Sala de aula: saber ler poderia ter feito a diferença, diz vereador analfabeto

COMPARTILHE ESSA MATÉRIA

Estar longe da escola causa um impacto difícil de consertar na vida da pessoa. Atualmente, o Distrito Federal possui o segundo menor índice de alfabetização do país, com 97,2% da população — acima dos 15 anos — alfabetizada, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022, atrás apenas de Santa Catarina (97,3%). Porém, como nem todos os estados brasileiros conseguiram atingir esse número alto de alfabetizados, muitas pessoas vão para o DF tentar recuperar o que não conseguiram ter em seus estados natais.

É o caso do vereador reeleito de Vila Boa, Goiás, a 165 quilômetros da capital federal. Aluno do CED Estância III, em Planaltina, o político não é natural do DF, mas mora e estuda aqui para que sua vida política não seja afetada pelo impasse que a vida lhe impôs. Ele diz que é um sujeito comum, crescido na roça, e que começou os estudos com 8 anos e largou com 15, na metade da quarta série. Parou de estudar pelo motivo mais comum de quem desiste da escola: precisava trabalhar. Hoje, além de político, é dono de uma serralheria. “A empresa exige muita sabedoria”, afirmou.

Aldacino descreve sua leitura como sem pausa. Ele diz que não sabe ler as pontuações nem utilizar as construções gramaticais para melhorar a sua leitura e a própria interpretação. Mas como conciliar a vida política com o analfabetismo? “Hoje em dia a pessoa que não tem leitura, ela é discriminada, entendeu? Principalmente nessa área política”.

Seu Aldacino é vereador reeleito em Vila Boa, em Goiás, e critica o preconceito existente com analfabetos na política. Crédito: Aldacino/Acervo Pessoal

“O que eu imagino daqui para frente é eu aprender, aprender a ler, aprender a escrever melhor. Eu pretendo estudar até quando eu der conta. Hoje, se eu tivesse estudado, talvez a minha serralheria não estivesse mal. Talvez estivesse melhor. […] O meu sonho é aprender a ler, o que eu mais quero no mundo é aprender a ler”, lamentou.

Educação no Brasil

Dados sobre educação da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE mostram que, em 2023, quase 400 mil crianças de 6 a 14 anos não frequentavam a escola. Isso corresponde a 3,4% do total de crianças, o que não é pouco.  Em determinado ponto, essas crianças irão precisar viver a vida adulta sem saber como disputar espaço. A taxa de analfabetismo de pessoas com 15 anos ou mais no Brasil, de acordo com dados do IBGE de 2022 (ano que foi feito o último Censo), era 6,5% da população do país, o correspondente a 13,2 milhões de pessoas.


Uma das propostas governamentais para tentar contornar esse problema foi a implantação da Educação de Jovens e Adultos (EJA) como modalidade de ensino brasileiro, nos âmbitos fundamental e médio, em 1996, através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 9394/96. Essa nova modalidade foi influenciada diretamente pelo patrono da educação brasileira, o educador pernambucano Paulo Freire. O EJA é um projeto que visa reconectar com o mundo aquela pessoa que não foi alfabetizada devidamente, para que ela não se sinta excluída.

A linha de frente do EJA

Educadora desde início dos anos 2000, a professora Maria Matias, da educação de jovens e adultos  na região administrativa de Planaltina, no Distrito Federal , explicou que, ao longo dos últimos 20 anos, mesmo com uma porcentagem reduzida de analfabetos, é  comum encontrar pessoas em idade adulta que tenham dificuldade em ler e escrever. O Distrito Federal, por abrigar a capital do Brasil, necessita de uma infraestrutura educacional adequada.

Já a professora Cynthia Badu, também do EJA há quase 20 anos, ao lado da Maria, enxerga o EJA como “uma oportunidade”, mas, ao mesmo tempo, ela acredita que “é muito mais mascarar o que o governo, o que o Estado não fez pelo direito de estudo de uma criança e de um adolescente. […] Por que que esse meu aluno, com 40, 50 anos, está tendo que buscar algo que não foi de direito dele por algum processo lá atrás?”, questiona a educadora.

Essa é uma pergunta que todos deveriam fazer, especialmente aqueles que são eleitos para representar as pessoas, não somente os 93% alfabetizados. A Secretaria de Educação do Distrito Federal informou que o EJA distrital possui mais de 24,5 mil alunos matriculados, com uma idade média de 28 anos e majoritariamente do sexo masculino. A pesquisa da PNAD apontou, além dos dados infantis, as taxas de analfabetismo para cada faixa etária em 2023. 

A professora Cynthia Badu fala sobre o papel da educação de maneira mais emotiva e instintiva. Já a professora Maria Matias cumpria outro papel essencial, o da racionalidade, da vida dedicada à academia. 

Ambas as professoras explicam que o papel do educador vai além de passar a matéria ali, crua, e esperar que o aluno absorva tudo aquilo. É importante ressaltar que o EJA, apesar de cumprir o papel de recuperar parte do tempo perdido daquele jovem ou adulto, faz de uma maneira muito acelerada. Cada ano letivo é feito dentro de um semestre. Dessa forma, é preciso que o professor vá além do estereótipo. O professor precisa entender como é ser um daqueles alunos e precisa estar no meio deles.

“Se você percebeu na minha fala e na da Cynthia, os professores que conseguem alcançar o mínimo, são professores que escutam. Se a gente não faz essa escuta, a gente só tem números. E meramente no final do ano, no final do semestre, alguns alunos que vão avançar e outros que vão continuar”, ressaltou Maria.

Quando a fala voltou para Cynthia, ela reforçou um aspecto muito importante da música de Chico, o verso em que ele afirma que “A vida segue sempre em frente”. Para a professora, essa é a mais “pura verdade”. “No nosso caso aqui, a gente trabalha com o eixo, com a alfabetização de adultos, é o que se perdeu. Não dá para ficar olhando para trás. A gente tem que trazer o agora, a vivência do aluno do presente, para a gente resgatar o presente e construir o futuro”.

Dando a volta por cima

Histórias parecidas de pessoas diferentes talvez seja o mais comum no EJA. Assim como o vereador Seu Aldacino, Marinalva Andrade da Silva, de 49 anos, foi mais uma refém da falta de possibilidade de estudo. Nascida na Paraíba, veio para Brasília com 16 anos já casada. Em sequência, engravidou e precisou trabalhar. Porém, o que diferencia a história de Marinalva da história de Seu Aldacino é um fator específico, também clássico no cotidiano brasileiro: o marido de Marinalva a abandonou, fazendo com que ela precisasse cumprir o papel de mãe e de pai. Dentro das prioridades da dona de casa, estudar não fazia parte.

De origem paraibana, Marinalva se casou muito cedo e precisou largar os estudos para se mudar para Brasília. Crédito: Marinalva/Acervo Pessoal

Há alguns anos ela já havia tentado retomar os estudos, mas o trabalho exigia demais do seu tempo e precisou largar novamente. Hoje, Marinalva comemora por estar matriculada no CED Estância III, em Planaltina, e por conseguir acompanhar as aulas e manter uma boa frequência. “Isso aqui é uma minha terapia”, descreveu. “Mas o meu sonho, se eu pudesse ter, hoje, é a medicina ou o direito. […] Fé, foco e força”.

Aldacino arrepende-se de não ter começado antes. “Se tiver oportunidade de estudar, não perca essa oportunidade. É muito bom estudar, é muito bom você saber ler, você ver uma coisa assim, você poder ler, se você quiser fazer uma conta, você saber fazer aquela conta”.

Para Marinalva, é necessário força para enfrentar a adversidade. “Você tendo força, você move montanhas. Até o sábio todo dia aprende, imagina nós”, completou Marinalva. 

Por Iago Mac Cord
Sob Supervisão dos professores Luiz Claudio Ferreira e Gilberto Costa

Este obra está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição-SemDerivações 4.0 Internacional.

Você tem o direito de:
Compartilhar — copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato para qualquer fim, mesmo que comercial.

Atribuição — Você deve dar o crédito apropriado, prover um link para a licença e indicar se mudanças foram feitas. Você deve fazê-lo em qualquer circunstância razoável, mas de nenhuma maneira que sugira que o licenciante apoia você ou o seu uso.

SemDerivações — Se você remixar, transformar ou criar a partir do material, você não pode distribuir o material modificado.

A Agência de Notícias é um projeto de extensão do curso de Jornalismo com atuação diária de estudantes no desenvolvimento de textos, fotografias, áudio e vídeos com a supervisão de professores dos cursos de comunicação

plugins premium WordPress