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Por Maria Eduarda Cardoso e Maria Paula Meira
Thaís Campos tinha 27 anos quando foi assassinada pelo ex-marido em 20 de junho de 2021. Ela era formada em odontologia, trabalhava para a Secretaria de Saúde do DF e tinha uma filha de dois anos.
Osmar de Sousa Silva tinha 36 anos na época do crime e comprou uma arma meses antes. Ele disse que iria deixar a filha no prédio onde Thaís morava em Sobradinho (região administrativa do DF) para atirar diversas vezes contra a ex-mulher. Quando ela já estava caída no chão, o assassino se aproximou e atirou mais uma vez.
Confira abaixo imagens desta história
- Thaís durante um ensaio fotográfico de natal
- Texto escrito por Thaís na sua época de estudante sobre as problemáticas do feminicídio
- Thaís aos 4 anos
Thaís e Osmar se conheceram em 2016 em um aplicativo de relacionamento. Eles oficializaram uma união estável em 2018, mas, em dezembro de 2020, decidiram terminar o relacionamento.
Andréia Campos, 48, mãe de Thaís, diz que no início eles pareciam ser um ótimo casal, ela só não sabia que Osmar já tinha duas acusações pela Lei Maria da Penha de um relacionamento anterior.
Escalada de violência
O caso ocorrido há dois anos foi um dos 24 feminicídios registrados em 2021. Na escalada da violência, o número de feminicídios e casos de violência doméstica no Distrito Federal disparou em 2023. Até a atualização desta reportagem, de janeiro a outubro deste ano, foram registrados 30 casos de feminicídio.
Esse número ultrapassa até o número de casos de 2019 (28), ano em que teve mais casos desde que os crimes passaram a ser marcados pela Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP-DF).
Os crimes de feminicídio passaram a ser registrados depois da aprovação da Lei Federal 13.104/15, conhecida como Lei do Feminicídio. Ela criminaliza o assassinato de mulheres cometido em razão de gênero, mulheres que morrem por serem mulheres.
Antes da aprovação, esse tipo de crime era caracterizado como crime passional, que se refere a crimes onde o autor comete um ato agressivo devido a um impulso, motivado por raiva ou outra forte emoção.
Entre janeiro de 2015 e outubro de 2023, foram registrados 178 feminicídios no DF, a faixa etária mais comum das vítimas era de 18 a 39 anos. Além disso, os casos são mais frequentes em zonas periféricas.
Violência na periferia
Ceilândia, Samambaia e Santa Maria foram as regiões com mais registros. Pelo menos 52% dos crimes foram realizados com arma branca e 74,3% no interior das residências das vítimas.
(veja aqui a evolução dos números)
O dia do crime
No caso da morte de Thaís, a mãe dele afirma que, mesmo sabendo que a filha havia sido baleada, acreditava que ela ainda estava viva. Enquanto Andreia ia a diversos hospitais pela cidade, o síndico do prédio onde a vítima morava já havia divulgado o vídeo de segurança que registrou o crime.
“Quando eu percebi que ela não tinha dado entrada em nenhum hospital, fui até a delegacia de Sobradinho. Quando eu cheguei lá, tinha mais de 20 pessoas. A Thaís morreu lá mesmo, no chão do prédio. Eu saí correndo, bati tanto a minha cabeça na parede, eu queria morrer naquele momento na porta da delegacia”, relembrou os momentos de angústia.
Thais relatava à mãe que se sentia perseguida pelo ex-companheiro. Ela não queria prestar queixa, pois acreditava que ele estava de mudança para Portugal e assim ela estaria “livre”
Ouça abaixo os áudios em que Thaís relata as perseguições que sofria
No início deste ano, Osmar, que está preso aguardando julgamento desde 2021, apresentou um atestado de insanidade mental, alegando um “surto psicótico” no dia do crime. A juíza do caso recusou o laudo e o assassino irá a júri popular em 14 de novembro. O homem só será julgado dois anos após o crime.
A violência começa muito antes…
O titular da Delegacia de Atendimento à Mulher de Ceilândia Rooney Matsui explica que a maioria das vítimas que sofrem tentativa de feminicídio ou do crime consumado já tinham um histórico de violência.
“Quase todas as vítimas de tentativa de feminicídio ou feminicídio têm a informação de que antes ela já vinham sofrendo violência. E, em especial, violência que caracteriza crime […] Aproximadamente 70% das vítimas de feminicídio consumado, ou seja, de mulheres que foram assassinadas pelos seus maridos, companheiros, namorados, elas nunca antes procuraram uma delegacia de polícia para denunciar o seu autor.”, afirma. Assim, a denúncia se torna uma ferramenta para proporcionar a liberdade para mulheres que estão inseridas no contexto de violência.
“Quando eu chegava em casa, tinha que tirar a roupa para ele olhar meu corpo pra ver se não tinha marca de outros homens […] Até que um dia ele cismou que meu corpo estava diferente e veio o primeiro tapa na cara, a primeira ofensa”. As imagens ainda estão vivas na lembrança da brasiliense Maria de Jesus**, de 35 anos de idade. Ela é moradora de Samambaia, região administrativa do DF, que fica a cerca de 37 km de distância do centro da capital federal. A realidade dela escancara o ciclo de violência que mulheres estão inseridas.
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O agressor de Maria tentou contato com ela “diversas” vezes depois do fim de um relacionamento violento que durou três anos. A história começou em 2018, quando eles se aproximaram e iniciaram a relação.
Maria conta que, no início, não via indícios de violência em seu parceiro, mas, com o tempo, as agressões tornaram-se corriqueiras. Não necessariamente eram agressões físicas, mas psicológicas.
“Ele me ligava no trabalho toda hora. Se outra pessoa atendesse, ele desligava. Só parava de ligar quando eu atendia. Tinha que mandar foto minha no telefone pra ele ter certeza que eu realmente estava na minha sala. Ficava horas em chamada de vídeo em silêncio para observar o que eu fazia no trabalho o tempo todo. E era assim pra todo lugar que eu ia”, disse.
Ela revelou que o parceiro estava inserido no mundo do tráfico de drogas e forçava sua participação naquele ambiente. “Uma noite estávamos na casa de um casal conhecido dele bebeu e usou droga. Quando chegamos em casa, começamos a discutir e nesse dia ele me bateu tanto que eu pensei que ia morrer. Depois de me bater, ele tentou se matar […] Eu tentei impedir e apanhei mais”, relembra.
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As agressões que Maria sofreu fizeram com que ela tivesse que se mudar de casa. Ela recorda que o contexto do tráfico que o parceiro estava inserido e a dificuldade que ele enfrentava morando em Brasília, levaram o casal a se mudar para uma cidade no interior de um estado nordestino*.
Com o isolamento e distância da família, a dependência financeira e psicológica se intensificou. Então, em um momento de discussões, ela decidiu retornar para Brasília. Maria explicou que ao retornar, não teve mais contato com o agressor e ele não sabe onde exatamente ela vive, causando nela momentos de pesadelos
“Ele tentou falar comigo algumas vezes, minha família não deixou, falaram que eu não morava mais em Brasília. Fiquei dois meses sem dormir à noite, dormia no máximo 1 hora durante o dia, precisei fazer acompanhamento psicológico e psiquiátrico”, disse.
Protocolo
Ao perceber o ciclo de violência em que estava inserida, Maria disse que procurou ajuda em uma delegacia de Samambaia para registrar um boletim de ocorrência contra o agressor. Mas ela relatou que foi orientada a procurar uma delegacia da região que sofreu as agressões.
A reportagem procurou a Polícia Civil para saber o protocolo que as vítimas devem seguir caso sejam agredidas, mesmo que em cidades diferentes. Em nota, a PCDF orientou que a vítima de violência doméstica poderá registrar a ocorrência em qualquer delegacia do DF e, caso o fato ocorra em outra unidade da federação, a ocorrência deverá ser encaminhada à polícia judiciária responsável onde o fato aconteceu.
No caso de Maria, ela relatou que, pela dificuldade de registrar a violência e pelo medo de denunciar, desistiu de formalizar a denúncia.
A vítima de violência doméstica pode solicitar a medida por meio da autoridade policial, ou do Ministério Público, que vai encaminhar o pedido a um juiz. A lei prevê que a autoridade judicial deverá decidir o pedido no prazo de 48 horas.
O advogado e presidente da comissão de Direitos Humanos da OAB/DF Idamar Borges pondera que há brechas na lei que podem violar direitos. “Essa demora é um contexto para violação dos direitos humanos”, afirma.
Idamar ainda garante que é dever dos direitos humanos proteger essas mulheres vítimas de qualquer tipo de violência. “Pela nossa sociedade, o mais moderna que seja, a mulher indevida como inferior ao homem. Então tudo que é assim, que se entende assim inferior, que tende a ser minoria os direitos humanos tem obrigação de proteger”, garante.
Machismo estrutural
A psicóloga Flavia Timm, especialista em violência contra mulher, explica que os sinais da violência demoram a ser percebidos por uma questão cultural. “Absolutamente nenhuma mulher percebe sinais. Não tem essa possibilidade. Porque os sinais são naturalizados na cultura. Como eles são naturalizados, você vai interpretar aquele fenômeno de um abuso às vezes como cuidado, como afeto, como amor. Esses sinais, eles são muito difíceis, porque eles estão enraizados culturalmente”, afirma.
Além do fator cultural, é necessário destacar os tipos de violência. São eles: patrimonial, sexual, moral, psicológica e física. Flavia Timm explica que a violência psicológica é “oculta e imperceptível” pelas pessoas que estão ao redor da vítima. Ela ainda diz que esse tipo de violência pode ser muito duradoura e ainda “preparar o terreno” para intensificação de outras violências, como sexual e a patrimonial.
Violência nas periferias
Em 2023, de janeiro a junho, foram registrados 8.820 casos de violência doméstica no DF. No mesmo período em 2022, foram 8.428 registros. De acordo com a SSP-DF, as 5 regiões mais violentas são: Ceilândia (1.151 casos), Planaltina (773), Samambaia (716), Taguatinga (471) e Gama (463). Todas essas cinco regiões estão, em média, a 36 km de distância do centro da capital do país, escancarando uma realidade de vulnerabilidade e violência contra as mulheres nas periferias, além dos grandes centros urbanos.
Segundo levantamento do Tribunal de Justiça (TJDFT) e da SSP-DF, a unidade da federação teve, de janeiro a agosto de 2023, 8.398 medidas protetivas de urgência concedidas. Esses números representam um disparo em relação ao mesmo período do ano passado, que teve 6.888 medidas protetivas aplicadas. Quando uma medida protetiva é violada, a secretaria responsável deve registrar uma ocorrência policial. De janeiro a junho de 2023, 999 medidas foram descumpridas no DF. As 5 regiões com mais descumprimentos foram: Ceilândia (98), Planaltina (96), Samambaia (87), São Sebastião (75) e Taguatinga (58).
Como denunciar
Para denunciar você pode ligar no telefone 180 da Central de Atendimento à Mulher e pode procurar a delegacia mais próxima para registrar um boletim de ocorrência.
O registro também pode ser feito de forma virtual no site da Polícia Civil, pcdf.df.gov.br.
****O nome da personagem de violência doméstica, a idade e o estado ao qual ela se mudou e sofreu agressões foram alterados para manter o sigilo da fonte e a segurança da entrevistada.
* Supervisão de Luiz Claudio Ferreira