Em meio à correria do dia a dia, mães do Distrito Federal buscam alternativas para afastar as crianças das telas, equilibrando o trabalho e os cuidados com os filhos
Logo cedo, às 7h15 da manhã, mãe e filho já estão de pé. Antes de ir para a escola, a mãe tem apenas 30 minutos, durante o café da manhã, para fortalecer os laços através de conversas e carinho. Após isso, o próximo momento em família acontece apenas depois das 21h, quando ela chega do trabalho.
A recepcionista Ana Paula Dias, moradora de Santa Maria, tem 19 anos e é o rosto desta história. Mãe de Allan Lucas, de 3 anos, encontrou maneiras criativas de aproveitar o tempo com o filho longe das telas. Pedro Luis, de 25 anos, o pai, também faz questão de priorizar o tempo ao lado dos dois.
A mãe, antes do trabalho, deixa o filho na creche. Ele retorna de lá às 17h. Agora o compromisso de cuidar da criança é do pai. Ao chegar em casa, a primeira tarefa é fazer o dever de casa. Após isso, de noite, o pai costuma levar o filho ao parquinho ou à quadra de esportes próxima de casa para jogar basquete.

Ana Paula conta que, em certos dias da semana, Allan Lucas tem acesso a desenhos na televisão. No entanto, o casal afirma que controlam o tempo, o que permite até duas horas com pausas, além de selecionar cuidadosamente o que o filho assiste.
Porém, a família relata que umas das dificuldades que enfrentam é quando não está trabalhando e precisa conciliar as tarefas do dia a dia com os cuidados com o filho. Segundo a mãe, em momentos pontuais a televisão acabou se tornando uma válvula de escape para ajudá-la a dar conta de tudo.
“Quando eu não trabalhava e cuidava só da casa, era mais difícil. Nunca acostumei meu filho com telas, mas muitas vezes a TV acaba sendo uma válvula de escape. Quando eu precisava fazer algo ou me cuidar, usava isso. Mas, sempre priorizamos que ele brinque. Ele tem muitos brinquedos e gosta de brincar com terra e água, e a gente prefere assim, mesmo que se suje”, conta Ana Paula.
Vale lembrar, que é comum encontrar famílias como a de Allan Lucas, onde as telas por vezes se transformou em uma espécie de apoio para prender a atenção dessas crianças.
Desenvolvimento
Como forma de prender a atenção das crianças, as telas funcionam perfeitamente. No entanto, a psicopedagoga, Flavia Caetano, explica que crianças que passam muito tempo em frente às telas podem ter o sistema cognitivo afetado.
De acordo com a especialista, entre as consequências negativas para o desenvolvimento infantil estão as dificuldades de aprendizagem, bem como o comprometimento da coordenação motora. Além disso, crianças que usam muito o celular ou o tablet, tendem a apresentar maiores dificuldades na aprendizagem. A coordenação motora, tanto ampla quanto fina, pode ficar comprometida, assim como a coordenação visomotora.
“Muitas vezes, isso também afeta a fala, a criatividade e a socialização da criança, porque, na tela do celular, tudo está pronto. A partir do momento em que ela não precisa criar nada, a parte criativa do cérebro deixa de ser estimulada”, explica a psicopedagoga.
Equilíbrio
A realidade do pequeno Enzo Magalhães é diferente do de Allan Lucas. O menino, morador do Jardim Botânico, de 7 anos, tem acesso ao tablet e à televisão de forma controlada. A mãe, Luiza Pontes, diz que permite que ele jogue Minecraft com o primo ou assista a filmes infantis da Disney, sempre com um tempo limitado.
Luiza trabalha em casa como chef confeiteira e, no dia a dia, afirma que consegue lidar com a vontade do filho de passar muito tempo em frente às telas. Nas segundas, quartas e sextas, o menino começa o dia praticando jiu-jitsu, e, depois de gastar bastante energia, já é a hora de ir para a escola. Agora, o retorno para casa é por volta das 19h e às 20h40 a criança já está dormindo.

Além de estimular a prática de esportes, a mãe adota estratégias para manter Enzo longe das telas. Nas manhãs em que ele não tem nenhuma outra atividade, ela incentiva na rotina, jogos de tabuleiro ou de cartas. A confeiteira ainda relata que, como resultado, Enzo tem se destacado e ganhado campeonatos de xadrez na escola.
Além disso, aos finais de semana, os pais gostam de levar a criança para a piscina ou para andar de bicicleta em família ao ar livre.
Criatividade
Contudo, a confeiteira percebe dificuldade do filho em ter criatividade na hora de brincar sozinho. Segundo a mãe, Enzo prefere jogar em família ou com outros colegas, mas nunca sozinho. “Geralmente, ele brinca mais com os primos, mas quando está em casa, brinca pouco, porque não gosta de brincar sozinho. Às vezes, estou ocupada e não consigo dar atenção total para ele, mas sempre brinco um pouco. Ele gosta muito de desenhar, e a gente estuda e faz o dever de casa, então não sobra muito tempo para brincar de manhã”, explica Luiza.
Em um estudo desenvolvido por pesquisadoras da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), em 2023, foram analisadas 14 crianças, sete meninos e sete meninas, de 8 a 12 anos de idade, moradoras da cidade de Ribeirão Preto. A pesquisa observou que as crianças que usavam as telas como forma de entretenimento tiveram uma diminuição na criatividade e as brincadeiras passaram a ser uma extensão do celular.
Além disso, o trabalho revelou que as crianças relataram dificuldades em brincar sozinhas em ambientes físicos. Uma possível explicação para esse comportamento, segundo o estudo, é a dificuldade que elas têm em se desligar das telas, que oferecem entretenimento sem esforço. Esse hábito acaba que acostuma a criança a não precisar usar tanto a imaginação, o que limita o envolvimento em brincadeiras criativas e espontâneas no mundo real.
Interrupção
Outros estudos e a observação de especialistas, vem constatando que com o crescimento das tecnologias durante esta fase, o ato de brincar tem sido gradualmente substituído por jogos virtuais, vídeos chamativos, redes sociais e outras diversas possibilidades que as telas oferecem.

Em uma pesquisa do Comitê Gestor da Internet no Brasil, o TIC Kids Online, mostrou que em 2023, 24% das crianças entrevistadas relataram ter acessado a internet pela primeira vez antes dos seis anos. Além disso, outros 63% fizeram esse acesso até os dez anos, o que evidencia um uso precoce da tecnologia. O celular apareceu como o dispositivo mais utilizado por essas crianças e adolescentes.
Saúde
A Sociedade Brasileira de Pediatria, em seu manual sobre o uso de telas, atualizado em 2024, alerta para os principais problemas identificados por pesquisadores relacionados ao uso precoce e prolongado de tecnologias.
Entre os malefícios estão a possibilidade dos pequenos desenvolverem transtornos do déficit de atenção, hiperatividade, bem como problemas visuais, como a miopia e síndrome visual do computador. Além disso, o uso excessivo pode desencadear problemas auditivos ou perda auditiva induzida pelo ruído.
A pediatra Eliane Céspedes, especialista em neurodesenvolvimento, destaca que, diante dos muitos perigos que cercam as crianças, cada família deve avaliar se realmente vale a pena expô-las a tantos riscos. “Os pais devem se perguntar se são mais benéficos ou mais complicações. Essas complicações podem ser prevenidas se tivermos equilíbrio e, desde cedo, identificarmos que estamos, por exemplo, nos expondo”.
Hora de dormir
Além dos perigos apresentados no desenvolvimento, o uso excessivo de telas por crianças e adolescentes, principalmente antes de dormir, vem se tornando uma preocupação crescente entre os pais e responsáveis. Segundo Céspedes, uma das complicações mais significativas desse hábito é a insônia, que pode impactar a qualidade do sono e influenciar no dia a dia dos pequenos.
A especialista que esse quadro se dá pela exposição à luz azul transmitida pela tela dos dispositivos eletrônicos. Ao entrar em contato com com essa luz, a criança passa a ter interferência na produção de melatonina, o hormônio responsável por regular o sono, dificultando a capacidade de adormecer e manter um sono reparador.
Por isso, de acordo com ela, é importante que os pais estabeleçam entre os filhos uma rotina de sono mais saudável, e recomenda que as crianças não fiquem expostas a telas por mais de uma hora durante a noite.
Ainda entre as estratégias para manter a rotina de sono, está a necessidade da família determinar um limite de tempo em frente às telas, bem como não permitir o uso delas por mais de uma hora no período noturno.

Ainda entre as estratégias para manter a rotina de sono, está a necessidade da família determinar um limite de tempo em frente às telas, bem como não permitir o uso delas por mais de uma hora no período noturno.
“Além de suspender o uso pelo menos duas horas antes do horário em que você deseja que a criança vá dormir. Isso porque, nas duas horas que se seguem ao uso, há uma interferência no nível da melatonina, o que pode prejudicar o sono e a qualidade do descanso da criança”, completa a pediatra Eliane Céspedes.
O psicológico
Os riscos à saúde física das crianças são muitos, mas Céspedes, Flavia Caetano e o pediatra Ricardo Cesar alertam que as principais preocupações estão relacionadas à saúde emocional e psicológica.
De acordo com os pediatras ouvidos pelo Esquina, os principais impactos negativos no emocional das crianças têm se mostrado no aumento da irritabilidade, agressividade, ansiedade, e ainda gerando casos de depressão. Além disso, segundo Eliane Céspedes, as crianças podem desenvolver problemas relacionados à autoestima.
Primeira fase
Desde o nascimento até o final da infância, as crianças necessitam de estímulos que influenciam a condição física e a saúde em si, afirma a especialista. Além disso, questões humanas e sociais precisam ser totalmente reforçadas nesta fase. Porém, segundo ela, com as tecnologias cada vez mais presentes no dia a dia, isso também tem se perdido aos poucos.
A realidade atual já começa com a presença das babás eletrônicas no berço. Muitas vezes, os pais se comunicam com os bebês através dessas babás eletrônicas. “E, a partir daí, esse contato com os celulares vai se estendendo ao longo da vida da criança, reduzindo o afeto e o aconchego, que são fundamentais para os mecanismos neurológicos”, explica a pediatra.
Perigos cibernéticos
A pesquisa TIK Kids, divulgada em 2024, ainda mostra dados preocupantes sobre o ambiente online, em que 26% das crianças afirmaram ter sofrido discriminação ou cyberbullying. Outros 16% relataram ter tido acesso a conteúdos de teor sexual.
A psicopedagoga Flavia Caetano destaca que o excesso de tempo diante das telas representa um caminho perigoso para as crianças. Segundo ela, as telas permitem o acesso irrestrito a uma variedade de conteúdos, muitos dos quais podem ser inapropriados para a faixa etária, se não houver um controle adequado.
“Agora, o que é muito importante os pais ficarem de olho é o conteúdo que as crianças estão tendo acesso. Porque, infelizmente, a internet é uma terra sem lei, ninguém vê a cara de ninguém do outro lado, então, infelizmente, temos abusadores e temos psicopatas”, afirma Caetano.
A Sociedade Brasileira de Pediatria ressalta que o desenvolvimento cerebral e mental das crianças é altamente dinâmico e influenciado por fatores emocionais. Medo, ansiedade e depressão são frequentemente desencadeados por experiências ruins no ambiente virtual, que podem alterar o desenvolvimento, especialmente nesta fase de construção da base emocional.
“Como as crianças estão em processo de formação, essas experiências podem moldar sua forma de lidar com conflitos, frustrações e relacionamentos ao longo da vida”, aponta documento de orientação da Sociedade Brasileira de Pediatria.
Adolescência e redes sociais
Agora, falando sobre a pré-adolescência, que acontece entre os 10 e 14 anos de idade, a pediatra Eliane Céspedes explica que, é durante essa fase que o cérebro passa por um desenvolvimento importante, especialmente na área que controla os impulsos. Tal condição permite com que os adolescentes sejam mais impulsivos e propensos a se expor a riscos, uma vez que a capacidade de moderar esses impulsos ainda não está completamente formada.
Ela também afirma que, durante a adolescência acontece um descompasso com o nosso sistema límbico no cérebro, responsável pelas emoções. Assim, a partir da pré-adolescência até os 25 ou 30 anos de idade, existe esse descompasso entre os dois sistemas, o que reforça os cuidados que se deve ter em relação ao uso das redes sociais. “O sistema dos impulsos e emoções é o sistema que controla esses determinados impulsos. Portanto, o que acontece é que o adolescente tem, naturalmente, uma maior tendência a se expor.”
Educação midiática
Diante dos perigos que as telas apresentam, a educação midiática desde a infância, é fundamental para que as crianças desenvolvam um olhar crítico e habilidades de navegação segura. Eliane Céspedes, por exemplo, afirma que quanto mais preparadas as crianças estiverem para identificar e reagir a conteúdos perigosos ou comportamentos nocivos, mais protegidas estarão dos riscos da internet.
“A gente já tem que se policiar no sentido de educar as crianças. Então, daí mais uma vez a importância da educação para os pais, professores, pediatras e de toda a população que tem acesso às crianças. É preciso saber o que você está expondo e quais são as possíveis consequências.”
Coordenadora de comunicação do Instituto Palavra Aberta, Mariana Mandelli explica que, mesmo ainda muito pequenas, as crianças precisam aprender a utilizar a mídia de forma saudável, com um uso controlado que potencialize suas habilidades.
De acordo com Mandelli, crianças “formadas” pelas telas podem ter o seu vocabulário impactado, bem como as habilidades que serão desenvolvidas, as atitudes cotidianas e até mesmo a visão de mundo. Além disso, ela explica que é uma questão de cidadania.
“A gente tem que pensar a educação midiática como uma extensão da literacia tradicional. Precisamos ensinar as crianças, desde cedo, a decodificar palavras, frases, símbolos e mensagens porque isso está cada vez mais complexo no mundo em que vivemos”. Ela explica que essas crianças estão circulando. “Temos que pensar, desde cedo, que tipo de contatos, interpretações e usos essas crianças já estão fazendo”, completa Mandelli.
Aprendizados
A educação midiática ainda transfere para as crianças várias habilidades necessárias. Entre elas está o letramento informacional, que é quando a criança ou adolescente aprende técnicas de busca, curadoria e produção de conhecimento, desenvolvendo a habilidade para utilizar os termos corretos ao realizar pesquisas nas redes sociais ou no próprio Google.
O Instituto Palavra Aberta tem como objetivo promover a educação, tanto midiática quanto de forma mais ampla, além de incentivar a cultura e defender a liberdade de expressão da imprensa.
Um dos principais projetos da organização, sem fins lucrativos, é o Programa de Educação Midiática (EducaMídia), que busca espalhar esse tema principalmente pelas escolas do Brasil, com serviços de suporte e ferramentas para que crianças e jovens desenvolvam as habilidades necessárias para consumir informação de maneira segura e responsável.
Mariana Mandelli ressalta também que, mesmo com os avanços da inteligência artificial, as habilidades básicas de educação midiática continuam essenciais. Segundo ela, um dos caminhos para proteger as crianças é criar a habilidade de questionamento quando se tem acesso a alguma informação.
“Quando você encontra um conteúdo e precisa se perguntar: ‘Será que isso foi feito por inteligência artificial? É uma foto real? É uma voz real? É um vídeo autêntico?’. Essas questões se tornam cada vez mais importantes, e a educação midiática ajuda a formar cidadãos capazes de interpretar e questionar criticamente o que consomem”, afirma a coordenadora.
Velha infância
O pediatra Ricardo Cesar explica que, para reduzir o uso de dispositivos em casa, uma das alternativas é retomar as antigas práticas de infância, como brincadeiras em família e leitura.
“Precisamos voltar a ser exemplos de leitura e não exemplos de noites ou refeições com celulares nas mãos. As famílias são formadas com convívio e conversa, com vínculo próprio, com interesse e com brincadeiras”, diz Cesar.
Leia mais sobre leitura: Livro Infantil: estímulo à leitura deve ser permanente, dizem pesquisadores
As tardes repletas de brincadeiras também estimulavam o corpo, como o esconde-esconde, a amarelinha e o pique-cola. Em seu estudo “Arte de brincar: Resgatando as brincadeiras antigas”, Priscila Ferreira destaca que, ao brincar, a criança cria conexões com o mundo social, já que o brincar surge de forma natural e espontânea.

Ela ressalta que, durante as brincadeiras, as crianças aprendem a interagir e permitem que sua imaginação flua livremente. Assim, elas entendem e lidam com o mundo, constroem sua personalidade e recriam situações cotidianas. Além disso, Ferreira afirma que são as crianças que preservam e reinventam as brincadeiras tradicionais a cada nova geração.
No artigo “Lazer e amizade na infância: implicações para saúde, educação e desenvolvimento infantil”, Luciana Karine de Souza, Danielle Cristina Silveira e Michelle Araújo Rocha argumentam que o lazer e a amizade desempenham papeis privilegiados na vida das crianças, o que promove o seu desenvolvimento social, emocional e cognitivo.
Lembranças da infância
Entre os carros em um estacionamento no centro de Brasília, o flanelinha Antônio Carlos de Carvalho, de 47 anos, relembra a sua infância vivida em Xique-Xique, na Bahia. O trabalho na roça, plantando milho, era necessário para a ajuda da alimentação dos pais e de mais seis irmãos, porém qualquer minuto livre era usado para brincar.
Aos finais de semana, o costume era se divertir com outras crianças da vizinhança. “A gente brincava na rua mesmo, de biloca, futebol, de peão. Depois da escola também, a gente saía e ia direto brincar.”

Hoje, já em Brasília há 19 anos, Antônio Carlos, afirma que não tem mais tempo para se divertir e muito menos oportunidade de rever os seus amigos de infância. De segunda-feira a sexta, das 7h da manhã até às 18h da noite, ele se dedica à lavagem e ao manobrismo de carros. O trabalho foi a brincadeira que restou.
Por Nathália Maciel
Com supervisão de Luiz Claudio Ferreira e Gilberto Costa