Os monstros no caminho

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A incrível história da conselheira tutelar brasiliense Marlla dos Santos, vítima do crack, das violências, do racismo e da indiferença, e que hoje salva vidas na capital

Desde criança, Marlla dos Santos, hoje com 40 anos e  conselheira tutelar em Brasília, precisou lidar com monstros. Esses que parecem ter 7 cabeças e que deveriam ficar apenas nas histórias de faz de conta. “Desde pequena, vivi coisas que não deveria ter vivido, passei por experiências que hoje eu entendo que não deveria ter passado.” Terceira filha de quatro irmãos, integrantes de uma família disfuncional, Marlla teve uma infância marcada por abusos psicológicos e físicos, além de uma relação conturbada com a mãe e irmãos.

“Quantas vezes forem necessárias a gente precisa se reconstruir. A gente precisa entender quando estamos errados e que certas coisas não nos servem mais.”

O mundo é um moinho – Cartola

Fosse por sobrevivência ou por traço de personalidade, Marlla se descobriu uma criança curiosa. Em uma das desventuras, aos 3 anos de idade, ela encontrou uma garrafa transparente, de tampa e rótulo amarelos, deixada de lado por um adulto depois de um churrasco em sua casa. Nessa garrafa, o resto de um líquido, também transparente, misturado com água de chuva, e o número 51 (marca de aguardente) pareciam, de alguma forma, chamar a atenção de Marlla, mesmo que ela ainda não soubesse ler. E nem precisava.

“Eu olhei a cachaça e tomei. Entrei em coma alcoólico aos 3.” Apesar do primeiro encontro, a bebida não era uma estranha em seu dia a dia e nem deixou de ser. Assim como as brigas e discussões, o álcool sempre fez parte do convívio familiar. “Sempre vi a minha mãe com uma latinha de cerveja… é assim é até hoje.”

Entre os 8 e 9 anos de idade, Marlla e sua irmã mais nova, de 5 na época, conheceram o pavor que elas chamavam de tio. Ele ainda não tinha seus 40 anos e era um dos irmãos da sua mãe, Dona Madalena. As meninas decidiram não contar sobre os abusos sexuais.

“Eu lembro da minha mãe no quarto dela, conversando com a minha madrinha sobre a vida, a gente escutando a voz dela e ele abusando da gente na sala, na cozinha… Outra vez eu lembro dele colocar nós duas embaixo de uma coberta e ficar mexendo com a gente… são cenas absurdas, que veem na minha mente de forma nítida. É muito sombrio.” 

Ele já tinha sido acusado de pedofilia pela prima, por uma carta, como descobriram muitos anos depois. “O que parecia era que ele fazia questão de morar na casa das irmãs que tinham filhas meninas, coisa que ele nunca chegou a ter, graças a Deus”. 

Mais tarde, Marlla soube que o tio abusador sofreu um atentado. “Mas eu sempre digo que o retorno é aqui. Primeiro ele levou um monte de facadas, lá em Vitória (ES), na cidade natal dele, mas não morreu nessa ocasião…”

Esse ficou sendo um dos ensinamentos da vida, e João Bosco já tinha cantado as pedras:  Só vaso ruim não quebra, é bom lembrar.

“Depois o câncer corroeu ele todinho por dentro”, diz Marlla.

7 em 10 de todos os casos de estupro que chegaram aos hospitais em 2011 vitimaram crianças. 

32,2% desses casos foram praticados por amigos e conhecidos.

12,3% por padrastos.

11,8% pelos  próprios  pais.

E 12,6%  por  desconhecidos.

Atualmente estima-se que no Brasil ocorram 822 mil casos de estupro por ano. Isso significa dizer que são quase 2 casos por minuto. Entretanto, outro número se destaca: apenas 8,5% deles são identificados pelo sistema policial e 4,2% pelo sistema de saúde.

Oito em cada 10 pessoas que são vítimas de estupro são mulheres.

Ser mulher no Brasil é saber que você tem 20% de chance de ser estuprada antes dos 30 anos pelo seu cônjuge ou companheiro(a), parceiro(a) ou namorado(a) – atuais ou ex – (45,6% dos casos).

Vamos fugir deste lugar, baby! – Skank, Vamos Fugir

Foi aos 18 que Marlla traçou o seu plano de fuga. Conheceu um menino, tal de Ruiter. Depois de um ano de namoro, decidiram juntar os panos. Na época, ele tinha 23 anos. 

Foi então que Dona Madalena deu o golpe de misericórdia. “Minha mãe disse que eu só saía de casa casada. Ela achou que eu ia dar para trás, mas eu disse: Pois então eu caso. E casei.”

“Hoje eu penso que deveria ter estudado, saído do país… qualquer coisa assim, menos casado”. Depois de 2 anos, em 2005, ela engravidou do primeiro filho, Pedro Isaac. Mas com cinco anos de relacionamento, o casal acabou se separando. 

“Eu estava trabalhando na Vivo (marca de telefonia), ganhando um salário legal… mas o meu marido não me acompanhou. Ele ainda estava trabalhando de garçom durante a noite, a gente não tinha mais tempo para sair, para ficarmos juntos… então eu decidi sair sem ele.” 

Marlla tinha decidido, sem saber ainda, que agora ela ia viver, ser feliz e fazer tudo que nunca tinha feito. Seja lá o que isso significasse. “Mas foi aí que começou a minha decadência”.

Parecia inofensiva, mas te dominou – Charlie Brown Jr, Quinta-feira

De volta para o ninho e asas da mãe Madalena, onde Pedro, seu filho, tinha um teto, paredes e como se alimentar, além de muito amor enquanto ela não estivesse, Marlla se dedicava ao trabalho e a família de segunda a quinta e de quinta a domingo, já sabe:  “ninguém me encontrava”.

O primeiro a chegar foi o cigarro, aos 22 anos. A maconha não deu certo, porque Marlla “não curtia ficar lesada”. Depois de experimentar alguns sintéticos, ela se encontrou mesmo foi na cocaína. 

“A gente entrava num motel com seis pessoas e passava o final de semana inteiro lá. O traficante ia lá levar a droga para a gente, mas não era a gente que pagava não! Eu não tinha um real. Eram os velhos que pagavam, os caras mais velhos, os caras casados… lá dentro nem rolava sexo. Era só droga e bebida.”

– Por que isso, Marlla? – eu perguntei 

– Eu me joguei com força. Queria viver tudo que eu podia. 

Euforia. Foi assim que ela descreveu.

“Parecia que o mundo nunca ia acabar. Era tudo tão lindo e tão maravilhoso… Quando você usa, você vai lá em cima. Mas quando você para de usar, você cai de uma vez. É a hora que o arrependimento bate e você fica pensando na merda que você fez, o corpo pede socorro, você se sente um lixo, podre… fica se sentindo a pior das piores.” 

Depressão. Foi assim que ela descreveu.

“Mas depois passa.”

Nessa rotina cíclica por quase 5 anos e depois de uma briga com a mãe, Marlla decidiu que era hora de bater as asas mais uma vez, mesmo que com a ajuda de Dona Madalena, e passou a morar na quadra 40 do Guará II, região administrativa a 20 km do centro de Brasília.

“Eu fazia um mundo de faz de contas para o meu filho. Ele ia para a escola, comia direitinho… era tudo para ele. Durante o final de semana, levava ele para a casa da minha mãe, que estava morrendo de saudade. O Pedro era e é o amor da minha vida, mas a droga chegou a ser mais forte.”

Foi então, que de forma sorrateira e quase imperceptível, o crack também entrou na vida de Marlla. 

“Eu não sabia que estava fumando crack. Misturaram a pedra no cigarro… É o que chamam de mesclado… foi assim que eu me viciei no crack. Só precisei fumar uma vez.” 

Marlla começou a usar a droga em espaços de tempo divididos por três semanas. Quando percebeu, já estava procurando pelas pedras e se “afundando sozinha”, como ela me descreveu. 

“Era insaciável. Se tivesse 1kg de pedra, era 1 kg de pedra que eu fumava”.

Em 2012 cerca de 370 mil pessoas consumiam a droga no Brasil e o perfil da usuária de crack era, em média, uma mulher de 29 anos, não branca, solteira e moradora de rua. 

75% delas praticaram alguma atividade ilícita para obter dinheiro ou droga. 

55% delas praticaram trabalho sexual ou troca de sexo por dinheiro. 

40% delas sofreram violência sexual entre 2011 e 2012.

60% delas engravidaram depois de terem começado a usar crack, mas 40% dessas gestações tiveram um desfecho ruim.

E Marlla faria parte de todas essas estatísticas.

E pro inferno ela foi pela primeira vez – Legião Urbana, Faroeste Caboclo

“Quando acabava o crack, a gente ficava olhando… qualquer migalha, qualquer poeira, qualquer sujeira a gente já achava que era droga.” Mas o caldo engrossou mesmo quando um dia o Pedro precisou ir embora mais cedo da escola e Marlla não atendia o celular porque tinha dado o aparelho como garantia na boca e tiveram que ligar logo para a Dona Madalena.

A avó buscou o menino na escola e essa foi a deixa para que, durante 4 dias seguidos, o crack fosse a única ligação de Marlla à Terra.

“Eu tive uma alucinação. As pessoas gritavam comigo e me perseguiam e eu surtei. Me joguei de uma janela. A queda foi mais ou menos da altura de um andar”.

– Você se machucou? – Eu perguntei.

– Me quebrei nada! – Ela respondeu – Santo para bêbado e drogado não dorme.

A partir desse momento, a memória de Marlla falha, mas ela conta que tem certeza que entrou em uma loja e o alarme tocou. A próxima imagem registrada por ela já é a chegada do Corpo de Bombeiros. 

Ela acabou sendo encaminhada para o Hospital Regional do Guará e aí não teve jeito: a família tomou conhecimento da vida que Marlla levava escondida e trancada a sete chaves.

Com um empréstimo que Dona Madalena fez em um banco, a família conseguiu pagar os R$ 300 reais diários necessários para o acolhimento de Marlla em uma clínica de reabilitação particular, mas não por muito tempo. 

Menos de 30 dias depois ela estava recebendo alta do tratamento. “Aquele lugar tinha mais droga que tudo, mas era muito caro e eu queria muito uma chance para melhorar, tentar mudar.”

Com saudades do filho (já que agora era ela que só o via aos finais de semana) e o sentimento que só o desejo de uma vida nova somados à época mágica do Natal podem proporcionar, em dezembro de 2011 ela se sentia pronta. Aos 28 anos, começou a cursar faculdade de marketing no SESC da 913 Sul e a se relacionar com “uns peguetes”. Dessa vez era Felipe.

Passarinho negro cantando na escuridão da noite – Beatles, Blackbird

Ele era casado e algumas “ficadas” foram o suficiente. Ela engravidou. “Não quero ter esse filho. Tô de favor na casa do meu irmão, se vira e compra um remédio”, ela disse para ele. E assim ele fez.

Durante a vida, Marlla teve seis gestações, mas apenas duas delas foram levadas adiante.

A primeira vez foi de um traficante “safadinho”. Ele queria criar o filho, mas Marlla não quis nem saber. Depois, foi com um menino “novinho”, que ela tinha ficado três vezes. “Mas, dessa vez, quem quis tirar foi ele é foi f*da…eu demorei para me ligar que eu tava grávida e quando eu percebi já estava com três meses. Foi o pior. E eu não podia chorar. Foi um parto. É uma dor descomunal e eu passei por tudo sozinha, sem reclamar.” 

A terceira vez foi de um menino chamado Paulo e a quarta, e última, de um rapaz que era fruto de um estupro. 

Todas as gestações foram interrompidas com medicação.

A estimativa do ministério da Saúde é de que cerca de 1 milhão de abortos sejam induzidos no Brasil todos os anos.

Em 2016, uma mulher morreu a cada dois dias por complicações de um aborto.

“Eu não sentia a perda. Na minha cabeça, eu só tinha que ter o Pedro. Para mim nada se comparava a ele, ninguém nunca ia ser melhor que ele. Ele foi planejado… Assim, dor física eu sentia, mas dor emocional não. Graças a Deus”.

Existem aqueles que dizem não se arrepender de nada. De nenhuma escolha, de nenhum erro, de nenhum caminho. E existem aqueles como a Marlla Angélica dos Santos. Para eles, na verdade, isso tudo não passa de hipocrisia.

“Eu me arrependo de tudo. Hoje eu faria tudo diferente.”

No meio do caminho da educação havia uma pedra e havia um pedra no meio do caminho – Criolo ao citar Carlos Drummond de Andrade na música Duas de Cinco

Em fevereiro de 2012, ainda cursando marketing, ela teve a primeira recaída. “Eu ia andando da faculdade até a estação de metrô mais próxima e via as pessoas usando crack. Não aguentei.”

A maior tentação de Marlla, a caminhada entre a quadra 913 e a estação 112 sul, dura cerca de 15 minutos e tem pouco mais de 1 km. “Minha mãe desconfiou que eu estava usando de novo e, em maio de 2012, eu peguei as minhas coisas, botei dentro de uma bolsa e fui morar na rua”.

– Rua, rua? – interrompi

– Rua, rua – ela respondeu.

Ao todo, foram seis meses.

Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada – Vinicius de Moraes, A casa

Entre 2012 e 2020, o número de pessoas em situação de rua no Brasil aumentou 211%,  superando as 281 mil pessoas. Há 11 anos, 4 em 10 dessas pessoas eram usuárias de crack no Brasil. E uma delas era a Marlla.

Setor comercial sul, conjunto nacional, rodoviária.

“Era lá que eu ficava perambulando, porque eu sabia que era lá que tinha crack.

“Eu não queria voltar para o Guará, porque lá eu conhecia muita gente. A minha família tentou me encontrar, apesar de que minha mãe nunca foi atrás de mim na rua. Teve uma vez que eu estava andando e vi um cartaz meu escrito ‘desaparecida’, mas eu não queria ser encontrada.”

Foi na rua que ela se prostituiu para conseguir droga, onde ela traficou para traficante e onde seu corpo foi violado e a alma mutilada, mais uma vez.

– Como é morar na rua, Marlla? – foi a primeira pergunta que veio à minha cabeça.

– É um estado de vergonha, de medo… Não cheguei a passar fome, mas passei muito frio.  Aqui em Brasília e em São Paulo é muito difícil morador de rua passar fome, porque o povo dá muita coisa. O povo cuida. O povo tem dó.

As primeiras chuvas de setembro, conhecidas por serem o alívio da seca para os moradores da capital, ansiosamente aguardadas durante o inverno que resseca a pele e os lábios, naquele ano, não trouxeram conforto. 

“Meu colchão, cobertores e roupas ficaram encharcadas. A gente ficava perto do HRAN (Hospital Regional da Asa Norte), embaixo das árvores. Eu passei dois dias muito doente e precisei ir ao hospital. A médica me diagnosticou com pneumonia e disse que precisava internar. Dei um nome falso, porque eu não queria ficar, porque enquanto eu estivesse lá não ia poder usar droga. Algumas pessoas, colegas minhas, da rua mesmo, se juntaram e compraram remédio para mim até eu ficar boa.”

Marlla agradece a Deus pelas pessoas que encontrou. “Tem tanta gente f*da… tanta gente que você olha e pensa: ‘Por que, meu Deus?’”. Curioso, porque era justamente isso que eu pensava.

“As pessoas sentem nojo e era uma época que ateavam fogo em quem tava na rua, então eu vi muita gente queimada. Eu vi um menino que não conseguia tirar a meia, porque tacaram fogo nos pés dele e a meia ficou grudada…”, Marlla respirou fundo antes de completar, “nos pés, na perna… e não tinha como tratar, mesmo ele do lado do HRAN, não podia ir lá e ele também tava foragido”.

Com 1,72 de altura e 48kg, na época, Marlla estava com a metade do seu peso atual. “Eu estava muito magra, muito feia.” O sentimento era de vergonha da sua imagem.  Mas ela, vaidosa, ainda tentava preservá-la. 

Nas madrugadas, ia para o banheiro do Hospital Regional da Asa Norte , passar sabão em algumas áreas do corpo e limpá-las com água e quando conseguia “um dinheiro bom” com algum traficante, ia para um “hotelzinho” no centro de Ceilândia e restaurava as forças, dormindo em uma cama, usando um chuveiro e…fumando crack.

“Na rua, a gente faz de tudo para sobreviver. Para que eu sobrevivesse eu tive que me prostituir, sim. Eu tive que traficar, tive que roubar. Tudo para sobreviver e sustentar meu vício. Mas eu morria de medo de ser presa. Eu podia ser tudo, menos presa, porque minha mãe sempre falou que nunca ia me ver na cadeia.”

O mundo somente, é seu bicho-papão – Vinicius de Moraes, valsa para uma menininha

Em uma manhã, bem cedinho, depois de passar a noite virada, Marlla carregava a cabeça de preocupações. “Só pensava que a vida tava uma merda e que a minha droga tinha acabado”. Ela precisava de um lugar para descansar.

“Um homem de pele parda e cabelo raspado, por volta de 1,70 de altura, nem fortão, nem magrinho, parou e perguntou se eu queria fumar uma pedra. Eu nunca tinha visto ele antes.” Marlla não sabe, até hoje, o nome dele.

“Eu comecei a achar aquilo muito estranho porque a gente nunca chegava onde ele tinha a pedra. Até a hora que eu falei que não ia mais. Ele puxou uma faca e pressionou na minha costela.”

– Você vai ficar caladinha – ele disse.

Como refém e sentindo a lâmina contra a pele, Marlla tentava pedir socorro com os olhos, com o rosto, com a alma. Todo o seu corpo gritava, mas ninguém conseguia ouvir. Ninguém queria ouvir.

Eles então  atravessaram todo o Setor de Autarquias, todo o Setor Comercial e a L2 Sul a pé. “Entre o Galois, lá embaixo, e as embaixadas, têm um matagal. E foi para lá que ele me levou”.

No meio do matagal tinha um papelão. Tinha um papelão no meio do matagal.

– Tira a roupa!

– Eu não vou tirar.

– Tira a p*rra da roupa!

“Ele me rasgou toda… Ele rasgou toda a minha roupa. Eu tentei fechar a perna e ele não conseguiu abrir. Até a hora que ele começou a me enforcar e eu perdi um pouco a conciência. Foi ali que ele cometeu o estupro e foi ali que eu achei que ia morrer.”

Quando ele terminou, ele só saiu. Vestiu a camiseta e correu. Marlla começou a gritar que tinha sido estuprada, mas ninguém ouvia. Ninguém queria ouvir.

“Eu estava andando no meio dos carros com a roupa toda rasgada, segurando o pano que tinha restado, tentando tampar meu corpo. Não teve um carro…um carro que parou.” Ninguém parou. Ninguém queria parar.

Marlla foi até uma embaixada pedir ajuda. Uma viatura veio. “Eles não questionaram se eu era moradora de rua. Eles não questionaram nada. Me levaram para a delegacia da Mulher e eu prestei queixa. Os policiais ainda tentaram achar ele.”

Ela foi levada ao IML, para fazer o corpo delito, processo capaz de provar a existência de um crime. Ela tomou um coquetel de remédios e várias injeções, para evitar infecções sexualmente transmissíveis. Mas não adiantou. Ela contraiu sífilis.

– Você lembra como ele era? – eu perguntei

– Eu lembro de tudo. De tudo. 

Marlla conta que até uns dois anos atrás, se encontrasse alguém parecido com ele, paralisava.

“Eu abri mão do meu filho, do amor da minha vida, por causa de um vício… Abri mão da minha mãe, das minhas irmãs, que disfuncional ou não, era o que eu tinha. Depois do estupro a minha vida perdeu o resto do sentido. Decidi me matar. Só pensava: ‘Vamo morrer? Não to fazendo nada mesmo… Mas até para morrer eu fui viciada. Decidi ir atrás de uma pedra e aí depois que eu fumasse ia me jogar de um viaduto.”

Ela escolheu o viaduto, aquele que fica entre o Conjunto Nacional e o Setor Hospitalar Norte, mas antes, um cara – que ela só tinha visto uma vez antes e nunca mais viu- chamou para fumar droga perto do HRAN. Ela foi.

“Foi então que eu conheci o Neilton. Quando você tá na rua e não tá usando droga, o corpo sente tudo de uma vez. Fome, cansaço…Eu acabei dormindo lá. Ele trouxe café da manhã para mim, marmita, droga. Eu fiquei sem entender. Como assim não precisei me prostituir, não precisei ficar com ninguém, roubar, traficar para traficante? Não conseguia entender.”

Ela foi ficando, ficando, ficando… e esse ano Marlla e Neilton completam 12 anos juntos. “No exato dia que decidi tirar minha vida, conheci meu marido.”

“Conheci o Neilton morador de rua, fumador de crack.” Ele é ex-presidiário, acusado de homicídio e tráfico. Depois de ser liberado com cinco anos de reclusão sem ter tido nenhuma visita e sem ter para onde ir, foi para a rua. Hoje ele trabalha no Ministério da Defesa como copeiro, “no andar do ministro”, diz Marlla, orgulhosa.

Eles passaram pelo processo de reabilitação assim, juntos.

Jesus chorou – Racionais Mc’s

16 de julho de 2012. Pedro Isaac, seu filho, completava 7 anos. Esse foi o primeiro aniversário sem a mãe.

“O Neilton me deu um cartão telefônico para ligar para ele, porque naquela época tinha orelhão. Mas como que eu ligava? Passei, literalmente, o dia inteiro com o cartão na mão. Eu ia ligar para ele e falar o que?”

A ex-sogra estava cuidando do garoto. “Ela falava para ele que eu estava viajando.”

Marlla prometeu para si mesma que nunca mais passaria uma aniversário do filho longe dele. E desde então cumpre a promessa. “Até o fim dos meus dias. Eu não abro mão dos meus filhos.”

Em outubro, Marlla acordou desesperada. Como se estivesse afogando, ela abriu os olhos e a boca, procurando ar. “Tive um pesadelo com o Pedro e acordei chorando.” Seu peito clamava pelo menino.

Com o apoio e incentivo do companheiro, Marlla finalmente usou o saldo do cartão telefônico.

– Mamãe!

Bastou ouvir a voz de Pedro.

“Eu chorava tanto nesse orelhão que o povo achava que eu tava tendo um troço.”

Era um choro de saudade. Era um choro de amor.

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Um sentimento estranho tomou conta de Marlla. Ao mesmo tempo que sua alma chamava por Pedro, o seu corpo criava raízes no chão da rua, a incapacitando de qualquer movimento. “Depois disso eu só pensava no meu filho, mas eu não tinha coragem. Eu tinha muita vergonha da minha condição.”

Pouco tempo depois, como se tivesse sido escrito certo por linhas tortas, um nome surgiu na cabeça de Marlla: pastor Paulo, da Igreja Batista Koinonia de Águas Claras, conhecido da família. Certa vez ele foi na rua e pediu que entregassem o número dele para Marlla. E entregaram. E ela ligou.

 – Marlla, cadê você minha filha? A gente tá atrás de você. A gente quer que você volte – o pastor Paulo disse.

– Olha… eu não tô mais sozinha, eu encontrei uma pessoa e ele cuida de mim e eu cuido dele agora- Marlla revelou.

– Traz ele. Pode vir – ele consentiu.

Marlla e Neilton juntaram dinheiro e foram de metrô até a QNL, em Taguatinga. Lá ela encontrou o irmão, a cunhada e o filho.

“Na hora que eu o vi… foi o encontro mais gostoso da minha vida! Parecia o segundo nascimento dele.”

O irmão dela levou o casal para casa.

“Ele não tirou nada do lugar. Eu olhava os móveis calculando o preço… calculava quanto ia dar em pedras de crack. Mas ele não escondeu nada.”

Depois do final de semana juntos, no domingo, o convite veio: “Vamos para a igreja, Marlla!”

Ela estava tão magra, que as suas roupas, que tinha ficado na casa do irmão do período que morou junto com ele, não serviam mais. “Eu tive que colocar duas leggings para poder caber a calça. Para usar a blusa eu tive que usar um casaco do meu irmão.”

Foi dia 14 de outubro de 2012.

“A palavra veio como uma espada no peito. Eu chorava muito e tremia. Fomos chamados na frente e parecia que a Igreja estava esperando eu chegar! Foi uma festa!”

– Você lembra o que ele falou? – perguntei

– Ele falou sobre o sentimento de Deus relacionado a nós. Um desses sentimentos era a saudade.

– Por que você estava com saudade do seu filho? – perguntei, com inocência 

– Eu estava com saudade de Deus! De ter a comunhão com Deus. Saudade de estar. Eu sentia a todo momento que ele cuidava de mim. Era para eu morrer! – respondeu, com o coração.

Tratamento

Durante seis meses, Marlla ficou na casa de recuperação Salomão e Neilton na casa de recuperação Caverna do Adulão, ambas em Planaltina. Eles só podiam se ver uma vez por mês e a comunicação entre os dois passou a ser através das cartas, que ela guarda até hoje, onde sonhavam juntos a vida que viriam construir. E construíram.

– Qual a maior dificuldade do período de reabilitação? – eu perguntei

– Todas. A maior dificuldade da reabilitação é tudo. Mas eu decidi não focar em nada disso. Eu só pensava no meu filho, que queria que minha história mudasse e que queria casar com o Neilton e construir a minha família.

Ao término do período, eles se casaram e tiveram um filho, Paulo Iago, hoje com 10 anos.

Mesmo período de tempo em que Marlla está sóbria.    

Eu nada seria sem o amor – Legião Urbana, Monte Castelo

De acordo com a Secretaria de Estado de Justiça e Cidadania (Sejus), o papel atribuído a um conselheiro tutelar é o de garantir que as crianças e adolescentes tenham todos os seus direitos respeitados.

Eles recebem denúncias de situações de violência, como negligência, maus-tratos e exploração sexual e atendem queixas, reclamações, reivindicações e solicitações feitas por crianças, adolescentes, famílias, comunidades e cidadãos.

Mas, para Marlla, ser Conselheira Tutelar significa muito mais. “Eu tenho a oportunidade de ajudar alguém. A partir do momento que eu consigo fazer isso, eu encontro a Marlla que já foi muito ajudada, abraçada e compreendida. Eu quero ser o apoio que um dia já recebi.”   

Em 2021 ela se formou em Serviço Social pela Unip e no ano seguinte assumiu o Conselho de Arniqueiras. 

– O que você acha que define a sua atuação como Conselheira?

Ela para e pensa com muito cuidado e percebo que as próximas palavras vêm do coração.

– Amor. Eu amo o que eu faço. Mesmo. – ela se emociona.

As experiências vividas por Marlla na infância, antes mágoas e feridas não cicatrizadas, se tornaram combustível para o trabalho no Conselho.

“Sempre me vejo nas crianças e adolescentes que ajudo. No comportamento muitas vezes não  compreendido… Vejo minha mãe nas mães que nos procuram. Pretas. Solos. E muitas vezes em dois empregos.”

Apesar de reconhecer na pele as problemáticas da violência, ela afirma que nunca consegue se habituar aos casos de abuso. “Eu digo que quando eu estiver acostumada com o que eu escuto, eu vou precisar mudar de profissão.”

Uma das experiências que mais marcou Marlla em sua atuação foi a de uma menina de oito anos de idade, preta, que foi estuprada por um conhecido. Como dois lados de um espelho e enfrentando o reflexo de sua própria jornada e história, Marlla, que também foi abusada aos 8 anos dentro de casa, sem a mãe perceber, pelo tio, conta com olhos sofridos como é ser aquilo que ela não teve: apoio.

“Essa menina recorreu a uma amiga da sala de aula. Essa amiga segurou na mão dela e juntas foram até o professor. A escola chamou o Conselho e nosso trabalho começou imediatamente. O primeiro passo foi o apoio à mãe, que se culpou muito.”

“O processo não é de uma hora para outra. Tem que ir na delegacia, IML, no hospital e não era a nossa obrigação, mas fizemos questão de acompanhá-las em todas as etapas. No final do processo, o rapaz foi preso. Ele realmente abusou de uma criança de 8 anos. E hoje, quando ela me vê, ela sempre me dá um abraço!”

A imagem das marcas deixadas pelo abuso ainda está nítida na memória de Marlla. “Ele apertava a perna dela e ficou a marca da mão dele. Ela é uma menina negra então, imagina a força que ele não tinha.” 

Marlla se considera uma agente de transformação na vida de outras pessoas e apesar de não ter o poder de mudar o mundo, acredita na reconstrução. 

“O mundo eu não consigo mudar, mas eu consigo mudar a vida de cada pessoa que entra na minha sala, de cada pessoa que eu encontrar, fazendo algo bom ali. Eu preciso plantar coisas boas e onde Deus me colocar eu vou florescer.”

Confira parte da entrevista sobre a atuação de Marlla como conselheira tutelar:

Dona de mim – Iza

“Quantas vezes forem necessárias a gente precisa se reconstruir. A gente precisa entender quando estamos errados e que certas coisas não nos servem mais. Princípios para mim são inegociáveis, mas a gente tá sempre aprendendo, sempre se reaprendendo, aprendendo sobre o outro. E a gente precisa se reconstruir, sempre para o bem. A gente precisa crescer.”     

A menina mulher com nome de mar continua lidando com monstros. Com até mais do que sete cabeças. Mas agora quem os domina é ela.

Por Madu Toledo com supervisão de Luiz Ferreira

Fotos: Madu Toledo

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