Memórias da luta: resgate de histórias das ‘Diretas Já!’

COMPARTILHE ESSA MATÉRIA

Quatro décadas depois, jornalistas relatam as experiências de cobertura da mobilização pelas “Diretas Já!”

(Sob inspiração dos versos de “Pelas Tabelas”, de Chico Buarque)

Quatro décadas após a mobilização pelas ‘Diretas Já!’, repórteres que estiveram na linha de frente da luta pela redemocratização recordam em detalhes a intensa experiência de cobrir um dos momentos mais marcantes da história do Brasil. “Nessa época, o repórter era parte da história. E nós não fazíamos só a cobertura, a gente vivenciava essa cobertura”, revela a jornalista Sonia Carneiro.

Em março de 1983, o deputado Dante de Oliveira apresentava a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 5/1983 que dispunha sobre a eleição direta para presidente e vice-presidente da República. De acordo com o cientista político, Valdir Pucci, dava ‘rosto ao movimento’ das Diretas Já. “A sociedade queria voltar às eleições diretas para Presidência da República. Após quase 20 anos sem poder exercer esse direito, a população se manifestava a favor disso. Até a proposta, não havia algo concreto que pudesse caracterizar o pedido”, aponta Pucci.

A apresentação da emenda deu expressividade à reivindicação dos brasileiros. O movimento começou tímido, mas passou a crescer pelo país inteiro depois de quase duas décadas de instalada a ditadura. Ao longo dos meses, impulsionada pela proposta, a mobilização popular tomou as ruas de norte a sul do país em manifestações massivas em apoio às Diretas Já!. “Aquele movimento que antes estava difuso dentro da sociedade, ganhou um corpo, ganhou algo de fato a ser solicitado”, completa o cientista político Valdir Pucci.

A explosão do movimento ocorreu em 25 de janeiro de 1984, exatamente três meses antes da derrota iminente, quando cerca de 300 mil se reuniram na Praça da Sé, no Centro de São Paulo. A partir daquele momento, o povo decidiu tomar as rédeas da situação e eventos crescentes tomaram o território. Pucci acredita que a Emenda Dante de Oliveira “foi o catalisador de um sentimento já presente dentro da sociedade”. O país queria votar para presidente.

No dia 25 de abril de 1984, em uma quarta-feira, a população brasileira receberia o resultado pelo qual aguardava esperançoso desde 1983. Vindo de tempos obscuros que se alastraram pelo país por 21 anos, o povo esperava ansiosamente pela aprovação da proposta de emenda constitucional que poderia mudar os rumos do país. Mas não foi o que ocorreu. 

A véspera

Segundo o Atlas Histórico do Brasil, organizado pela Fundação Getúlio Vargas, as medidas para impedir a pressão popular sobre o resultado da Emenda Dante de Oliveira começaram uma semana antes do dia da votação. O presidente-general João Baptista Figueiredo (o último ditador do período), com o intuito de evitar que a população comparecesse aos gramados da Esplanada e intimidar o Congresso Nacional, decretou estado de emergência no Distrito Federal, em Goiânia e em dez municípios do entorno da capital do país. 

“O regime inventou uma nova forma para reprimir. As medidas de emergência permitiam ao governo tomar todas as providências repressivas para garantir a segurança durante a votação”, conta a jornalista Tereza Cruvinel.

Tereza Cruvinel. Crédito: Arquivo pessoal / Tereza Cruvinel

Figueiredo nomeou como executor o chefe do Comando Militar do Planalto, general Newton Cruz, que nos dias 24 e 25 de abril de 1984 estabeleceria o bloqueio das estradas, dissolveria passeatas estudantis e cercaria o prédio do Congresso. “Ele era muito soldado, muito ‘milico’, muito mal. Ele metia medo”, conta Zenaide Azeredo, repórter setorista, por mais de 40 anos, da área militar, que realizou a cobertura das Diretas Já! pelo Jornal do Brasil.

A população brasiliense, a par das decisões do general que ocupava o Palácio do Planalto, promoveu na véspera da votação, um buzinaço para incitar o decreto. Após assistir irritadiço à boa parte da manifestação do terceiro andar do prédio do Exército na Esplanada, onde funcionava o Comando Militar do Planalto, General Cruz mandou buscar seu cavalo branco. “No buzinaço, foi quando ele (general Newton Cruz) enlouqueceu e foi para o meio da pista chicotear os carros. Tinha o estopim curto demais, o infeliz”, revela Zenaide.

Zenaide Azeredo. Crédito: Arquivo pessoal / Zenaide Azeredo

Montado no animal, fardado, empunhando um rebenque, chutou e chicoteou os automóveis que lotavam as pistas do Eixo Monumental. “Ele destilava ódio. Além de bater nos carros para poder parar o buzinaço, andou detendo algumas pessoas”, revela a jornalista.

“Primeiro achamos ridículo, depois sentimos pavor. Mas a gente sabia que ele era assim. Nos desfiles de 7 de setembro, no Eixão, ele ficava a cavalo com aquele rebenque, com o ‘chicotinho’. Nas matérias os repórteres se referiam assim e ele passava mais raiva ainda porque tem o nome, não é chicote, é rebenque, que é uma coisa que o comandante usa”, completa.

O dia

Na manhã do dia 25 de abril de 1984, policiais e militares circundaram o Congresso Nacional e instauraram o clima de tensão e medo. “A gente olhava e tinha medo, porque sabíamos do que eles eram capazes. Estavam todos ali para pegar manifestantes e nós, jornalistas, eles olhavam atravessados” lembra Marlene Galeazzi, repórter da Revista Manchete designada para fazer a cobertura da votação da Emenda Dante de Oliveira.

Marlene Galeazzi – Crédito: Maria Clara Abreu

Apesar dos esforços das tropas militares comandadas por Newton Cruz, milhares de estudantes ocuparam o gramado da Esplanada dos Ministérios. Deitados sobre a grama, os manifestantes reivindicavam com seus corpos as palavras “Diretas Já”. “Ficou bonito, ficou uma coisa muito emocionante. Tinha muita gente no gramado do Congresso”, destaca Zenaide Azeredo.

Tereza Cruvinel, jornalista do Jornal de Brasília na ocasião, que já se destacava pela cobertura política, testemunhou de perto a tensão e a esperança que permeavam o Congresso Nacional. “Era um momento de grande expectativa. A Esplanada dos Ministérios estava tomada por manifestantes, e dentro do Congresso, a atmosfera era de nervosismo e ansiedade”, relembra.

Entre os políticos, liderada pelo deputado Ulysses Guimarães (PMDB), a oposição lutava para conseguir os votos necessários para aprovar o direito de eleger o próximo presidente da República. A emenda precisava de 320 votos (dois terços dos deputados) para ser aprovada.

O trajeto

Enquanto a população aguardava esperançosa pelo começo da votação, Sonia Carneiro, repórter radialista do Jornal do Brasil, se encaminhava até o Congresso para acompanhar a votação da emenda de Dante de Oliveira. Com o intuito de driblar a segurança do general, a jornalista seguiu por trás da via N1, cortou caminho pela parte de baixo do Palácio do Itamaraty, deu uma volta, e conseguiu descer na garagem da Câmara. Subiu o elevador carregando os equipamentos pesados da Rádio JB, ao lado do filho Daniel, convocado por ela para ajudar a dividir o peso, e do técnico Gilmar Fernandes. 

Sonia Carneiro – Crédito: Arquivo pessoal / Sonia Carneiro

Assim que chegou ao Congresso Nacional, se direcionou ao local onde ficavam as cabines de rádios, acima do plenário e abaixo das galerias. Por meio de uma escadinha, Sonia tinha acesso ao local onde mais tarde os deputados declamariam suas decisões. 

Com os equipamentos aprontados, Carneiro se direcionou ao gabinete do comandante da campanha, o “pai das Diretas”, dr. Ulysses Guimarães, para acompanhá-lo até o plenário. Confiante, sem esboçar nem sequer uma ruga de desconfiança no rosto, ele a dizia “Vai passar! Vai passar!”.

Pela porta principal, a jornalista Marlene Galeazzi entrava afobada e nervosa com a quantidade de policiais que encontrara a pouco em volta do edifício. “Eu recém tinha entrado, estava assustada e todo mundo estava tremendo lá dentro”, conta.

A jornalista respirou e se dirigiu até o comitê de imprensa, no meio do caminho, perto do local onde ocorreria a votação, a gaúcha foi surpreendida por seu conterrâneo, o deputado do Rio Grande do Sul, Nelson Marchezan (PDS).

“Ele passou por mim e me deu um abraço, quase morri de vergonha. Eu levei um susto, porque eu estava ali cobrindo como jornalista e não tinha nada a ver com o partido dele, não tinha nada a ver com o movimento que estava contra as Diretas, muito pelo contrário”, relembra Galeazzi. Nelson notou o nervosismo de Marlene e disse: “Eu sei qual é a sua posição, mas calma, um dia as coisas vão melhorar”.

A votação

De volta à cabine, a radialista colocou o microfone, preparou o caderninho de anotações e, atentamente, iniciou a gravação ao vivo da sessão. Apesar das medidas de emergência instauradas por Figueiredo terem proibido a cobertura midiática da votação no plenário, os veículos de comunicação ‘furaram’ a restrição e transmitiram ao vivo para a população.

“Ficamos ali sem largar o caderninho. E transmitimos tudo. Quando havia um intervalo entre uma fala e outra, a gente fazia comentários. E fazíamos também interrupções quando era necessário, para explicar em alguns momentos quais eram as expectativas. Eu sentia que o Brasil estava parado para ouvir e torcer”, relata Sonia.

Na parte de baixo, no meio do empurra empurra onde estavam alocados os repórteres de campo, as jornalistas Tereza Cruvinel e Marlene Galeazzi acompanhavam atentamente  a votação que poderia mudar os rumos do país. “Nós entramos e ficamos mais ou menos encurralados. Os senhores deputados e senadores estavam sentados, e a gente podia, de vez em quando, levantar e caminhar um pouquinho na frente do pleito”, revela Marlene.

A cada pronunciamento ou manifestação diferente, Marlene saía correndo do plenário, entrava apressada no comitê, agarrava o telefone e discava o número da redação. “Foi muito tenso, a gente nem comeu direito naquele dia e tomava água do jeito que dava. Os jornalistas se movimentavam muito, alguns iam para a sala de imprensa, escreviam e encaminhavam por Telex para as redações”, conta a repórter.

O resultado

A votação terminou às 2h da madrugada do dia 26 de abril de 1984, com 298 votos a favor, 65 contrários e 3 abstenções, 112 não compareceram. Embora alguns políticos do PDS tenham votado a favor das Diretas, como o deputado Sarney Filho, que era, então, filho do presidente do PDS, José Sarney, e a proposta obter os votos da maioria, não atingiu o quórum de dois terços da Câmara necessário para a homologação.

“Quando abriu o placar, que se viu a derrota, foi muito duro, muita emoção”, relata Tereza. E para completar, Sonia lembra que “foi um engasgo geral, muito choro por todo o plenário”.

A radialista após baixar o microfone e descer as escadas, se dirigiu ao pleito e abraçou o deputado Dante de Oliveira. No cumprimento, ele a disse: “não passou hoje, mas vai passar em breve. Ninguém aguenta mais o que está acontecendo”.

Mesmo com a falta de aprovação, choro e sentimento de frustração que se espalharam pelo plenário, a sensação não era de derrota. Dante recebeu abraços, beijos e cumprimentos como se tivesse sido vitorioso. “Foi incrível. Não parecia uma derrota, parecia uma vitória”, relata Carneiro.

Ulysses Guimarães saiu abatido da sessão e consolou apoiadores que choravam, como a deputada Maria Conceição Tavares (PT) e as jornalistas Cristina Tavares e Tereza Cruvinel.

Ao som de Ipi Urra! Ipi Urra! Ipi Urra!, o gramado da Esplanada era tomado pela tropa de Newton Cruz que entoava sua comemoração a plenos pulmões. Zenaide relembra que soube que a emenda não tinha passado pela reação. “Ele se congratulou, deu parabéns para a tropa e depois se recolheu. Eu não sei o que ele faria se tivesse passado”.

Os comunicadores saíram apressados pelo Eixo Monumental e se direcionaram para as redações. Alguns escreveram do Congresso, no comitê, mas o espaço apertado não permitia caber todo mundo. Marlene foi até a Manchete, Zenaide encontrou o orelhão mais próximo para passar as informações ao Jornal do Brasil, Sonia recolheu os equipamentos da transmissão ao vivo, Tereza enxugou os olhos e se preparou para redigir a matéria.

“Foi muito triste. Nós sabíamos que era necessário transmitir, mas a gente tinha certeza absoluta, pelo menos no meu caso, e de vários jornalistas, que eles não iam conseguir segurar (o regime). Era tipo uma corda que estava prestes a arrebentar”, conta Marlene Galeazzi.

O dia seguinte

No dia 26 de abril de 1984, a notícia da derrota estampou os jornais pela manhã e as jornalistas presenciaram a decepção de quem lutava pelo voto para presidente. Apenas 22 votos distanciaram a democracia, naquele momento, dos cidadãos brasileiros. Zenaide Azeredo relembra que a maior parte da população descobriu a notícia naquele momento. “Nem todo mundo acompanhou a votação até às duas da manhã”, conta.

A jornalista relata que tinha o hábito de guardar a primeira página de diversos jornais no aniversário de seus filhos para realizar um caderno que compilasse os acontecimentos de cada ano desde o nascimento até a infância. 

Coincidentemente, a filha de Zenaide nasceu no dia 26 de abril, e a profissional guardou as capas de veículos como o Correio Braziliense, Estadão, O Globo e Folha de S.Paulo. “As manchetes dos jornais eram tristes, como ‘O sonho acabou’. Já o ‘O Globo’ não, era mais neutra e fria, como ‘Congresso não aprova Diretas’”, constatou a profissional.

Por Maria Clara Abreu

Sob a supervisão de Luiz Cláudio Ferreira, Gilberto Costa e Katrine Boaventura

Este obra está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição-SemDerivações 4.0 Internacional.

Você tem o direito de:
Compartilhar — copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato para qualquer fim, mesmo que comercial.

Atribuição — Você deve dar o crédito apropriado, prover um link para a licença e indicar se mudanças foram feitas. Você deve fazê-lo em qualquer circunstância razoável, mas de nenhuma maneira que sugira que o licenciante apoia você ou o seu uso.

SemDerivações — Se você remixar, transformar ou criar a partir do material, você não pode distribuir o material modificado.

A Agência de Notícias é um projeto de extensão do curso de Jornalismo com atuação diária de estudantes no desenvolvimento de textos, fotografias, áudio e vídeos com a supervisão de professores dos cursos de comunicação

plugins premium WordPress