A fachada branca de uma casa. De repente, surge um rascunho. Linhas aleatórias que, com o talento da artista, se transformam num desenho que ocupa todo o mural. Então, vêm as cores e sobe o cheiro de tinta spray. Enquanto ela grafita, o filho de quatro anos segura na parte de trás de sua blusa, quieto e observador.
Azul, rosa, amarelo, roxo, verde e muitas outras cores preenchem a parede. A artista se afasta um pouco, olha novamente de outro ângulo. O pequeno se ocupou com uns biscoitos, que fez questão de dividir com a mãe, e depois foi chutar uma bola na ruela próxima.
Ela pega a lata de azul escuro e faz o contorno final por toda a obra. Depois de duas horas trabalhando, com pequenas pausas para brincar e conversar com o filho, ela recolhe as latas e contempla pela primeira vez, junto com o público da rua que parou para observar a arte ao vivo, mais uma obra sua completa.
Raissa Miah, 34, é grafiteira e mãe solo de dois meninos, um de 16 e outro de 4 anos. Ela iniciou sua carreira no break dance, um dos quatro pilares da cultura hip hop, e, aos 16 anos, se aprofundou nesse meio e conheceu o grafite. Hoje, formada em jornalismo e baseada no Mercado Sul, em Taguatinga, ela produz e assessora eventos de grafite e outras artes culturais marginalizadas, além de grafitar.
Miah foi uma das nove mulheres finalistas de um projeto de valorização do grafite promovido pelo Governo do Distrito Federal para pintar as 28 paradas da W3 Norte. Com a atriz Dulcina de Moraes como inspiração, ela pintou uma das paradas e recebeu um apoio de R$ 1500,00 da Secretaria de Cultura e Economia Criativa (Secec).
“A gente depende muito das políticas públicas para conseguir se manter profissionalmente, pra gente conseguir dar base e continuar oferecendo a nossa arte publicamente, porque exige muita dedicação e investimento”, afirma Miah.
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Recursos
O maior patrocinador da cultura popular no DF é o Fundo de Apoio à Cultura (FAC) que, por meio de editais, destina recursos para a arte urbana, como grafite, batalhas de rimas, slams e oficinas de capacitação. Entre 2020 e 2021, os editais FAC Brasília Multicultural I reservaram R$ 1,5 milhão para essa linha de linguagem artística. A quantia foi dividida entre diversos artistas da capital, totalizando uma média de R$ 1,5 mil para cada. A maioria dos recursos do Fundo vem de 0,3% da receita corrente líquida do Governo Distrito Federal.
Duas vezes por ano, são abertos os editais “Brasília Multicultural”. Em 2023, o primeiro edital ofertou R$ 30 milhões para serem divididos entre pelo menos 265 projetos de 24 linguagens artísticas. Os projetos contemplados e os valores disponibilizados pelo governo variam de acordo com as especificidades de cada trabalho e do valor pedido pelo artista. Para se candidatar, é necessário ter registro válido no Cadastro válido Entes e Agentes Culturais do Distrito Federal (CEAC).
Em entrevista ao Esquina, com o filho no colo, Miah afirma que os editais servem como impulso para os artistas. “Então funciona como um impulsionamento. Financeiramente pra gente investir na nossa carreira e funciona como uma uma visibilidade melhor para o nosso trabalho.”
“A gente como artista urbano tem a garantia que vamos ter editais para que, se nosso portfólio estiver adequado, a gente vai passar nesses editais e a gente vai ter aquela renda.”
Atualmente, Miah se inspira no lúdico da infância para fazer seus grafites. Baseada na própria infância e acompanhando o dia a dia de seu filho mais novo, ela busca trazer uma mensagem de esperança para mães, trabalhadores e jovens não desistirem de seus sonhos. “A infância é a maior riqueza em questão de criatividade. O mundo é muito duro e a arte e a infância deixam as coisas mais leves. “
Hoje, seu maior objetivo é tornar seu grafite um trabalho rentável para poder se dedicar de forma exclusiva à arte.
Para saber mais sobre Miah, assista:
Expressão espontânea
Segundo a professora de arte Julia Maas, o grafite é uma maneira de ocupar os espaços e romper com a cidade. “Quando o grafite vem com as cores, com expressões individuais únicas, mostra que tem gente ali, não é só uma cidade de pedra inabitada.”
Por ser uma forma de expressão espontânea da comunidade local, o grafite materializa a vivência das pessoas na cidade. Mas a professora explica que, na área acadêmica, existe sim diferença entre pichação e grafite.
“O picho ainda não é considerado uma expressão artística, tem uma espécie de ruptura na aceitação dessas duas linguagens. A pichação é crime e de um tempo para cá, conseguiu-se mudar a ideia de que o grafite era criminoso. O picho está muito reservado ao universo periférico e subversivo, o grafite já conseguiu a aceitação cultural.”
Impacto
A maioria dos artistas não conta com o apoio do governo, e sim com trabalhos encomendados pelo setor privado ou até mesmo apenas pela bondade e autorização de pessoas sobre muros e paredes de suas próprias casas e comércios.
Este é o caso do artista conhecido como Caburé (Rodolfo). Tem 30 anos e é originário de Taguatinga, região administrativa do DF. Ele pediu autorização para um casal dono de um bar na localidade para pintar em uma parede disponível. Com algumas latas de tinta, uma escadinha cambaleante e uma ideia na cabeça, Caburé passou duas horas grafitando a pequena e acabada parede, em completo silêncio.
Curiosos, tanto os donos como as pessoas que passavam pela rua paravam para ver a arte sendo realizada, e o sorriso que abriam era visível. “A mensagem que eu busco passar é tentar melhorar o dia a dia das pessoas. Minha arte é bem colorida, eu procuro usar várias cores assim pra dar um destaque, ser bem chamativo e pra alegrar também as pessoas”, afirma Caburé.
Vendedor, freelancer e até soldado do exército. O artista trabalhou em empregos variados até descobrir o grafite, algo que realmente o completava. “Quando eu descobri o grafite, foi um momento que parecia que eu estava em um processo de meditação. Quando eu estou pintando, o tempo para. Não sinto cansaço, não sinto fome. Vi que era isso que eu queria pra minha vida”.
“O grafite me mostrou muitas coisas. Me fez aprender muito porque é uma arte de rua. todos os dias você está ali na rua, sempre passa alguém que solta um comentário e te ensina uma coisa. É um aprendizado diário. Todo dia o grafite muda um pouco a minha vida.”
Caburé recorda que, quando criança, já gostava muito de desenhar e inclusive participou de aulas mais aprofundadas de arte na escola. “Quando estava na quarta série, eu participei de uma aula no colégio público na parte da tarde pra quem sabia desenhar. Então lá eu aprendi muito do que eu sei hoje sobre técnica de arte.”
Para saber curiosidades do artista, assista:
Caburé já grafitou em Samambaia, Sobradinho, Brazlândia, Ceilândia, Águas Claras e, mais recentemente, na Asa Sul. Apesar de trabalhar sozinho nos projetos desde que começou a grafitar profissionalmente, seis anos atrás, ele faz parcerias com outros artistas brasilienses, de quem tira inspiração. “Minha maior inspiração hoje em dia são meus amigos da arte, artistas também, que sempre estão comigo e me inspiram demais, porque sempre que a gente está junto, dá aquele gás a mais para grafitar”.
Para o Esquina, ele contou que amigos como o Neew Art (Caio) e o Omik (Mikael), também grafiteiros e reconhecidos na capital, são suas principais inspirações.
As inspirações
Neew, que é do Guará, começou a desenhar quando criança, inspirado por desenhos animados americanos e animes, mas sempre sonhou em ser jogador de futebol. Com 18 anos, cursou até o sexto semestre de direito com bolsa para jogar futebol. Treinou muito, morou em outros estados, fez testes, mas a carreira com a bola não aconteceu. Com os desenhos sempre como hobbie e brincando de grafitar aos finais de semana, ele trabalhou em diversos empregos, de vendedor em shopping até professor de escolinha de futebol para crianças.
Neew já sabia que queria seguir com a arte, mas tinha medo do que poderia acontecer. “Quando eu comecei lá atrás, lá atrás era horrível porque assim, você pegava o spray, era tipo assim um pixador, era algo ruim. As pessoas não viam isso como algo bom né? E meus pais não queriam isso de jeito nenhum.
O que o fez superar seus medos, da reação da família e se aquilo realmente renderia frutos, foi uma oficina na Estrutural e na Samambaia. Duas semanas de imersão completa respirando grafite dia e noite trouxeram a certeza de que ele precisava. “Aí, eu joguei tudo pra cima e na sexta-feira mesmo eu saí de tudo e na segunda já estava trabalhando como artista”.
“[Quando eu saí] não tinha nada, não tinha cliente, não tinha nada. Eu fui montando aos poucos o ateliê que ficava no meu quarto mesmo e aí eu acho que começou a aparecer gente. Os amigos também indicavam muito.”
Omik, Neew Art e Caburé trabalham juntos frequentemente, como no mural abaixo, junto com mais um artista:
Arte como carreira
Omik desde os seis anos gostava de desenhos e começou reproduzindo os personagens da Turma da Mônica. Mais velho, ele começou o curso de arquitetura, mas também não finalizou. Trabalhava em uma construtora quando decidiu que queria viver de arte, de uma maneira inesperada.
“A partir do momento que eu conheci o grafite, sempre de observar nas ruas, morar na Ceilândia e tinha muito contato com o trabalho da Ceilândia… aí eu via bastante isso nas ruas, né? E eu tinha muita vontade de fazer, porém eu nunca pude ter isso. Até que uma vez eu vi um cara pintando, eu estava passando de ônibus, puxei a cordinha e desci só pra ficar olhando ele pintar de longe. Sem falar nada. Durante o trajeto para casa eu fiquei pensando nisso: caramba, eu quero muito fazer isso. E foi onde eu decidi, foi o intervalo de ir pra casa que aconteceram as coisas na minha cabeça”, relembra Omik.
Os pais de Omik nunca puderam presenciar a versão artista do filho, mas ele tem certeza de que apoiariam e estariam orgulhosos. “Quando meus pais eram vivos, eles sempre me apoiaram em tudo porque também era como se eu fosse um filho que eles nunca tiveram algum problema. Eles nunca me delimitaram a nenhuma profissão. Mas eles sabiam que, o que eu escolher, eu teria esse apoio”
Ele considera o universo artístico muito difícil. “É uma coisa muito oscilante. É pior que a bolsa de valores. Então uma hora você tá lá em cima, outra hora você tá embaixo. Então você não tem uma segurança, é uma montanha russa constante”
Versatilidade e internacionalização
Hoje em dia, tanto Neew quanto Omik trabalham não apenas com grafite, mas com dimensões mais amplas da arte. Seus desenhos foram para murais dentro de escritórios corporativos, mochilas, garrafas, skates, tênis, arte digital, quadros com tinta a óleo e para muito além das fronteiras nacionais. Eles se adaptaram a diversas superfícies e hoje fazem arte sob encomenda para pessoas físicas e até grandes empresas.
Ambos começaram a pintar onde moravam, mas, com o tempo, oportunidades de grafitar cada vez mais longe foram aparecendo. “Eu sempre morei no Guará. No começo, eu pintava muito lá, até porque eu nem tinha muito acesso a pintar em outros lugares, porque tinha que pegar um ônibus pra mais longe, mas aí acabou que também foi surgindo natural”, conta Neew. Junto de amigos também grafiteiros, ele também pintou na Argentina em diversas localidades da capital.
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Já Omik viajou o mundo com Onika, sua personagem principal. Com trabalhos espalhados por todo DF, como Ceilândia, Águas Claras, Guará e Lago Sul, o artista já visitou países como França, Portugal, Espanha, Reino Unido, Alemanha e quase toda a América Latina.
“O trabalho me deu essa oportunidade porque era algo que eu não imaginava: era possível viver disso”. E, no final, deixar a sua marca e inspirar as pessoas são os incentivos desses artistas que, apesar de todas as dificuldades enfrentadas na carreira, como falta de reconhecimento, oscilação de oportunidades e salários, além dos perigos de se trabalhar na rua, se completam ao deixar mensagens de positivas para a população.
“Acho que [a mensagem] é tentar mostrar sempre que é possível, acreditar nos seus sonhos e lutar por isso. Porque eu vejo muitas pessoas hoje desistindo, não vão em busca do que quer por medo ou pelo que as pessoas vão falar. E isso acontece no nosso trabalho o tempo inteiro”, afirma Neew.
Para saber mais sobre a vida e carreira de Omik e Neew, assista:
Produção dos vídeos: Alexya Lemos, Giovanna dos Santos, Juliana Weizel e Otávio Mota
Omik contou ao Esquina como sua arte, a partir do momento que estava na rua, não era mais sua, e sim das pessoas, que a interpretam de acordo com suas próprias vivências. “Eu pintei uma personagem na W3 sul e uma mãe me mandou um email contando a história sobre como ela passava em frente da obra com o filho dela pra deixar na escola”.
Ele explica que a criança puxava a roupa dela e apontava para algo. A mãe achava que ele estava falando sobre o céu. Depois de fazer isso a semana toda, conforme a mensagem, na sexta-feira, o menino puxou a roupa da mãe de novo. O garoto abriu a mochilinha, pegou o caderno e tentou reproduzir o desenho que estava vendo. “Ela me disse que ele se identificou com o fato da personagem não ter boca. O garoto era mudo.”
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Por Alexya Lemos e Giovanna dos Santos