, mas também bonito, porque é iluminado pela beleza do que aconteceu há minutos atrás “. Contudo, as limitações dos meios quentes também responsabilizam seus produtores para com quem eles fotografam.
Dessa forma a data que marcava a primeira câmera fotográfica que chegava ao Brasil, 8 de janeiro, foi em 2023 ferida pela infeliz coincidência dos atentados golpistas de manifestantes prol ao ex-presidente Jair Bolsonaro (2019 – 2022) em Brasília. A violência cometida por esses (apoiadores do ex- presidente) aos repórteres fotográficos identificados por eles no atentado, representam os desafios e um dos riscos que os fotojornalistas correm. A ameaça feita à democracia brasileira foi altamente veiculada às fake news, denunciando a necessidade do apoio a instituições de pesquisa e a verificação de fatos. Gabriela Biló, fotojornalista da Folha de S. Paulo e vencedora do prêmio Vladimir Herzog, acredita que a função do fotojornalista está aí “o papel do fotojornalista é sempre defender a democracia e servir a sociedade, para uma sociedade mais justa e igualitária”. Sobre esse evento houveram algumas polêmicas envolvendo uma foto do presidente Lula registrada pela Biló.
O consenso geral entre os profissionais da área sobre a impossível neutralidade das imagens, por carregarem consigo as subjetividades que um enquadramento pode ter, não traduz as expectativas do leitor, Lanave em nossa entrevista fala sobre o assunto: “a gente não sabe ler imagens com todas suas camadas” . As discussões sobre a leitura das imagens fotográficas é uma pauta que ronda majoritariamente pessoas do meio, como o professor Lourenço Cardoso afirma “existe sim uma potencialidade das imagens que está fora das mãos do fotógrafo. A imagem é viva e você só pode controlá-la até a publicação”.
A foto em primeiro plano, o presidente está sorrindo para baixo enquanto segura sua gravata e sobreposto a um registro dos vidros quebrados no atentado do dia 8 de janeiro, a foto como um todo, Lula parece (de forma figurativa) ter resistido a um tiro. Várias opiniões surgiram a partir dessa foto, sendo mais facilmente divididas entre: aqueles que viram sensibilidade e precisão (ao que se refere a compreensão e síntese daquele contexto) no registro e, os que enxergam essa foto como passível a apropriação negativa da oposição, esses questionam se era o momento certo para publicar a foto e o valor ético da múltipla exposição no fotojornalismo.
A técnica da múltipla exposição feita originalmente por uma câmera, consiste em registros feitos em um só filme. Ao invés de rodar o rolo para fotografia ser registrada em outro frame, o fotógrafo segura o rolo para sobrepor uma foto à outra. Sobre esse evento Biló diz “o problema não é a técnica em si, o problema foi a falta de visão crítica sobre a situação[…] não é uma foto que coloca Lula como um Deus…é uma foto que coloca o Lula como símbolo da democracia e a democracia sendo atacada. Mostra uma fragilidade… e as pessoas não gostaram disso”. Ainda sobre o assunto ela diz “vários fotojornalistas de agências internacionais usaram a técnica (múltipla exposição) para fazer fotos do Bolsonaro” relembra ela de uma do ex-presidente com alvo na cabeça, Gabriela diz que suas fotos usando o mesmo método na foto de Marina Silva e na dupla exposição feita de Pazuello sobreposta aos números de mortos da Covid-19 foram recebidas bem pelo público. “ Você pode criticar a foto, mas atacar a técnica é um debate meio raso.
Novas Inteligências .
A história sempre nos mostrou o medo humano a mudanças e apesar de intrigante à Inteligência Artificial chega causando alguns temores. O professor e pesquisador em fotojornalismo Lourenço Cardoso discute as incertezas das novas imagens algorítmicas. A fotografia intitulada The electrician, do fotógrafo alemão Boris Eldagsen, neste ano (2023) foi premiada pela Sony World Photography Award.
A foto produzida pelo alemão na verdade foi criada por IA e assim, o fotógrafo põe uma questão a público: se jurados especializados, do meio fotográfico não conseguiram diferenciar uma em produzida por inteligência artificial como o público de massa vai? Quais são as consequências disso?
O pesquisador acredita ser muito cedo para qualquer precisão em como o público vai receber essa nova ferramenta “o que podemos fazer é uma análise com o que nós já temos e de como as coisas têm sido operadas no campo da imagem” . As IA’s surgem das produções humanas colocadas em banco de dados, os riscos disso dependem unicamente da assimilação pública, como o potencializado aumento de fake news “infinitamente maior do que dos disparos por Whatsapp”, diz Lourenço. Em contrapartida o mercado publicitário pode otimizar seu trabalho e economizar dinheiro com esse novo dispositivo, talvez as agências de modelos sofram com a possibilidade de corpos totalmente criados.
![](https://agenciadenoticias.uniceub.br/wp-content/uploads/2023/06/LOURENCO-768x1024.jpeg)
A fotografia como documento já foi colocada em questões em vários momentos com a chegada de novas ferramentas ou até com a montagem de cenários, como o caso lembrado por Cardoso do fotógrafo e geógrafo brasiliense Márcio Catral, que foi desclassificado de uma premiação por ter usado uma taxidermia de um tamanduá na foto selecionada para o prêmio, Catral não recorreu. O Photoshop colocou em pauta a verdade da fotografia quando surgiu e as câmeras já foram uma ameaça a pintura realista, mas todos esses elementos ganharam forma e público com o tempo, mas Lourenço termina a entrevista otimista “talvez daqui 150 anos, ou até menos que isso, a gente perceba que a inteligência artificial não se sobreponha a fotografia”.(
Uma outra maneira de construir portfolio .
Mesmo com as adversidades do mercado, fotógrafos vêm conquistando notoriedade nas redes sociais e se desprendendo do vínculo obrigatório com a mídia tradicional ” as redes sociais são uma ferramenta de libertação para você não depender só de veículos” defende Biló.
A adaptação a formatos, linguagens e ferramentas dentro dos campos citados acima representam avanços no universo vivo da fotografia que as redes sociais potencializaram. Em nossa conversa Luisa Dörr, fotógrafa (premiada pelo World Press em 2016) fala sobre como teve o seu trabalho reconhecido pela antiga editora de fotografia da revista Time, Kira Pollack devido ao projeto autoral #womantopography divulgado pelo Instagram, que buscava investigar o rosto de mulheres a fim de transparecer a narrativa das mesmas. Esse reconhecimento a levou a fotografar 46 retratos das mulheres mais influentes no mundo no projeto multimídia Firsts da revista Time, em 2017.
Luisa ao contar sobre o projeto para a revista revela as dificuldades de ter feito capas como a de Oprah Winfrey ou da Aretha Franklin com celular, que na época ela lembra de ter sido um Iphone 5s: “Eu tinha uma ideia bastante romântica no início, que teria tempo suficiente para os retratos, um cenário que fosse me ajudar com as narrativas da história de cada uma”. Mesmo com o tempo reduzido de 2 a 10 minutos com cada uma em espaços já determinados (alguns que ela conseguiu mudar, outros não) com luz natural e a ajuda de um rebatedor e um assistente, a mesma grata é pela oportunidade e diz ter se tornado “sem dúvidas uma pessoa mais criativa” depois desse trabalho.
A responsabilidade.
Sobre as fragilidades de um take, Isabella Lanave, que teve destaque internacional por dedicar alguns de seus cliques às delicadas pautas sobre saúde mental e a neurodivergência com seu projeto colaborativo (também reconhecido e divulgado pelas redes sociais): Fátima, nasce com a fotógrafa usando sua câmera como ferramenta para se aproximar de sua mãe e entender as complexidades do diagnóstico de bipolaridade dela. Lanave dentro da fotografia documental revela sua preocupação com os cuidados que devem ser tomados ao fotografar pessoas em estado de vulnerabilidade. “Uma imagem pode ter mil interpretações[…] e podem reduzir pessoas, reforçar estereótipos”. Formada em jornalismo, a fotógrafa curitibana viu suas potencialidades diminuídas com a velocidade do fotojornalismo, mesmo também se denominando como uma, ela se aproxima de outros lados da fotografia: como a documental. “Me sinto como alguém que cria imagens para contar histórias, entendendo a partir disso: para onde, para quem e, de qual forma” Isabella a respeito de seu método de trabalho.
Susan Sontag diz na abertura de um dos ensaios (O heroísmo da visão), que compõem o livro Sobre fotografia :“Ninguém jamais descobriu a feiura por meio de fotos[…] Salvo nessas ocasiões em que a câmera é usada para documentar”. Novas aberturas no fotojornalismo estão aparecendo, mas aqui estão os relatos do esforço de uma profissão que exige o novo, o compromisso e a apuração.