Entenda como a musicoterapia pode fazer a diferença para diferentes públicos

COMPARTILHE ESSA MATÉRIA



Paralisia cerebral, traqueostomia e pernas atrofiadas. Esta é a condição da única criança que a musicoterapeuta Gisele de Meire Lima, de 61 anos, atende. “Nunca tinha trabalhado com um caso assim, então topei pelo desafio. Coloco um tambor na frente dela, e ela adora tocar com a baqueta. Morre de felicidade”, destaca a especialista. O atendimento da menina começou no início do ano por pedido da mãe da criança, que gostaria que a filha se movimentasse de alguma forma e tivesse pelo menos meia hora de alegria na semana, uma vez que não existe a possibilidade de reabilitação. A profissional explica que há casos de paralisia em que um fisioterapeuta atua em conjunto com um musicoterapeuta para facilitar os movimentos do paciente, o que deseja realizar um dia.

A história da musicoterapia começa na Segunda Guerra Mundial, a qual possibilitou a aplicação e o estudo formal da prática. Graças ao Departamento de Defesa dos Estados Unidos, os hospitais estadunidenses do século 20 foram os primeiros a tratar soldados que retornaram do conflito com música, especialmente os com transtornos mentais. 

No sistema público

Segundo a Secretaria de Saúde do DF, a musicoterapia é utilizada em diferentes tratamentos de 150 crianças do Hospital da Criança de Brasília (HCB). Além disso, dos 18 Centros de Atenção Psicossocial (Caps) na capital federal, a maioria oferece oficinas gratuitas de músicas para promover a ressocialização dessa parcela da população em situação vulnerável. 

O Caps II do Paranoá, por exemplo, conta com essas oficinas. O coordenador da atividade, o psicólogo e músico Filipe Braga, chegou a criar, em parceria com o Ponto de Cultura Tambores Paranoá (TAMNOÁ), o grupo Maluco Voador, em que trabalhadores e usuários da instituição tocam clássicos brasileiros da cultura popular e composições próprias. O conjunto já fez apresentações no Espaço Cultural Renato Russo e no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), de Brasília.

Segundo Filipe, o projeto surgiu devido à carência de ações culturais e artísticas no DF para atender pessoas com sofrimento psíquico. “Buscamos desenvolver o potencial criativo e romper com o isolamento social, causado pelo estigma do sujeito com transtornos mentais”, enfatiza. A iniciativa também tem a intenção de valorizar o trabalho de artistas com a saúde mental instável e “mostrar que eles não são piores do que os considerados normais”, de acordo com o coordenador. 

Aproximadamente 15 pessoas, dentre 500 em tratamento contra álcool e drogas no Caps de Samambaia, participam dessas oficinas e se colocam como voluntários, coordenados por uma assistente social. Além de hospitais e Caps, a musicoterapia está inserida, há 10 anos, no Sistema único de Saúde (SUS), em meios como Clínicas da Família, Unidades Básicas de Saúde e Consultórios de Rua. 

Segundo a União Brasileira das Associações de Musicoterapia (Ubam), o preço de uma sessão varia se o atendimento é individual ou coletivo e domiciliar ou em consultório. Individual no consultório varia entre R$150 a R$ 350, enquanto à domicílio, entre R$200 a R$400. O coletivo, que só pode ser realizado em consultórios ou instituições, está entre R$ 240 a R$ 600. 

Instrumentos na sala

No consultório de Gisele, por exemplo, na quadra 705 Sul, há um ambiente com tapete felpudo, cadeiras com almofadas confortáveis, um teclado e outros instrumentos. Durante dois dias da semana, este local torna-se um lugar de terapia regada à música para diversas pessoas. 

“Você tem que estar inteiro para o outro. Tem que saber exatamente o que ele precisa de você. No meio das sessões, tenho pacientes que se abrem comigo e contam alguma coisa que os incomoda ou sobre a vida deles”

Antes de trabalhar com musicoterapia, Gisele explorou diversas áreas. Formada em ciência social, nunca chegou a exercer a área. “A vida me levou para outros lugares. Trabalhei no serviço público uma época e fiquei desesperada quando descobri que não era aquilo o que eu queria. Tive uma sorveteria também por 12 anos”, discorre. 

Apesar da dúvida de qual caminho seguir, a música sempre esteve presente em sua vida. Quando mais nova, cantou em bares e restaurantes, fez shows e até gravou CDs. Mais tarde, formou-se na Escola de Música de Brasília em Música Erudita e teve aulas particulares de música popular, estilo que mais lhe agrada. Durante essa época, deu aulas particulares de canto e de musicalização na escola onde seu filho estudava a convite da diretora. 

“Quando fui professora (de música) em uma outra escola, tive um aluno autista. Fiquei fascinada como ele era completamente alheio, mas cantava as músicas que eu cantava nas aulas. A música me conectava com ele”. A partir deste acontecimento, Gisele foi atrás de estudos que explicassem esse fenômeno, mas como não encontrou em Brasília, passou a fazer cursos e workshops. Atualmente, as faculdades Batista e Censupeg são as únicas que oferecem pós-graduação em musicoterapia no DF.  

Após um workshop no Rio de Janeiro, a orientadora do curso convidou Gisele para uma pós-graduação em Musicoterapia no Conservatório Brasileiro de Música, local onde professores de música foram os precursores da musicoterapia no país ao trazerem a arte sonora para a Educação Especial. Quando entregou, em 2017, o TCC sobre a relação entre alzheimer e a musicoterapia, a musicoterapeuta recém-formada enfim descobriu sua verdadeira vocação. 

Terapia alternativa 

O tratamento pode ser individual, focado no desenvolvimento de habilidades comunicativas e de auto expressão, ou coletivo, com o objetivo de melhorar a interação social. No primeiro caso, há o paciente passivo, o qual somente escuta o profissional tocar, e o ativo, que produz música com o terapeuta. Na outra possibilidade, a sessão é realizada em grupos em que todos criam sons. Pessoas com demência, amnésia, afasia (dificuldade de comunicação devido a danos em partes do cérebro) e autismo são as principais beneficiadas da musicoterapia. 

No começo de sua nova carreira, Gisele atendia principalmente crianças autistas. A profissional, que sempre trabalhou individualmente com seus pacientes, espalhava vários instrumentos pelo chão e deixava a criança escolher o que tocariam juntas. Segundo ela, hoje em dia, muitos colegas de profissão atuam nesse campo devido à expansão do transtorno e de neuropsicólogos, que descobriram as vantagens da prática para o autismo. “Já trabalhava com idosos antes, mas nos últimos anos decidi focar neles porque não tem muitos estudos sobre esse público”, relata ela, que hoje atende também adultos e uma menina de 10 anos.

Em 2020, a especialista abriu uma clínica em Águas Claras com um sócio. Um ano depois, o local não resistiu ao isolamento social imposto durante a pandemia do Covid-19, já que o atendimento exige que seja de forma presencial. “Para pagar as contas, tive que inventar outras coisas. Criei o projeto Cante no Seu Canto, em que dava aulas de canto on-line. Era para ser algo mais técnico, mas por conta da situação difícil que todos estavam passando, acabou sendo terapêutico”. 

Atualmente, atende às tardes de segundas e quintas no consultório e, nos outros dias da semana, à domicílio. Às terças pela manhã, Gisele parte em direção a Águas Claras para encontrar sua primeira paciente do dia. Depois, atende mais duas pessoas no Lago Sul. Já às quartas, atende na Asa Norte, Lago Norte e Noroeste. 

“A musicoterapia tem muitos estudos. A música mexe com áreas do cérebro de uma forma diferente. Às vezes, em uma terapia de fala, você não consegue expressar o que você quer, mas na musicoterapia, você trabalha o inconsciente com uma canção e consegue trazer para o consciente”, explica a profissional sobre o preconceito que existe sobre terapias alternativas à tradicional. Para ela, esse pensamento é falta de conhecimento por parte das pessoas. 

Em abril de 2024, foi aprovada a Lei 14.842, que regula a profissionalização do musicoterapeuta. “Foi uma luta. Teve um dia que nós, musicoterapeutas, de Brasília e de Goiânia, fizemos um show na frente dos deputados. Sempre que passava alguém, entregávamos folhetos. Quando passou o PL para o Senado, continuamos a pressionar até ter a aprovação do presidente”, relata a profissional. Segundo o projeto de lei, o profissional deve ser graduado em musicoterapia em uma instituição de ensino superior e ter atuado pelo menos cinco anos na área antes da publicação da lei. 

Música como tratamento 

Até 2021, Antônio Fernando Guimarães Santos, de 76 anos, era um funcionário que trabalhava há 51 anos no Ministério da Defesa. Após a saída de dois colegas próximos do trabalho, seus supervisores solicitaram sua aposentadoria. No mesmo ano, uma amiga da família notou que o recém-aposentado estava com pequenos tremores. Ao procurar o médico, veio o diagnóstico: Parkinson. “Nem eu notei que tremia, então começou (a doença) bem devagar”, confessou. Desde então, a rotina passou a consistir em pilates, às segundas e sextas, fonoaudióloga, às quartas, e musicoterapia, às quintas. “Faço essas coisas para não deteriorar de vez. E é assim que vou preenchendo meu tempo também”, fala ele, com um pequeno sorriso. 

“Quando vou fazer refeição, pego no talher e ele cai. Mas não ligo para isso, não quero nem saber se estão olhando. O que eu quero é estar feliz”, frisa ele sobre a doença ter mudado seu cotidiano mas não seu eu interior.

Uma amiga de sua esposa recomendou que fizesse aulas de canto para ajudar a manter as cordas vocais. E, por meio de seu filho, que foi aluno de Gisele em uma escola de música quando era mais novo, veio até a profissional para um atendimento especializado. “Quando eu chego atrasado, a professora briga”, conta ele, rindo, sobre as sessões semanais com a terapeuta a quem apelidou de professora. “Eu tenho prazer de vir para cá. A gente canta e conversa. Me faz bem”, conta, satisfeito, sobre a musicoterapia. 

Há dois anos no tratamento, o aposentado escolhe em casa as músicas que vai cantar com Gisele na clínica, imprime-as e as leva para os encontros. “Escolho pelo cantor, pela melodia e pela letra”. Apesar de ser fã de carteirinha de Nat King Cole e Frank Sinatra, ele não performa as canções dos cantores por não saber falar inglês. Por isso, opta por músicas brasileiras, incluindo forró e obras de Tim Maia, artista favorito do ex-funcionário público. Os gêneros bolero e valsa também aquecem seu coração por despertarem memórias de quando dançava com sua esposa em bailes na juventude. 

“Além dos concertos”

Graduada em educação artística com habilitação em música, Ângela Fajardo é musicoterapeuta desde 2015. Quando a profissional estudou canto lírico nos Estados Unidos, teve o primeiro contato com a musicoterapia por meio de conversas com colegas e professores da universidade e leituras de artigos. De volta ao Brasil e decidida a investir nesse campo, fez uma pós-graduação em musicoterapia.

“Não queria só tocar em concertos e dar aulas. Sempre tive vontade de trabalhar com a arte, mas não que tivesse apenas uma função performática, mas sim um lado terapêutico”

Durante seus primeiros anos como musicoterapeuta, Ângela teve majoritariamente pacientes idosos. Atuou também uma época em uma empresa de Home Care: “Convivi bastante com a morte. É uma área muito delicada e de muita entrega. Lidar com alguém que está morrendo requer momentos de intimidade e confiança. Foi importante para minha carreira na musicoterapia”

Em 2018, fez o concurso para o Hospital da Criança de Brasília José Alencar (HCB), onde trabalha desde então. Também trabalha no IMPI (Instituto de Medicina e Psicologia Integrada), no Lago Sul, onde é coordenadora de musicoterapia para crianças e adolescentes neuro-atípicos. 

Superação pela música

Entre os adultos, toda quarta-feira, às 9h30, Gisele vai para a casa de sua paciente Débora Moreira Barros, de 35 anos, no Lago Norte. “Às vezes, ela demora um pouco para responder, pois é difícil para ela essa elaboração do pensamento. Nunca recebi um diagnóstico preciso dela, mas acredito que seja autismo”, descreve a profissional.

Há sete anos na musicoterapia, Débora conta que sua vida mudou bastante: “Não me sentia inspirada antes. A música me tocou”. Nas sessões, aprendeu a tocar violão e a cantar. “Minha voz ficou mais clara para as pessoas ouvirem. Não falava alto, agora já consigo um pouco mais”. Além da melhora na comunicação, a musicoterapia permite que ela relaxe da semana corrida. 

Foi apresentada à musicoterapia pela madrinha, que conhecia Gisele, e recomendou que fizesse: “Ela achava que eu precisava de um hobbie, e que seria bom para a minha saúde mental aprender a tocar um instrumento”, relata a funcionária do Ministério da Justiça, que sofre de ansiedade. 

Nos 50 minutos semanais que tem com a especialista, costuma tocar pop brasileiro, sertanejo, especialmente Marília Mendonça, e rock, gênero favorito de Débora, que é fã dos Beatles e de um rock mais clássico. Ela não é a única da sua família que faz esse tipo de acompanhamento: o filho de 4 anos de seu primo faz em grupo. “Criança adora esse tipo de interação”. 

Por Catharina Braga
Sob supervisão dos professores Luiz Claudio Ferreira e Gilberto Costa

Este obra está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição-SemDerivações 4.0 Internacional.

Você tem o direito de:
Compartilhar — copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato para qualquer fim, mesmo que comercial.

Atribuição — Você deve dar o crédito apropriado, prover um link para a licença e indicar se mudanças foram feitas. Você deve fazê-lo em qualquer circunstância razoável, mas de nenhuma maneira que sugira que o licenciante apoia você ou o seu uso.

SemDerivações — Se você remixar, transformar ou criar a partir do material, você não pode distribuir o material modificado.

A Agência de Notícias é um projeto de extensão do curso de Jornalismo com atuação diária de estudantes no desenvolvimento de textos, fotografias, áudio e vídeos com a supervisão de professores dos cursos de comunicação

plugins premium WordPress