Na vida de Sunny Soares da Trindade, de 17 anos, as dúvidas sobre o seu gênero começaram aos 10 anos de idade. “Meus seios cresciam e aquilo me assustava, me fazia sentir como se houvesse surgido ‘intrusos’ no meu corpo, eu entrei em pânico a cada mudança”, recorda. Por mais estranho que pareça aos olhos alheios, o sentimento de não pertencimento pode surgir independente da idade. Sunny lembra que pegava as roupas do irmão e se divertia com a experiência de não pertencer ao gênero feminino.
A busca por quem realmente somos pode ser difícil, mas também é compensadora. Desde que nascemos, padrões comportamentais binários e distinções de gênero são ensinados e cultuados dentro da sociedade em que fazemos parte. Porém, nem tudo o que é imposto é, na verdade, o certo e o que deve ser seguido. O apoio social e o combate à transfobia são essenciais para que esses jovens encontrem seu lugar no mundo e tenham seus direitos respeitados.
Sunny, por exemplo, recorda que estar com roupas masculinas o deixava livre e completo. “Eu me sentia diferente das meninas e dos meninos, era só isso que eu conseguia entender naquele momento”.
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Crédito: Reprodução/Arquivo Pessoal
Transição
O processo de transição de Sunny se iniciou quando tinha 13 anos de idade. O jovem lembra que, efetivamente, a primeira das muitas mudanças que vieram foi a troca de roupas ditas ‘femininas’ para as ‘masculinas’. Outra mudança foi a introdução ao seu novo nome entre os amigos. Na época, se assumiu como um garoto trans, porém, ainda sentia falta de algo.
A busca pelo que lhe fazia bem não foi um processo linear, e contou com altos e baixos. “Fiquei um tempo vagando entre a disforia e a euforia de gênero, fazia maquiagens e evitava vestidos, eu me sentia preso, sentia que eu era ‘indefinido’ demais pra me definir”, relata Sunny.
Mesmo após não se encaixar no conceito de ‘garoto’, ele acreditava que era cisgênero, mas ainda assim continuava confuso. Encarar a identidade feminina não foi o caminho para se encontrar, o que fez com que Sunny fugisse de sua identidade.
A maturidade, ao longo dos anos, trouxe para Sunny o caminho para entender de fato o seu processo. As respostas que faltavam apareceram aos 16 anos. “Me lapidando, pesquisando e entendendo o meu mundo interno e externo, me vi na não-binariedade, onde me encontrei. Percebi que a sociedade impôs apenas 2 caixinhas, mas existiam várias”, reflete o jovem.
A partir desse momento, começava uma nova fase. Um novo ciclo de entendimentos e descobertas que, em algum ponto, iriam se externalizar. “Para minha família, me vi angustiado, silenciado. Minha família não apoia”, comenta Sunny.
Porém, os laços de afeto se estendem além do sangue, e formam irmãos na caminhada que não pertencem à mesma família. Os amigos passaram a representar uma ponte de apoio, de respeito e acolhimento. Os laços com outras pessoas trans também fortaleceram Sunny, que compartilha coisas que somente jovens transgênero entendem, sejam elas boas ou ruins.
“A busca pelo nome social, por afetos, a aceitação no mercado de trabalho e no ramo artístico onde sinto o preconceito e a exclusão, muitas vezes acontecem de forma velada, o que dificulta lutar contra”. O jovem se viu em um meio de invalidação. Uma realidade de violência, crueldade, que fere até quem vive próximo a essa realidade.
Vitórias
Por mais que a luta possua altos e baixos, os momentos de felicidade marcam a história. “Quando eu tive o presente de estar na primeira ‘Marsha trans’. Ali eu me senti empoderado, que mil algemas tinham quebrado nas mãos e nos pés, arrepiava a cada segundo e mesmo sabendo que iria enfrentar situações ruins só pela minha existência, por um momento eu vivi a esperança, lembrei das situações ruins que passei como se por um momento elas sumissem para sempre”, relembra Sunny.
Além do apoio dos amigos, Sunny se viu guiado pela arte. A manifestação artística entrelaçada ao seu ‘Eu Lírico’ nortearam palavras e transformaram seus sentimentos em expressão. “Quando comecei a escrever meus sentimentos, todo o aperto no peito ia embora”.
“Hoje também agradeço à minha ex professora de sociologia, ela segurou minha mão e ouviu quem eu realmente era, me ensinou que se eu não lutasse pelo meu existir, ninguém existiria por mim, ela esteve junto comigo no choro e na felicidade”, relata o jovem.
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Crédito: Reprodução/Arquivo Pessoal
Autonomia
Sunny é um dos participantes do projeto social Romper Amarras, uma iniciativa do Centro de Defesa do Direito da Criança e do Adolescente do Distrito Federal. Posicionado como um lugar de fortalecimento da participação de adolescentes LGBTQIAP+ na conquista de direitos, o grupo estimula a igualdade de gênero, o protagonismo e a autonomia desses adolescentes.
“Conheci o Romper Amarras por meio de uma adolescente bolsista do projeto. Ter me conectado com outros adolescentes que compartilhavam tantas semelhanças me fez refletir sobre o porquê eu ainda me escondia. O Romper Amarras realmente rompeu amarras, barreiras… Me trouxe histórias e proporcionou que eu conhecesse a cultura LGBTQIAP+, fez com que eu não mais fugisse de quem eu era”, conta o integrante do projeto sem fins lucrativos.
“Nossa luta vai além do banheiro que usamos. Somos pessoas antes de sermos trans/não-binários.” – Sunny Soares
Fora da bolha
Theo Moreira de Sousa, de 18 anos, também está no projeto. Ele conheceu a iniciativa por um amigo de escola. Para ele, participar de momentos com pessoas que estão passando pela mesma mudança tem sido essencial para quebrar a bolha hétero cis em que vivia antes.
Sua jornada de autoconhecimento começou ainda criança, quando tinha 10 anos. Theo relembra que sempre se sentiu diferente dos estereótipos convencionais de gênero por gostar de coisas ‘femininas’ e ‘masculinas’. Por ser uma criança com acesso total à internet, ele se recorda de ter acesso a conteúdos LGBTQIAP+ e se identificar com alguns termos ali presentes.
Aos 13, começou a se reconhecer como um jovem trans. “Eu passei por alguns momentos de descobertas e redescobertas, no início pensei que fosse uma mulher cis lésbica, depois uma mulher cis bissexual, depois um homem trans hétero até pouco tempo atrás, quando me entendi como uma pessoa transmasculina bissexual”, conta Theo.
A influência da tecnologia no processo de autoconhecimento pode ser uma ferramenta poderosa. Na trajetória de Theo, poder se enxergar em outras pessoas através da tela do celular foi uma esperança no meio do processo. “Quando conheci o Paulo Vaz, que foi um influenciador homem trans gay que infelizmente se suicidou, percebi que não ser hétero não me fazia menos trans”, relembra.
Hoje, Theo percebe a tamanha importância da busca por sua melhor versão, e destaca que as pessoas não precisam se rotular sobre tudo o que são.
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Crédito: Reprodução/Arquivo Pessoal
Romper Amarras
Eulla Yamá é a coordenadora do projeto em que Sunny e Theo participam. Professora, travesti e coordenadora colegiada do Centro de Defesa do Direito da Criança e do Adolescente (Cedeca), Eulla destaca que a iniciativa surgiu em 2022 e veio para construir e fazer cumprir a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente, com a esperança de que os direitos dos jovens e crianças sejam, de fato, garantidos.
Em seus dois anos de existência, o projeto Romper Amarras já abraçou cerca de 140 jovens, sendo 100 no ano de 2022, com atividades itinerantes que passavam pelas regiões administrativas do Distrito Federal e Entorno, e 40 em 2023, com as atividades informativas de produção de uma história em quadrinhos.
Em 2022, o próprio projeto ia nas escolas, na comunidade convidar os jovens a participarem do projeto. No ano seguinte, o Romper Amarras abriu inscrições para os jovens interessados em participar do processo formativo, onde recebiam uma ajuda de 50 reais para participarem das atividades do grupo.
“A gente nasce com esse desejo militante de transformar a realidade, aquele desejo maravilhoso, sem grana, sem um espaço físico, só com esse ‘corre’ mesmo de aprovação de projetos”, diz a coordenadora.
O projeto oferece um apoio, um lugar de formação, acolhimento, pertencimento e referência a outros jovens LGBTQIAP+ de Brasília e de territórios ao redor da capital federal. “A gente também tem esse lugar de acompanhar o que está sendo discutido no cenário político, o que está sendo colocado no campo legislativo, quais são as leis que são problemáticas para a defesa dos direitos dos adolescentes LGBT’s, quais são as leis que são favoráveis”, adiciona Eulla.
Apesar do trabalho organizado e incidente na área, o projeto não possui verba suficiente para cobrir as despesas e diariamente luta contra as dificuldades financeiras para conseguir continuar com as ações sociais. A coordenadora comenta sobre a dificuldade de falar sobre o assunto que ainda está cheio de tabus dentro da sociedade.
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O projeto era financiado pela Embaixada da Alemanha, mas que se encerrou no ano de 2023. “Atualmente a gente está com as atividades paradas por falta de financiamento. O financiamento que a gente tinha se encerrou no ano passado e neste ano a gente, por mais que os adolescentes nos procurem demais e tenha muita demanda, ainda tá nessa dificuldade de retomar. Espero que ano que vem a gente caminhe para essa continuidade”, complementa.
Agora, o Romper Amarras busca apoio através do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal (FAC-DF), por meio da inscrição do projeto do edital que acontece todo ano, além da tentativa de recorrer a algumas emendas parlamentares. “Mas não conseguimos ter nenhum retorno, temos tido dificuldades de retorno por conta do que a gente faz junto aos adolescentes LGBT’s, então tem poucos deputados que abraçam essa discussão”, comenta Eulla.
Porém, apesar de todas as lutas, os resultados gerados da integração do jovem LGBTQIAP+ com seu potencial é gratificante, como conta Eulla. Ela reforça como o projeto consegue trazer a percepção dos jovens enquanto sujeitos que sabem de seus direitos e de suas liberdades. A possibilidade de ser quem é e de perceber a transformação que isso causa, além de fazer novas redes entre os jovens, é uma de suas maiores motivações para continuar com a iniciativa.
Mudanças na infância
Para o psicólogo clínico e mestre em psicologia do desenvolvimento, Ernesto Nunes, a construção social dos símbolos e signos binários são introduzidos às crianças ainda muito cedo, e, desde pequenas, elas são induzidas a simbolizar e terem posições em relação às questões de gênero.
“Mas isso não quer dizer que uma pessoa trans de idade nova já vai se incomodar com o gênero designado ao nascer, não necessariamente”. Ele explica que o processo de se entender ou de fazer algum estranhamento de gênero pode acontecer pela vida inteira. Mas tem algumas pessoas que, com dois anos de idade, já fazem isso, um estranhamento, mas não uma posição explícita de ‘não sou um menino, sou uma menina”, explica o psicólogo.
Ao longo do crescimento, o desenvolvimento da noção de gênero também floresce. Nos jovens que não se identificam com seu gênero de nascença, os desafios psicológicos podem se tornar obstáculos. “Muitas vezes é tensionado, obrigado a performar um gênero que é desconforme para o que ela entende para si. Os principais problemas são os construtos sociais muito violentos em torno dessa criança”, esclarece Ernesto.
Desde criança
Na vivência de Matheo Dutra, de 15 anos, o processo de autodescoberta começou cedo, aos 11 anos. “Desde que eu era pequenininho eu evitava muitas coisas que eu via como feminino, mas não exatamente porque eu não gostava, mas porque elas me remetiam a uma coisa que eu não era e não queria ser”.
A afirmação de seu gênero veio depois de muitas dúvidas. “Fiquei entre agênero, não-binário. Aí quando eu finalmente botei o pé no chão e falei ‘homem trans’, eu acho que foi um momento super importante”, conta Matheo.
Após a confirmação de quem realmente era, Matheo conta que o maior desafio que enfrentou foi o medo de se abrir para os pais e amigos, que foram os primeiros a saberem. “Eles foram uns amores comigo, foram as primeiras pessoas que souberam”.
Porém, o apoio da família não veio imediatamente. Matheo conta que, de primeira, ninguém acreditou que ele era trans. Depois de um tempo, a mãe começou a acreditar e procurou entender mais sobre o que estava acontecendo com o filho. O pai, por sua vez, demorou um pouco mais.
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Disputa pela infância
Mãe de uma criança trans de 9 anos, Thamirys Nunes conta o processo de entender a condição de gênero de sua criança. “Ela tinha em torno de 4 anos e foi um processo muito complicado e delicado, que exigiu bastante diálogo, desconstrução, entendimento. Foi um processo de muita dor”, revela.
De origem de uma família de direita e conservadora, Thamirys não tinha contato nem com pessoas e nem com a pauta LGBTQIAP+. Por isso, o processo com sua filha demandou muito tempo, escuta.
Hoje, ao lado de outras mães de jovens trans de todo o Brasil, a fundadora e presidente da Organização Não Governamental (ONG) “Minha Criança Trans” luta em prol da saúde, qualidade de vida, políticas públicas e direitos de crianças e adolescentes transgêneros. A ativista também é Vice-Presidente da Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas, Coordenadora Nacional da Área de Proteção e Acolhimento de Crianças, Adolescentes e Famílias LGBTI+ da Aliança Nacional LGBTI+ e Grupo Dignidade.
A ONG atua em frentes de acolhimento afetivo, fomento de políticas públicas e advocacy, diálogo com redes de ensino, psicologia responsável e pesquisa e elaboração de dados. Neste ano, fizeram um mutirão de retificação com 106 crianças e adolescentes. “Foi o primeiro mutirão de retificação diretamente para crianças e adolescentes trans do mundo, então eu acho que foi uma das nossas maiores conquistas”, relembra Thamirys.
“No ano passado a gente fez uma audiência pública na Comissão Interamericana dos Direitos Humanos (OEA). Foi a primeira vez que a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos falou sobre crianças e adolescentes trans. E esse ano, eu acabo de voltar de Genebra, onde eu estive na ONU, no Comitê de Infância onde foi a primeira vez também que a gente pode apresentar a pauta de crianças trans”, conta.
Em sua atuação ativa no campo trans juvenil, Thamirys percebe que a maior dificuldade dos jovens pode ser dividida em dois cernes: a transfobia e a falta de apoio familiar. Para aqueles jovens que já são acolhidos pelas famílias, é o preconceito, a discriminação que impacta na relação social que eles vão ter com amigos, na educação, na escola e no desempenho. E para aqueles que não possuem acolhimento familiar, esse é o principal problema. É onde eles sofrem violências verbais, físicas ou psicológicas de temerem que a família vai expulsar de casa, de temerem que não sejam mais amados, de temerem um abandono familiar, o que gera traumas, angústia, ansiedade.
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Violências
O psicólogo Ernesto Nunes explica que o apoio familiar no processo de descoberta é essencial. “Pode ser uma família que traga um apoio muito grande que vai buscar uma ajuda profissional qualificada e não algo de ‘cura trans’ ou ‘cura gay’, porque isso é muito violento”, acrescenta.
A procura por informações sérias, de profissionais sérios e que usam embasamento científico podem ser uma opção para conseguir apoiar as crianças e jovens transgênero. A transição de cada indivíduo é particular, não existe um modelo. Ernesto explica que é necessário conseguir ouvir e olhar esses jovens, respeitá-los dentro do processo, ações que podem ser desafiadoras uma vez que a sociedade não sabe ouvir as crianças, independente da identidade de gênero delas.
A infância é um campo de disputa complexo. É esse momento da vida que vai moldar os sujeitos do amanhã. “Se você consegue controlar a infância hoje, você tem condições de fazer uma manutenção dos status quo lá da frente para que as coisas não se transformem, que as normativas não sejam questionadas. Quanto mais você consegue controlar a infância, melhor você consegue, ou cria a ilusão de que consegue, fazer a manutenção das coisas como elas são”, analisa o psicólogo.
Moralismos
Os discursos moralistas de ‘não vão tocar nas nossas crianças’ tomam espaços e constroem narrativas que usam a infância como uma moeda de troca. “Tem um campo de disputa em torno da infância que é muito sensível, e se cria uma narrativa como se as pessoas que defendem os direitos humanos ou tem um olhar mais progressista sobre a vida e sobre a sociedade vão querer transformar as crianças em gays, trans, e isso é uma grande falácia”, acrescenta o estudioso.
“Quando a gente defende que as crianças podem ser o que elas quiserem, a gente não está dizendo que elas são obrigadas a mudarem de gênero. Então existe uma disputa em torno desse campo que é delicada, sensível”, explica Ernesto.
Assim, o olhar social para a questão deve ser honesto, no sentido de proteger as infâncias, no coletivo, e não uma infância só, se distanciando de posições ideológicas, defende Ernesto. “Acho que se a gente pudesse fazer alguma coisa relevante seria olhar de forma cuidadosa, ética e embasada cientificamente para os processos infantis”, finaliza.
Por mais utópico que seja imaginar um comportamento social geral em torno de um assunto tão estigmatizado e cheio de tabus, tratar da vida de crianças e adolescentes trans com seriedade e mente aberta é um dos muitos passos ainda necessários para que a cidadania e o respeito ultrapassem o preconceito e a transfobia.
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Por Marina Dantas
Com supervisão de Luiz Claudio Ferreira e Gilberto Costa