Músicos explicam como os instrumentos agiram contra a depressão

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Em meio às desafiadoras mudanças da adolescência, a música carrega consigo o potencial de auxiliar na saúde mental

Foi pela música e pelo reconhecimento das notas musicais que a clarinetista  brasiliense Bianca Araújo de Macena, de 26 anos, conseguiu atravessar a depressão, um dos momentos mais difíceis de sua adolescência e, provavelmente, de sua vida. A caminhada musical da jovem é longa e teve início na infância. 

Bianca no aniversário de 60 anos da Escola de Música de Brasília
Foto: Valter Campanato

Ela  começou a ter contato com a música na infância, na escola e na igreja, em ambos cantando em coros. A prática inicial de um instrumento em si foi com o piano popular aos 13 anos. “Aos 15 o que me encantou foi a clarineta e ela se tornou meu instrumento de formação, mas eu também toco clarone, que é o clarinete baixo, instrumento da família das clarinetas”, afirma Bianca. 

A trajetória de Bianca atravessou altos e baixos dessa partitura. Bianca diz ter  enfrentado desafios para continuar na prática do instrumento, uma vez que a jovem tinha o sonho de estudar medicina na Europa. Ela estava juntando dinheiro para alcançar o objetivo. Porém, em 2020, devido à pandemia do coronavírus, o sonho de Bianca precisou ser adiado. A atual professora de clarinete, formada pela Escola de Música de Brasília, conta que teve que lidar com muita pressão social e da família para escolher uma graduação de nível superior e ir bem nas provas, além de não desejarem que ela seguisse uma carreira musical. Bianca, atualmente, cursa Administração e, também, Agronegócio na Universidade de Brasília. 

Ela fazia cursinho para o vestibular e tinha muita cobrança de ingressar logo na faculdade. As aulas de música e a banda representavam, para ela, um local onde poderia esquecer um pouco das pressões de ser uma adolescente. “A ideia era ter, “por um momento”, um ambiente de convivência com pessoas da minha idade que estavam fazendo música junto comigo e que também estavam lá por isso”, afirma.

Apesar do esforço nos estudos e do amor pela música e pelo clarinete, Bianca enfrentou dificuldades. Ela foi diagnosticada com ansiedade e depressão. 

“A música fez parte de um processo muito difícil na minha vida, onde eu fiquei, aproximadamente, sete anos tratando ansiedade e depressão. Eu queria muito tocar, mas eu não tinha forças”. Quando ela tocava para si mesma, era um momento de paz e de leveza. “Algo que ocorria com frequência também, era que,”às vezes”, eu estava na aula e o professor perguntava se eu estava ansiosa porque eu acelerava o andamento da música”, recorda Bianca. 

Desenvolvimento

Segundo Sara Letícia Bessa, especialista em Psicopatologia e Saúde Pública, mestranda em Políticas Públicas em Saúde pela Fiocruz Brasília, atuante na área há 15 anos, a música exerce papel fundamental no amadurecimento e desenvolvimento da saúde mental durante a puberdade. De acordo com ela, este é um período marcado por intensas mudanças emocionais, cognitivas e sociais.

“A música pode servir como um meio de expressão e regulação emocional, ajudando os adolescentes a processarem sentimentos como tristeza, ansiedade, oscilação do humor”, avalia. A especialista acrescenta que a música também contribui para a construção da identidade. Ela contextualiza que, durante essa fase, os adolescentes estão em busca de grupos sociais com os quais se identifiquem. Ela entende que os gêneros musicais podem ser forma de estabelecer essas conexões”,  pontua a psicóloga.

Bianca  foi criada a maior parte do tempo pela avó e pela tia e  desenvolveu, ao longo de sua infância e adolescência, “uma paixão verdadeira pela música”. A, atualmente, jovem dá aulas de clarinete no Centro Educacional CCI Sênior. 

“A música representa liberdade e calmaria, pois quando eu estou triste e cansada é ela que me salva e me faz sentir capaz de ser e ter tudo”. A musicista testemunha que  a prática  revela uma parte vulnerável. “Eu sempre fui muito tímida e ela me coloca em confronto constantemente com essa timidez, com o perfeccionismo e com o sentimento de que não estou sendo boa o suficiente. É uma mistura de sentimentos”, resume.

Em todo o corpo

Todos esses sentimentos aos quais Bianca se refere, podem ser atrelados aos diversos estímulos sensoriais que a música pode causar. A psicóloga Patrícia Aguiar Cunha Santos, mestre em cognição e neurociências do comportamento, atuante na área há 26 anos, explica que a música pode afetar várias partes do cérebro e do corpo, podendo ser um verdadeiro exercício de ascese, prática que visa o desenvolvimento espiritual e pessoal, de forma positiva.

A psicóloga  explica que “a música reúne diversos estímulos sensoriais, como sonoros, táteis, motores e visuais. Liga também os estímulos lexicais, sociais, que, por sua vez, estimulam juntos todas as funções executivas do córtex frontal e pré-frontal. Além disso, a música une as funções motoras do córtex parietal, as funções do córtex temporal em ambos hemisférios, e as funções espaciais do córtex occipital. Há estudos atuais sobre frequências emanadas pela música que estimulam o campo eletromagnético do corpo“, afirma Patrícia Santos.

Apesar dessa dualidade de sentimentos, a psicóloga explica que a música carrega um poder de auxiliar no processo de amadurecimento que a adolescência traz consigo. Para Bianca não foi diferente. A música foi sua aliada em seus maiores obstáculos, auxiliou a provar para si mesma o seu valor, e a deu propósito. 

“Essa exposição me traz uma sensação de eu estar focada na arte. Eu crio confiança no que eu sei, no meu trabalho e no que eu estudei, então trabalhar essa autoconfiança é o que a música me traz. E dar aula de música me faz ser referência e uma musicista melhor” pontua Bianca.

Integração

Assim como Bianca, o estudante João Martinho, de 17 anos, é exemplo de que a música carrega um poder de influenciar na adolescência e de ser aliada no amadurecimento. O jovem conta que possui um jeito de ser mais reservado, principalmente após a pandemia. Adentrar no mundo musical o permitiu diversificar no leque de amizades e o fez reconhecer sua identidade pessoal. 

João em sua primeira apresentação de violão para sua escola de música em SP
Foto: Ana Paula Paiva

A música auxiliou o jovem a entender a própria identidade e a ampliar o ciclo social. Ele se atenta aos detalhes das letras e das melodias. “Pela manhã, quando vou para o colégio, eu coloco o fone de ouvido no transporte. À tarde, na volta para casa, faço o mesmo, e à noite eu busco ouvir músicas tranquilas para dormir”, afirma João.

Nascido em São Paulo (SP), filho de pai carioca e mãe brasiliense, João conta que a música, através da combinação da letra, ritmo e melodia, o ajuda a processar muitos sentimentos e é uma aliada em momentos de dificuldades. 

Para ele, a  música tem o poder de transformar. Para exemplificar, ele cita  o samba “Conselho”, de Almir Guineto,  sobre superação e resistência. “Em muitos momentos em que eu me sinto triste, confuso, ou até mesmo apático em relação a nossa existência, eu a coloco para tocar e, automaticamente, sinto que meu dia melhora”, diz Martinho.

De acordo com a psicóloga Patrícia Santos, a música tem potencial de estimular diversas áreas do cérebro e do corpo, podendo agregar ao tratamento psicológico no período da adolescência. 

“A música é uma importante fonte de estimulação neuropsicológica. Une estímulos sensoriais múltiplos, e ao promover toda a estimulação neuropsicológica e eletromagnética impacta a vida do ser humano”, afirma a especialista.

A musicalidade aos poucos se tornou parte da vida de João. Atrelado à música, os responsáveis por jovens abaixo da maioridade também carregam enorme papel no processo da puberdade. A jornalista, fotógrafa e mãe do João, Ana Paula Paiva, conta que a música teve muito efeito na vida de seu filho. Ela diz que percebeu desde cedo o interesse do jovem pelos diferentes sons e barulhos que ele conseguia reproduzir. 

“Aos 6 anos de idade, nós vimos o interesse dele por sons e a curiosidade pela musicalidade. A partir desse momento, a relação dele com a música se fortaleceu” explica Ana Paula.

Apesar desse contato desde pequeno com as aulas de cavaquinho, a mãe conta que o filho acabou criando outros interesses e hobbies ao longo da infância e pré-adolescência. Até que no meio da pandemia, ele iniciou aulas de violão, que foi um instrumento de grande importância para o jovem músico, uma vez que o mundo estava em período de isolamento. João conta que aprender um instrumento musical o auxiliou fortemente a combater os impactos do afastamento social. 

“Começar a praticar o violão foi algo que chegou na hora certa para mim, porque eu estava isolado do mundo, então poder focar minha mente em um instrumento que exige esforço e estudo para conseguir tocar, foi essencial para que eu pudesse me expressar naquele momento”,  conta João.

De acordo com a psicóloga Sara Letícia, entender o poder da música vai muito além apenas de categorizar os artistas e as melodias. Segundo a especialista, a adolescência é uma fase de busca por identificação, e os gêneros musicais podem ser um meio de desenvolver relações e fortalecer a autoestima. 

A influência que a cultura musical tem sobre a adolescência é visível, uma vez que é possível perceber, através de dados fornecidos pelo Spotify (um dos principais aplicativos de streaming musical da atualidade), que 70% dos consumidores, no Brasil, são da geração Y (entre 15 e 24 anos de idade). João conta que durante a pandemia, o aplicativo em questão era o que ele mais utilizava. 

Entre os gêneros musicais mais escutados pelos jovens no Brasil, estão o funk carioca, pop e sertanejo pop. Em 2022, o Spotify divulgou que o público, entre os 18 e 24 anos, ouviu mais de 578 bilhões de minutos de música, apenas no primeiro trimestre do ano. Tendo esses dados em vista, é notório a imensa influência que a música e os artistas têm sobre o público adolescente.

Sara Letícia afirma que em sua experiência, ao trabalhar em instituições de saúde mental, a música foi forte aliada para o avanço em tratamentos psicológicos, sendo utilizada como recurso terapêutico. “A música gera vida, esperança, faz muitas vezes renascer o desejo por algo que tinha sido perdido”, afirma Sara. 

De acordo com a psicóloga, a experiência de ir a shows e festivais de música, e interagir com outros jovens pode ser muito benéfica e positiva para o desenvolvimento de diversas habilidades sociais e para o tratamento de transtornos e síndromes psicológicas. 

“A experiência de ir a shows e interagir com outros jovens pode ser extremamente benéfica para o desenvolvimento de habilidades sociais e até para o tratamento de transtornos e adoecimentos psíquicos como a ansiedade, fobia social ou a depressão e diversos outros”, pontua Sara.

Em contrapartida, Patrícia aponta que é preciso ter cuidado em alguns ambientes que podem causar efeitos negativos.  “Ambientes cheios podem gerar reações individuais que interferem no livre arbítrio ou induzem a comportamentos diferentes do que a pessoa tomaria em um ambiente com mais espaço e mais opções de ação”, diz a psicóloga.

Por Andressa Andrade Sarkis

Com supervisão de Luiz Claudio Ferreira e Gilberto Costa

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