Como em “Estela Sem Deus”, mulheres pretas relatam experiência ao reconhecer racialidade e preconceitos

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No livro “Estela Sem Deus”, de Jeferson Tenório, reflexões sobre o racismo estão impressos na obra, com o sofrimento da personagem protagonista, “uma jovem, negra, de periferia, curiosa, inconformada, descrente, abusada, violentada, sexualizada e diminuída”. Ela demorou a se reconhecer como uma mulher negra. Na vida real, esse é um percurso também transformador.

“Tive uma dor no peito e que me trouxe outra revelação: a de que Deus era, na verdade, minha mãe limpando o chão nas casas das madames”

Estela sem Deus

Na vida real da psicóloga e empreendedora Rita Rocha, 48, ela explica que demorou a se reconhecer como uma mulher preta, justamente por conta da criação de sua mãe, que nunca se enxergou como preta, e uma vez questionada o motivo das brincadeiras e apelidos racistas, que sofrera na infância, retrucava algo como,  “minha filha, não ‘liga’, não”. 

Rita Rocha diz que demorou a se reconhecer como mulher negra. Foto: Arquivo pessoal

Influencia saúde mental

O distanciamento no combate ao racismo e em questões sociais pertinentes influencia na formação cognitiva dos jovens e tem relação intrínseca com a saúde mental.

Segundo dados estatísticos do IBGE e do Ministério da Saúde, a taxa de pobreza entre os negros é de 34,5%, enquanto entre os brancos é de 18,6%; o índice de suicídio entre adolescentes e jovens negros no Brasil é 45% maior que o da população branca; nos últimos anos, o risco de suicídio ficou estável entre os brancos, mas aumentou 12% para a população negra; e, além disso, jovens negros chegam a ter 45% mais chances de desenvolver depressão que os brancos. 

Cabelos crespos 

“…por isso comecei a ter inveja das meninas brancas, que não tinham problemas com o cabelo delas”.

Estela sem Deus

Outro ponto ressaltado por Rita, em meio as suas falas, foi o dos traços negros, especificamente, o cabelo crespo.

“Ela sempre foi daquelas mães que, enquanto a gente estivesse com ela, o cabelo estava liso. Não usava chapinha naquela época, era bobes e tudo mais. E até hoje ela usa o cabelo liso”.

No livro, Estela, com 16 anos, passou por um processo de compreensão dos seus traços como parte de sua identidade social apenas depois da vontade de ser, socialmente, inclusa e aceita.

Ela se chateava pela dificuldade de fazer amigos e demorou para perceber que os meninos não se aproximavam dela por conta da sua cor preta e do seu cabelo crespo.

Estela, então, relatou a sua mãe, que a incentivou a alisar o cabelo e, logo, tratou de “comprar um Henê para dar um jeito nesse seu cabelo duro”.

“Mulheres são mais cobradas”

A psicóloga especializada em saúde mental de pessoas pretas, Amanda Balbino, reafirma, que a questão do cabelo como um elemento de violência, tem, ainda, um fator agravante para as mulheres negras, destacando assim o machismo, como uma forma de relativizar os traços negros.

“O cabelo pode ser um alvo, os homens negros não são tão cobrados por questões estéticas, já as mulheres têm essas cobranças pela questão da perfomance da feminilidade”. 

Psicóloga Amanda Balbino

Sexualização e sexualidade 

“…passei semanas ouvindo minha mãe dizendo, tá vendo, Estela, tá vendo o que dá não fechar as pernas. Hoje em dia está tudo perdido mesmo, as gurias não se dão mais o devido respeito”.

Estela sem Deus

“Afeto é negado”

A diretora de teatro, agitadora e gestora cultural, pesquisadora e mulher trans Ava Scherdien, identifica que o afeto para as pessoas negras sempre foi negado, desde a colonização até hoje.

“Por isso, existe um movimento de pessoas pretas procurarem se relacionar com pessoas brancas. Isso é um lugar de julgamento, mas entende-se que é um lugar até de conforto, de fugir um pouco da máxima da violência”.

Ela testemunha que, quando uma pessoa preta entra em local onde só estão pessoas brancas, há manifestações de estranhamento. “Mas, a partir do momento que ela está se relacionando com uma pessoa branca que é daquele local, ela vai ser recebida”.

Ava Scherdien

Sexualização

Para Rita Rocha, a sexualização de pessoas pretas se faz presente até mesmo em ambientes profissionais, em um consultório de psicologia durante um atendimento com um pai de um paciente.

“Eu percebi que esse pai se dirigia a mim de uma forma desrespeitosa, claramente, mas velada”. O pai demonstrava uma tentativa de sedução. Foi uma sessão bem pesada, bem carregada. Quando ele saiu eu estava exausta, parecia que tinha atendido 10 pessoas”.

A psicóloga Amanda Balbino salienta que a violência pode ser mais explícita, como situações de exclusão e bullying ou pode ser uma questão de autoestima, a partir de características ou traços, tudo isso fica muito marcado.

Racismo

Rita Rocha conta que passou por episódios de racismo ao fazer uma viagem para Porto de Galinhas, em Pernambuco, com a sua mãe e sua irmã, onde foram recebidas de forma ‘estranha’:

“O tratamento era muito diferente. Eles colocaram a minha mãe, que é uma senhora de idade, para carregar a mala. A leitura que eu fiz daquilo tudo ali, é que pensaram que três empregadas domésticas juntaram dinheiro para passar as férias na beira da praia”. Seguiram diferentes demonstrações de pouca atenção da equipe de hospedagem da pousada

A gerente, que era branca, conversou com a gente, e eu expliquei pra ela a situação. “Dissemos a ela que acreditávamos ser vítimas de racismo”.

Desde criança

Ava também relata como percebeu o racismo na sua vida, desde cedo. “Eu fazia balé na escola e uma menina pegou o discman de uma amiga minha e colocou na minha bolsa pra me acusar de roubo. E aí minha mãe foi até a escola e queriam me suspender mesmo eu dizendo que não tinha feito nada, então a menina se sentiu muito culpada e assumiu o ato”.

Mesmo assim, a coordenadora não quis acreditar. “Quando eu penso nesse fator de crianças, que às vezes, não tem um raciocínio lógico sobre o que estão fazendo… mas isso já era um ato racista. Por que ela pega um discman de uma menina branca e coloca na mochila de uma pessoa preta e acusa de roubo? Isso é o mais comum que tem hoje, em qualquer lugar vemos esse tipo de situação”.

Por Ana Carolina Rubo, Fabio Nakashima, Lucas Bohrer, Luís Lima, Luiza Freire e Lukas Cortez

Supervisão de Sandra Araújo e Luiz Claudio Ferreira

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