O dia era 8 de março de 2012, quando em Planaltina, no Distrito Federal, às margens da BR-020, famílias do Movimento Sem Terra (MST) montaram acampamento em uma parte da Fazenda Toca da Raposa, em uma área de 17 hectares da presença do MST.
De um lado, a organização define a terra como improdutiva, ou seja, que não estava sendo utilizada. De outro, o proprietário Mario Zinato reafirma o direito e o uso daquele espaço.
Já se passaram 11 anos desde aquele dia. Hoje, o Acampamento 8 de Março, intitulado em nome da data da conquista, abriga 80 famílias, responsáveis pelo plantio de diversos alimentos. A variedade envolve batata, mandioca, cheiro verde, melancia, morango e rabanetes, por exemplo. Há ainda uma casa de farinha, onde é produzido o produto feito de mandioca, um posto médico e até um mercadinho.
Tudo o que é arrecadado é direcionado para infraestrutura do acampamento.

Vizinha ao acampamento, a Fazenda Toca da Raposa realiza o plantio de milho, produção de leite e criação de gado. A operação, segundo o proprietário, emprega mais de 120 funcionários e já conta com quase dois mil animais no local, que se estende ao longo de 1,7 mil hectares.
Acampamento
A área ocupada pelas famílias do MST é dividida em duas. Uma parte, de três hectares, é exclusiva para moradia, enquanto a outra, dos 14 hectares restantes, é destinada para atividades de fins de produção sem o uso de agrotóxicos.
Quem detalha o cenário é Maria de Souza Castro, de 45 anos, coordenadora do local. Presente na comunidade há cinco anos, ela vive ali com o marido, a filha e os netos e foi responsável por me apresentar o acampamento.
Passamos pelos espaços de funcionamento, todos construídos de madeirite, das casas aos estabelecimentos. Ao passo em que me conta a própria história, também explica que todos os adultos exercem alguma atividade, seja no campo ou para fins sociais do movimento.
Ela, por exemplo, acumula funções: além de coordenadora do acampamento, é administradora do mercadinho, mãe e avó em tempo integral.
Ainda assim, independente do esforço, às vezes a recompensa não vem. A coordenadora desabafa que, apesar da plantação ser boa e frutífera, a comunidade sofre com a falta de regularização, feita através do registro da Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP).
“A gente está esperando por essa regulamentação, porque, sem ela, dificulta muito. Até tem como plantar, mas não tem como vender, porque a gente não tem a DAP. Tem terra o suficiente para plantar, mas não conseguimos escoar esse produto para fora, porque as cooperativas não compram sem a documentação”. Maria explica que, na época da pandemia, a comunidade vendia cerca de mil cestas por mês, mas agora a realidade mudou.
A liderança acrescenta um outro problema vivido no 8 de Março. Este, porém, é ainda mais drástico e espalhado por todo o Brasil: a violência. O país registrou somente no ano de 2022 mais de duas mil ocorrências de conflitos por terra. Ao todo, 181 mil famílias vivem na mira deste tipo de violência no país.
O relatório “Conflitos no Campo Brasil 2022”, elaborado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), atesta que o principal causador do problema são os fazendeiros, responsáveis por 23% das ocorrências. A situação contribuiu proporcionalmente para a diminuição do número de ocupações e exemplifica o desmonte das políticas públicas voltadas para o campo.

Maria explica que trabalhadores sofrem com ataques de donos das terras. “Ele manda trator aqui perto que levanta poeira e atrapalha a plantação, passa avião de veneno que deixa as pessoas aqui doentes. Isso suja nosso plantio, não podemos nem falar que é orgânico, porque ele joga veneno em cima da gente. Ele coloca jagunço armado aqui perto para passar e nos intimidar. Não é fácil”, afirma a
coordenadora.
“A gente sonha com um pedaço de terra para gente. Poder ter um pedaço de terra para plantar e melhorar a nossa vida. Fazer uma casa mais confortável porque a gente mora em madeirite, e ter uma vida mais saudável”, esclarece.
Ainda durante nossa conversa, um trator passa rente as grades do 8 de Março e faz a poeira tomar conta do lugar. No meio da nuvem marrom levantada do solo, conheço Francisco Gomes, conhecido como “Seu Chico”, de 76 anos. Carregando um carrinho de mão, ele sequer precisou ser questionado sobre algo para começar a relatas sua história.
Desde quando chegou ali, há 11 anos, não havia nada além do mato alto, relembra. Chico trata a terra como uma filha e até se chateia por, segundo ele, não haver espaço para plantar mais nada depois da década que passou cultivando. Em meio ao jardim, ele diz que a terra é uma sobrevivência. “Tenho mais prazer com a minha vida, eu tenho mais saúde, mais disposição. E é assim que estou aqui até hoje”.
“Estou beneficiando a área ali. Quero deixar a natureza completa, frutífera para as pessoas e para os bichos que ficam me beirando lá. Quando cheguei aqui, não tinha um fiapo de plantão. Ao ter uma terra, tem que se beneficiar dela e fazê-la dar fruto para quem está mexendo. Ele tem que cultivar o que ele tem”, declarou,se referindo ao dono da propriedade.
Outro que compartilha a trajetória de 11 anos no acampamento é Adonilton Rodrigues. Presente desde a ocupação, o militante de 33 anos atua como membro da direção nacional do MST/DF e me recebeu em sua casa para contar o cotidiano no 8 de Março.
Com a esposa e o filho de 11 meses, ele se alterna entre os compromissos dentro e fora do local na beira da BR-020. De quando chegou, em 2012, até hoje em dia, lidando com maus tratos à terra e outros perigos, a violência sofrida nunca mudou.
“Além do veneno que ele [fazendeiro] joga, sempre passa jagunço armado, seja do lado da cerca, de carro, como for. Eles sempre foram assim. Quando invadimos, ocupamos aqui debaixo de bala, isso porque tínhamos muitas crianças e idosos. Chamamos a polícia, eles vieram e tomaram as armas.
Eram mais de 40 jagunços, mas ninguém foi preso”, relembra.
Todos os casos são denunciados, segundo Adonilton, desde o veneno lançado de madrugada até os incêndios criminosos que já destruíram metade dos barracos de madeirite. Ainda assim, a luta continua, sempre com o caráter de denúncia – às quais a reportagem não conseguiu ter acesso.
A justificativa
A ocupação em si exerce esse papel denunciante. Para ocupar um local, o MST defende que faz uma análise profunda sobre a terra em questão para ver o que é feito com ela. O grupo só entra se o espaço for improdutivo, ou seja, não estiver sendo usado para plantio ou criação de animais. Por esse motivo, o foco vai além da repartição de terras, mas também se encontra na tentativa de fazer o local ser
frutífero.
“Hoje, na questão agroecológica, já passamos por uma transformação aqui desde o período em que começamos a trabalhar, seja ambiental, no cuidado com a natureza, ou de auto sustentação. Temos o plano de plantar 100 milhões de árvores em 10 anos e produzir alimento saudável, então estamos estruturando o espaço para ter sua própria autonomia de produção e sustentação”, planeja Adonilton Rodrigues.

A meta é fazer com que se torne um assentamento no futuro. A diferença entre os dois não fica só na nomenclatura. Quando assentados, os moradores passam a poder usufruir de políticas públicas e de amparo social e. No futuro, o integrante da diretoria nacional quer que o 8 de Março seja um exemplo.
“No coletivo, com a companheirada, a luta nossa hoje é para transformar essa área. O sonho é que futuramente isso se torne um assentamento modelo, não só na questão agroecológica, mas de mudança de vidas. Para melhorar para o campo e para a cidade, porque para fazer a reforma agrária precisaremos do apoio de todos”, torce.
Uma etapa tida como importante para cumprir esse objetivo é a formação dos integrantes. Com projetos de alfabetização, o grupo quer diminuir drasticamente o analfabetismo e voltar a ter aulas do ensino de jovens e adultos (EJA) na comunidade.
“O acampamento é um local onde as pessoas têm uma perspectiva de mudança de vida. Por mais que se tenha um olhar preconceituoso, que aqui é um lugar de vagabundo, mas é no acampamento que você encontra outras formas de vida e de esperança. Isso muda realmente a vida da gente”, conclui Adonilton.
O outro lado da cerca
Na propriedade de Mario Zinato, fazendeiro de 73 anos, dono da Toca da Raposa, o cenário é de animais de grande porte. Aliada à plantação de milho, a criação de vacas leiteiras é predominante ali.
São, ao todo, mais de 1,6 mil vacas, separadas em um sistema prático para organizar a reprodução, o crescimento do novilho e o ordenhamento. A fazenda é o 57º maior produtor de leite do Brasil, segundo uma pesquisa realizada pela MilkPoint em 2022.
A meta do dono é entrar no top 50 na próxima análise e até 2026 iniciar um esquema próprio de distribuição e venda do produto. Os demais hectares são usados para o plantio de milho ou soja, grãos usados para ração dos animais e rotatividade de plantio, respectivamente.
Questionado sobre a relação dele com o campo do outro lado da fazenda, Mário me conta que um acordo firmado em audiência pública há quatro anos dá ao MST três hectares da terra de Zinato.
“Não temos confrontos tem tempo já, só o início, lá em 2012, quando eles entraram. Hoje prefiro a paz. Deixa eles com os três hectares deles. Não faz diferença para mim. Mas, com o acordo firmado, eles não podem passar de um lugar demarcado pela Terracap”, compartilha.
O fazendeiro nega todas as acusações feitas pelo Movimento, dentre elas os jagunços, os incêndios e de que estaria jogando veneno próximo ao acampamento. Apesar do relato por parte do 8 de Março, as queixas realizadas não foram comprovadas.
Um dos documentos apresentados por Mário é um laudo pericial da Polícia Civil do Distrito Federal de 2004, que afirma que vários integrantes desse movimento entraram nas edificações, após arrombar as vias de acesso, mediante emprego de força aplicada na estrutura. Uma vez no interior, subtraíram objetos, produziram danos e machucaram um equino.
Além disso, ele possui a comprovação de que a terra lhe foi cedida na década de 1980 e um título precário de propriedade assinado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 2011.
Ele me conta que a decisão judicial não sai por causa de politicagem, e que ninguém tá afim de comprar essa briga. “Entra governo e sai governo e nada de resolver. Nenhum quer se envolver. Eu vou ganhar, tenho certeza. Não me preocupo. Mas se alguém autorizar a retirada dessas pessoas daqui, o problema
seria muito grande, então deixar como está é mais confortável. Eu não vou atrás de tirar eles dos três hectares. Se as fazendas vizinhas quiserem se envolver, tudo
bem, mas eu não”, termina.
A previsão da fazenda é de que em junho de 2024, haverá 1.097 vacas em lactação, quase o dobro do que há hoje. Assim, o fazendeiro sonha em fazer o local crescer cada vez mais, de maneira interna e externa, para virar uma referência ainda maior no cenário nacional.
Ocupação
O Acampamento 8 de Março já passou por uma história de disputa de terras. A briga pelo espaço começou em 2004. Na época, trabalhadores vinculados ao MST/DF ocuparam parte da fazenda Toca da Raposa, alegando que as terras pertenciam à União e que haviam sido griladas.
A segunda ocupação foi em 2006, quando aproximadamente 500 trabalhadores construíram um novo acampamento ocupando cerca de 400 hectares da fazenda. Pouco depois, essas famílias foram novamente despejadas. No ano seguinte, aproximadamente 600 famílias vinculadas ao movimento fizeram uma nova tentativa de luta por aquela terra. Foi a terceira ocupação da fazenda em três anos.
A solução do impasse dependia de um estudo da Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap) que confirmasse a quem pertenciam de fato os 1700 hectares de terra. O despejo das famílias acampadas na terceira leva ocorreu tempo depois. Após um hiato, no dia da mulher e com forte presença feminina, aconteceu a quarta e última ocupação.
“Nós, mulheres camponesas, preocupadas com a segurança dos nossos filhos e companheiros, queremos responsabilizar o Estado por qualquer ato de violência que aconteça. Solicitamos as providências no sentido de coibir estas ações de violência. Conforme o Movimento, na ocupação 8 de Março, a maioria dos acampados seria de crianças e mulheres; por conta disso, a carta foi escrita enfatizando o sentimento
das mulheres”, afirmava a denúncia.
Enquanto isso, o Acampamento 8 de Março segue sem resposta. Até o momento, o fazendeiro continua afirmando ser o proprietário e com parte de seu terreno ocupado. Do outro lado, as famílias do MST seguem ali, convivendo na linha fina entre o medo e a esperança na espera de um futuro melhor.
“Não vou mexer em caixa de marimbondo por conta de três hectares. Se sair a decisão judicial a meu favor, não me importo em deixar eles lá”, adiciona Mario Zinato.
“A gente resiste. Resiste para existir e resistiremos sempre, porque temos um projeto de sociedade, o qual é um projeto de reforma agrária, que é diferente. A gente não acredita no que está posto por aí, tanta dor, tanta violência. A gente quer uma sociedade sem violência, pautada na questão da própria agroecologia, em defesa da natureza, alimentação saudável para toda a companheirada. Não é só
pelos do campo, mas também pelos da cidade. Vamos juntos por todos”, conclui Adonilton.
A reportagem procurou a Empresa De Assistência Técnica E Extensão Rural Do
Distrito Federal (Emater), que afirmou não poder falar sobre o assunto, já que ainda
estava na questão de regulamentar a terra ocupada pelo acampamento. “Esse
assunto não é nosso”. A Terracap também foi procurada, mas não forneceu
resposta até a publicação desta matéria.
Armazém do Campo
Do rural ao urbano, apesar de toda a separação praticada entre ambos, alguns espaços servem como conexão entre os dois lados. Um exemplo é o Armazém do Campo, na Asa Norte, centro da capital brasileira. Ali, os produtos dos pequenos agricultores alimentam a estante de um supermercado e fomentam a ação do Movimento.
A loja tem como proposta vender os mais variados produtos plantados, cultivados e produzidos pelo MST. Dentre eles estão o suco Monte Vêneto, cachaça artesanal Lula Livre, café Guaií e o arroz Terra Livre. As lojas vendem seus produtos a preços acessíveis e também funcionam como forma de resistência para troca de informação em oficinas e debates.
O coordenador do Armazém do Campo no DF, Antônio Dias de Abreu, explica que isso envolve a vontade de mostrar o que é comida de verdade e auxiliar na resistência do movimento, principalmente por expor o trabalho realizado.
“Nossas lojas servem como o meio de divulgar a produção de alimentos saudáveis que nossos assentamentos produzem, trazendo marcas de alta qualidade e produtos 100% naturais para o mercado. Estar nas cidades representando a agricultura familiar é muito importante para divulgar a ideia de que outro tipo de
produção é possível”, diz.
O fato da loja se encontrar no plano piloto é outro desafio para o movimento que tem como objetivo conquistar mais espaço. “Seu Dias”, como é conhecido, explica que o Armazém tem como função principal divulgar aquilo que é feito no campo para as pessoas na cidade.
Os armazéns têm uma importância fundamental na questão social para gerar rendas para os trabalhadores do campo, para sua comercialização e pela divulgação de produtos orgânicos. A loja funciona no Plano Piloto porque essa é a nossa meta, de conquistar o espaço junto à sociedade, trazendo produtos do campo, com origem, com certificação, com qualidade, para podermos divulgar o
nosso trabalho. Trabalhamos em conjunto, formando cooperativas e colocando no mercado os nossos produtos”, conclui.
Por Mariana Albuquerque
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira e Katrine Boaventura