HIV: como empatia e ações práticas podem mudar vidas e reduzir o vírus do preconceito

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Os dias são longos. Mas, nas veias, corre sangue com energia de sobra. O coração bate forte. Quem se doa e quem é ajudado não têm tempo a perder. Depois do diagnóstico para o vírus HIV, pessoas em situação de vulnerabilidade precisam de mais apoio ainda. Não são apenas medicamentos, mas também informação. Não são apenas alimentos, mas também atenção.

No Distrito Federal, ações solidárias em grupo ou individuais têm feito a diferença. Fazem as pessoas acordar e dissipar pesadelos. Quem se sentia sozinho…passa a contar com abraços. Há braços.

Efeito colateral

Cada iniciativa tem uma história e diferentes motivações. Pessoas solidárias dizem que aprenderam. Sentiram na pele, viram a dor diante de si e descobriram que precisavam arregaçar as mangas. E ampliar as palavras, também para combater um efeito colateral, o que os voluntários chamam de “vírus do preconceito”.

Contra os ataques, o remédio: mais trabalho e força de enfrentamento. Há quem chame de empatia. Há quem defina como amor.

Segundo a Pesquisa Doação Brasil 2022, realizada pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis), 31% das doações feitas no país são motivadas por amigos e família.

Esse é um retrato humano e pragmático de quem participa do terceiro setor no País. Na prática, as pessoas solidárias também esmiúçam sentimentos intraduzíveis.

Sorrisos e farofa

Compaixão. Cuidado. Amor. E disposição. São esses os sentimentos que movem Vicky Tavares, de 75 anos, todos os dias. Ela se move pelos outros. Ela se movimenta por causa das pessoas que têm fome e medo. “Principalmente, também, por crianças que convivem com HIV desde que nasceram”, acrescenta.

Mas, as pessoas beneficiadas se sentem felizes porque a “Vovó Vicky” construiu para elas um lar de sorrisos. Vicky Tavares criou a ONG Vida Positiva em 2006.

Farofa da Vovó Vicky ajuda portadores do vírus HIV em Brasília. Foto: Agência Brasil / Arquivo

Desde então, ela lida com um universo de preconceitos e dificuldades financeiras. No entanto, não são vencidos pela solidariedade que move aquele lugar.  Ela e os voluntários vendem farofas especiais, em 18 sabores e receitas, para pagar as contas e ajudar as pessoas.

Farofa e amor: confira vídeo sobre as ações de solidariedade de Vicky Tavares

Além de doar alimentos para mais de 300 pessoas, o projeto Vida Positiva abriga atualmente 27 pessoas em uma residência na quadra 711, na Asa Sul, em Brasília.

Em um primeiro olhar, parece um espaço pequeno para tanta gente. Mas, para Lúcia Carvalho, de 44 anos, “ali é o céu”.

Ela, que antes dormia na rua com seus três filhos, agora tem comida, cama, banheiro e internet. 

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“A gente tinha que tomar banho de balde. Era todo aquele processo de pegar água, encher o balde. E naqueles dias (período menstrual) era muito ruim”. 

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Gratidão 

Lúcia se emociona ao contar que agora tem uma gaveta cheia de absorventes. Ter acesso a absorventes e papel higiênico é um luxo para ela.

Ela mostra com gosto como eles estão organizados ao lado de outra gaveta com as roupas doadas para os seus filhos. Ela ama arrumar o guarda-roupa. Nunca teve um.    

A venda de farofa mantém a casa com pessoas com HIV. Foto: Agência Brasil/Arquivo

“Tem tudo isso e ainda é de graça”, sorri Lúcia.

Afinal, ela não acreditava que seria capaz de trabalhar para manter a família. Ela cuidava sozinha de seus pequenos.

Acima disso, ela tinha medo de não ser aceita. “Meu filho mais velho até falou pra mim: mãe, você tem certeza? E hoje ele diz que ama esse lugar aqui, fala que aqui é o céu”.

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“Agora eu posso fazer alguma coisa da minha vida. Agora eu quero voltar a trabalhar. Meus filhos dormem bem, acordam bem. Eu posso sair pra procurar um trabalho. E eu vou voltar a trabalhar”. 

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Mas, depois que virou parte do Vida Positiva, percebeu que ainda tem gente com bom coração. Ela diz que será eternamente grata pela compaixão da Dona Vicky.

Graças a ela, Lúcia sente que pode voltar a viver com dignidade humana. 

Sustento após HIV

Para manter o projeto, a fundadora conta com doações em dinheiro, alimentos, roupas, produtos de limpeza, fraldas e brinquedos. Mas, os doadores ainda não são o suficiente para fechar as contas.

Ela precisa manter a qualidade de vida dos moradores e pagar os funcionários que trabalham na limpeza e na cozinha.

“É muito difícil ter voluntários por conta do preconceito. Por isso precisamos de funcionários”, afirma Vicky. 

Adesivos e as farofinhas são produzidas na própria casa. Foto: Ayumi Watanabe

Como alternativa, Vick passou a vender farofa, a partir das receitas que desenvolveu em família.

Segundo ela, as pessoas de casa sempre falaram que a comida dela tem um sabor especial e que ela deveria compartilhar.

Unindo habilidade e necessidade, hoje ela faz diversos sabores de farofa, entre salgados e doces, para ajudar nos gastos da Vida Positiva. Os funcionários e assistidos participam da produção. 

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“Eu resolvi, diante de muitas dificuldades, criar essa produção. E hoje a gente está pagando 30% das despesas da casa com o dinheiro das farofinhas”. 

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Os outros 70%, com dificuldades de arrecadação, abrangem doadores fixos e ocasionais.

Entre os fixos estão Lucas Carneiro e César Junqueira, doadores habituados a tocar a campainha e entregar comida e solidariedade naquela casa. 

César, de 63 anos, é um coronel aposentado da Força Aérea Brasileira. Há 10 anos, ele criou o projeto Amigos Alimentos, o qual trabalha sozinho até hoje.

Alimentos

“Eu busco alimentos na Ceasa, em casas de verdurões, padarias e fábricas de pães para aproveitar aquilo que está sendo jogado fora, mas ainda é bom para consumir. Aquilo que não é mais comercializado a gente busca e leva para as creches carentes, para orfanatos, casas de apoio, centros espíritas e abrigos”, explica. 

Doador entrega comida para grupos vulneráveis, inclusive os assistidos do Vida Positiva. Foto: Milena Dias

Segundo o doador, já foram cerca de 2 milhões de quilos de alimentos arrecadados até hoje e ele garante que ainda haverá muito mais pela frente.

“Agora está fazendo 10 anos e eu não quero parar. Eu não vou parar nem com doença, nem com chuva, nem com sol”. 

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“O mais importante de tudo isso é que, quando você começa a fazer um trabalho assim, você não quer parar nunca mais”.  

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César Junqueira diz que o sentimento que o preenche todos os dias é gratidão.

Para ele, essas atitudes ajudam muito mais a ele próprio do que quem recebe os alimentos. Ser solidário faz parte do dia a dia de César. 

Lucas Carneiro, de 33 anos, compartilha do mesmo sentimento.

Ele é empresário, dono de loja de utilidades do lar, e leva produtos essenciais para as crianças carentes, principalmente fraldas e caixas de leite, todos os meses.  

“É uma ação que todo mundo deveria fazer, e não é referente a valor nem nada. Qualquer quantia já é uma ajuda. Ou quem não pode ajudar em quantia, pode ajudar como voluntário. É um benefício tanto para quem recebe a doação como para quem doa”, diz Lucas.

Ele acredita que praticar atos solidários, além de ajudar o outro, é uma forma de agradecer pela própria vida.

Cultura de doação 

O professor de psicologia Mauro Júnior, pesquisador da Universidade de Brasília (UnB), explica que a solidariedade é uma característica universal da nossa espécie.

“As culturas humanas, de um modo geral, valorizam indivíduos que são solidários e cooperativos e tendem a rejeitar pessoas que têm atitudes egoístas. Então, é como se nossa mente estivesse programada para encontrar esses sinais e detectar pessoas solidárias”. 

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“A solidariedade é importante porque nós somos uma espécie social e dependemos dessas interações sociais para nossa sobrevivência e bem estar”, explica o psicólogo. 

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A pesquisa World Giving Index 2022, representada pelo Idis no Brasil, demonstrou que o ano em questão alcançou a maior porcentagem de doações das últimas décadas. O Brasil ocupou a 18º posição no ranking geral de doações, enquanto o 1º lugar foi da Indonésia. 

A Pesquisa Doação Brasil 2022 constatou que 84% dos brasileiros prestam algum tipo de apoio financeiro. Essas colaborações somam, ao menos, R$ 12,8 bilhões. 

Fonte Idis. Arte: Milena Dias

Apoio a vulnerabilizados com HIV

A cinco quilômetros da casa em que Vicky e voluntários apoiam crianças e adultos com HIV, a ONG Amigos da vida escolheu priorizar pessoas LGBTQIAPN+, pretas, mulheres vítimas de violência e minorias como público prioritário.

Christiano Ramos é fundador da ONG amigos da Vida. Foto: Ayumi Watanabe

O coordenador da entidade, Christiano Ramos, de 56 anos, que é soropositivo,contextualiza que as origens são especiais e familiares.

Foi o pai dele que criou a entidade para ajudar outras famílias a lidarem com as necessidades que aparecem pelo caminho.

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“Essa ONG nasceu dentro de um hospital público. Nós começamos a fazer atendimentos dentro desse hospital e percebemos que era apenas o começo e que havia muito a ser feito”. 

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 Ramos entende que se trata de uma missão de amor e altruísmo.

No início, quando os voluntários da ONG começaram a fazer visitas domiciliares, perceberam que muitas pessoas não tinham nem água potável para beber. Assim, a organização começou o trabalho com doações de filtros e cestas básicas. 

“Um dia, eu disse ao meu pai que não queria fazer esse trabalho assistencialista porque as pessoas ficam reféns disso. Então, meu pai falou para fazermos uma ONG que dê cidadania, garantindo os direitos dessas pessoas”. 

Atualmente, os serviços prestados pela ONG incluem assistência jurídica, atendimento psicológico e projetos sociais voltados para pessoas vulneráveis, não apenas com HIV, mas com qualquer tipo de doença incapacitante. 

Preconceitos contra HIV

 Devido à alta demanda de pacientes que solicitam por tratamento psicológico gratuito, a ONG está em busca de ocupar questões como estas.

“A gente percebe que os pacientes de HIV, principalmente aqueles socialmente mais vulneráveis, estão desenvolvendo cada vez mais transtornos psicológicos,como a depressão, ansiedade e síndrome do pânico.”

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“A gente abraça quem ninguém quer abraçar”.

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A Lei 12.984, sancionada em 2014, garante que portadores do HIV ou que têm a doença Aids não sofram preconceito devido a sua condição.

É previsto que, aquele que tiver conduta discriminatória, deverá cumprir pena de um a quatro anos. 

Apesar da existência da lei, as pessoas que atuam como ativistas lamentam que ainda são recorrentes casos de intolerância.

Em uma pesquisa feita em 2019 pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (UNAIDS) no Brasil, em parceria com diversas organizações e instituições, foi revelado que 64% dos entrevistados já sofreram algum tipo de preconceito por viverem com HIV ou Aids.

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“Muitas pessoas, quando descobrem o HIV, entre seus principais medos estão o de que a situação se agrave e o medo de ser rejeitado socialmente por conta do estigma acerca do tema”, explica o psicólogo.

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Confira abaixo trecho de entrevista com Christiano Ramos

Na Amigos da Vida, há um projeto intitulado “Transformadas”, que capacita mulheres trans e travestis para o mercado formal de trabalho.

A proposta é oferecer cursos profissionalizantes de cabelo, maquiagem, DJ, bartender e barista.

“É uma iniciativa que promove inclusão e empoderamento”, afirma Ramos. 

Aula do curso de culinária do Projeto Transformadas. Fonte: Divulgação/ ONG Amigos da Vida

A ONG conseguiu até conquistar apoio do cartunista Maurício de Sousa, que elaborou uma revistinha “Amiguinhos da Vida na Turma da Mônica”.

Os personagens Igor e Vitória, que são soropositivos, são integrados à Turma da Mônica.

Foi uma forma educativa de promover a inclusão e conscientização sobre o tema.

Foto: Divulgação

Camisinha e informação

Além de voluntários em entidades, há quem, a partir dos próprios ideais, resolveu ir para o sinal de trânsito para vender pipoca, distribuir preservativo e falar sobre o risco do HIV.

O aposentado Reginaldo Marques, de 64 anos, convive com o vírus há mais de 20 anos.

Todos os dias, ele sai de casa, em Samambaia, e pega o metrô até a Asa Sul. São 20 km de distância.

Nos semáforos da Asa Sul, além de vender pipoca, ele separa algumas horas do seu dia para distribuir camisinhas e conscientizar as pessoas sobre o HIV.  Ele fala sobre sua própria história.

Reginaldo Marques, de 64 anos, toma medicamentos diariamente. Foto: Marcello Hendriks

Através de uma antiga ONG para pessoas portadoras de HIV, o ativista conheceu o Projeto Vida, do qual ele hoje faz parte.

“Eu trabalho sensibilizando as pessoas e conversando com elas. Eu fico no sinal vendendo pipoca e mostro o folheto do projeto, alerto sobre o uso da camisinha e também sobre outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST)”.

Pipoca, camisinha e informação. Foto: Marcello Hendriks/ Agência Ceub

O vendedor de pipoca contraiu HIV há cerca de 20 anos. Ele descobriu por meio do teste rápido.

“Quando deu positivo, o médico me falou que não é por eu ser portador que a doença iria se desenvolver, mas para isso eu precisaria tomar o coquetel”.

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“Eu tomo o coquetel e faço acompanhamento no Hospital Dia. Não tenho mais o vírus detectável, graças a Deus”.

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O homem conta que sente que o preconceito escancarado contra portadores de HIV diminuiu ao longo dos anos.

Por outro lado, ele afirma que a vida de quem trabalha nas ruas da cidade nem sempre é fácil.

“Nós, que trabalhamos no semáforo, às vezes somos marginalizados. As pessoas fecham a janela do carro na nossa cara e nos ignoram. Infelizmente, é a realidade”.

Superação

Mesmo com dificuldades para se locomover, Reginaldo está nos semáforos da Asa Sul de segunda a sábado, de bom humor, sorriso no rosto e apoiado por uma muleta.

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“Eu tenho uma prótese no quadril. Há 8 anos, eu reagi a um assalto, onde o assaltante quebrou meu braço direito e me chutou várias vezes no quadril. Fiquei internado por 103 dias para fazer a cirurgia”. 

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Reginaldo já passou por momentos difíceis. A mãe morreu jovem e ele foi criado pelo pai e pela madrasta.

“Quando eu era mais novo eu era meio problemático: já fui preso e envolvido com drogas, mas são coisas do passado. Hoje, eu me libertei e estou há 3 anos sóbrio. Deus é maravilhoso, ele me escutou e me ajudou”. 

Toda a sua vivência o comoveu para ajudar as pessoas. Em um ato de amor, ele não quer que outras pessoas passem por isso. “Solidariedade para mim é amar ao próximo com todo o coração”. 

Foto: Marcello Hendriks | Agência Ceub

Jovens em risco pelo HIV

Segundo dados do Ministério da Saúde, de novembro de 2023, mais de 52 mil jovens, com idades entre 15 e 24 anos, evoluíram de infecção por HIV para Aids entre os anos de 2011 e 2022.

Os dados ressaltam a vulnerabilidade à doença ainda presente no Brasil.

Infectologista atuante em casos de Aids e HIV, a médica Sonia Maria Barbosa explica que, em grande parte dos casos, o HIV pode ser contraído por meio de relações sexuais desprotegidas com pessoas já infectadas.

Se o paciente não for acompanhado a partir desse momento, existe o risco de evolução para a Aids, momento onde o sistema imunológico do paciente passa a ser atacado.

Exposição

Além disso, gestantes com a doença que não recebem o tratamento adequado têm o potencial de transmitir o vírus aos seus filhos durante o parto.

A médica explica que as principais formas de segurança contra a doença é uso da camisinha e o tratamento com a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP),  que consiste em uma combinação de medicamentos disponíveis nos postos de saúde.

O método deve ser usado uma semana antes da relação sexual, podendo preparar o organismo em caso de contaminação. 

Leia abaixo mais sobre riscos do HIV

Diagnóstico e conscientização sobre HIV

Conforme a especialista, um dos meios para prevenir a doença é o diagnóstico precoce.

Se uma pessoa soropositiva começar o cuidado desde os estágios iniciais da infecção, a probabilidade de transmitir o vírus a outros praticamente desaparece. Isso, por sua vez, impede a progressão para a Aids.

“O diagnóstico precoce é importante por duas coisas, ele vai permitir ter uma vida normal com cuidados específicos e a possibilidade de alcançar o estado indetectável, reduzindo significativamente a transmissão do HIV”, explica a médica.

Leia mais sobre HIV

“Campanhas estão ultrapassadas”

Por Ayumi Watanabe, Fernanda Ghazali, Milena Dias e Nathália Maciel

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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