“Ainda estou aqui”: conheça a história da mulher que construiu a história do último Cine Drive-in do Brasil

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1975, Piloto

Marta Fagundes, hoje com 64 anos, é o nome de quem roteirizou e se tornou protagonista da história de sobrevivência do último Cine Drive-in do Brasil, que fica no Distrito Federal (DF).

Tudo começa em 1973, quando o cinema foi criado e inicialmente administrado por Paulo Renato Figueiredo, filho do general  João Batista Figueiredo.

Em 1975, Paulo Renato, com o sentimento de que não daria conta sozinho, recorreu ao pai, que era general da cavalaria no Rio Grande do Sul, para que escolhesse alguém do quartel para vir para Brasília ajudar na administração do cinema. O selecionado foi o pai de Marta, que servia o mesmo quartel.

E assim toda a família teve que vir, inclusive Marta, aos 15 anos de idade.

De início, foi contra a vontade dela. Obrigada pela família, ela teve que transferir a matrícula do vestibular que havia passado na Universidade do Rio Grande do Sul (UFRGS) para a Universidade de Brasília (UnB).

A família toda se envolveu na administração do cinema e  assim Marta começou a dividir o tempo entre faculdade e o Cine Drive-in.

Também contra a vontade, ela foi nomeada pelos pais gerente do cinema aos 18 anos.

“Eu falei assim: não, eu não sei nada. E eles me disseram: não, mas você tem jeito, você aprende. E aí eu comecei como gerente, ficava no escritório e também indo pra UnB”.

Mas, a missão para a qual antes ela foi obrigada, agora ela já tinha criado amor. O projeto se tornou parte da vida dela.

Os pais cogitaram fechar o cinema por causa dos altos custos sem retorno. Naquela época, segundo Marta, os DVDs e videocassetes começaram a ficar populares e os cinemas, menos frequentados.

“No caso do Drive-in ainda era mais difícil, porque só podia ter sessões à noite e as películas, que era como passávamos o filme da época, eram muito difíceis de se conseguir. A película é um rolo de filme que você emenda uma na outra. Então eu só podia exibir quando algum cinema não ia exibir mais e demorava a chegar os filmes aqui. A gente perdia muito em faturamento”.

Mas, mesmo com a luta diária, ela não queria que o lugar fechasse. Já tinha criado afeto e, mais ainda, um propósito.

”Eu fui segurando e sempre lutando pelo cinema. Mais para manter o Cine Drive-in vivo do que para ganhar dinheiro”.

Marta se formou em nutrição e começou conciliando a direção do cinema com a profissão de nutricionista. Em 1988, o cinema passou a ser completamente dela e ela abriu mão da carreira de nutricionista e se dedicou totalmente ao cinema.

2015, O projetor

Durante mais de 20 anos, Marta continuou exibindo filmes, embora já não fossem tão inéditos, sempre que conseguia as películas. Isso resultava em dias de boa e fraca movimentação. “Eu fui remando, porque as películas eram muito difíceis de conseguir”.

Em 2014, não havia mais películas, pois todos os cinemas estavam usando projetores digitais. “Para mim, a compra de um projetor digital era impossível porque o custo era muito alto e o faturamento do cinema era baixo. Aquele momento foi um divisor de águas: ou eu comprava o projetor ou fechava o cinema”.

Nessa época surgiu o que parecia ser a “luz no fim do túnel” para que o Cine Drive-in pudesse se modernizar e acompanhar a tecnologia dos cinemas que tinham grandes lucros. Uma lei sancionada pela então presidente Dilma Rousseff, a Lei Brasil de Todas as Telas, permitia que os pequenos exibidores comprassem projetores com isenção de impostos. Mesmo com o benefício, o valor do equipamento ainda era alto.

“Entrei nesse projeto, onde eu pagaria por financiamento. Fiz também uma vaquinha eletrônica para pagar o projetor e conseguimos pagar inicialmente uns 40 mil com o valor arrecadado. Ter o projetor seria muito importante”.

Além da isenção de imposto e da vaquinha, Marta ganhou prêmios de incentivo à cultura e ao cinema, o que a ajudou a pagar mais uma parte do valor do projetor. 

Em 2015, o novo equipamento chegou a Brasília, e no dia 15 de agosto foi a primeira exibição, com o filme O último Cine Drive-in, do diretor Iberê Carvalho.

“Não havia escolha melhor para o primeiro grande movimento da história do cinema.” Naquele dia o coração e os olhos de Marta se encheram de alegria.

“Tinham mais de 400 carros e 300 pessoas que largaram seus veículos do lado de fora do cinema. Elas entram a pé pra assistir o filme porque não cabia mais carro de tão cheio”.

A partir dali, os lançamentos dos filmes também chegaram em primeira mão e o Drive-in começou a ter movimento como os cinemas comuns. Mais carros e clientes começaram a vir com frequência. E Marta se alegrava porque, com o faturamento aumentando, ela sabia que conseguiria pagar mais uma parte que faltava para pagar o projetor.

Abaixo-assinado

Neste mesmo ano, com muito esforço para mostrar ao GDF a importância do Cine Drive-in, mais de 20 mil assinaturas em um abaixo assinado fizeram nascer um Projeto de Lei que reconhecia o Cine Drive-in como patrimônio histórico e cultural do DF. O projeto venceu na Câmara Legislativa e está vivo até hoje.

2020, A pandemia

Quando o cinema se tornou patrimônio histórico e cultural do DF, nem Marta nem o próprio governo poderiam imaginar que, por um tempo, aquele seria o único espaço de entretenimento onde os brasilienses poderiam se divertir.

Com o comércio fechado e ninguém saindo de casa por causa da pandemia da Covid-19, Marta se viu mais uma vez sem saída: como faria para manter o cinema sem faturamento. “Quando veio a pandemia eu pensei: agora acabou de vez. Nós ficamos 30 dias completamente fechados. Aí eu já estava agoniada e não sabia o que fazer”. Foi então que surgiu uma nova ideia.

Marta viu uma reportagem sobre um cine drive-in nos Estados Unidos que estava funcionando durante os dias de confinamento e se inspirou.

“Era uma ideia incrível porque as pessoas ficavam dentro dos carros e não tinha risco”.

Foi assim que Marta mandou o link da reportagem e um pedido para deputados distritais e para o Governador Ibaneis Rocha. Após análises e criação de regras de segurança, o Cine Drive-in se tornou o único a poder abrir as portas em um momento em que o mundo estava carente de contato humano e entretenimento.

Foi o segundo grande movimento do cinema. “Nós reduzimos a nossa capacidade para 200 veículos (da capacidade de 340 carros), mas ainda assim ficou muito cheio. Tinha briga na entrada, e as pessoas ficavam 2 horas na entrada do cinema para assistir um filme, mesmo sendo repetido, porque as produções de filmes também pararam por causa da doença”.

Apesar do momento triste que o mundo vivia, o período da pandemia foi o de maior movimento que o Cine drive-in já teve. E foi nesse tempo que Marta conseguiu, enfim, terminar de pagar o projetor.

Desde sempre, um cinema como nenhum outro

Além dos anos de dificuldades, ao longo da história do cinema houve momentos que quase o derrubaram, se não fosse pela força de vontade e amor de Marta.

“Teve uma vez que o governador Ibaneis Rocha quis usar o espaço do cinema para fazer Corrida de Fórmula Indy e outra vez que dois empresários queriam o espaço para fazer grandes eventos. Já chegou a ter gente querendo transformar o espaço em estacionamento”.

Mas apesar das ameaças e dificuldades, Marta nunca abandonou o cinema. Para ela, a luta em mantê-lo é diária.

Ela cultiva não só a cultura local, mas também os laços afetivos com os clientes e funcionários, que fazem tudo valer a pena. Afinal, não é à toa que o único cinema neste estilo esteja na capital do país. A força de vontade de Marta, junto ao carinho que dedica, mantém a essência do lugar viva.

“No Cine Drive-In, a equipe é pequena, mas muito unida. Nos outros cinemas, a gente mal tem contato com os funcionários, mas aqui todo mundo é amigo, quase uma família. Temos clientes que são fixos aqui também. Já os conhecemos e eles nos conhecem”.

Outro diferencial é a qualidade que sempre fez questão de oferecer: “O nosso drive-in tem uma estrutura que nenhum outro cinema tem, nem em termos de tela nem de som”.

Essa estrutura é uma das razões pela qual o cinema continua a atrair tantas pessoas. Mesmo com a concorrência de plataformas de streaming como a Netflix, o público ainda prefere o drive-in. Para Marta, o charme do Cine Drive-In está no ambiente.

“É um lugar único, com a tela grande, o céu, a sonoridade. Isso não tem como reproduzir em casa”.

A única vantagem que ela vê nas salas de cinema convencionais é que elas têm condições de acompanhar as novas tecnologias, como aconteceu na época dos projetores mais antigos e agora com os projetores a laser que as salas de cinema têm.

Novo projetor

Há 11 anos, Marta conseguiu o projetor e quando finalmente terminou de pagá-lo há 5 anos, uma nova tecnologia surgiu. Agora os cinemas já pedem um novo sistema de projetor a laser, que melhora as imagens.

O novo investimento ainda é um sonho para Marta, porque custa mais de R$ 500 mil e o drive-in não tem faturamento suficiente para arcar com o valor.

“É um valor muito alto, mas, quem sabe, a gente consiga”.

Hoje Marta se lembra de como tudo começou e reflete todos os desafios e conquistas que enfrentou. “Eu vejo algumas fotos antigas, do início do cinema, e é muito legal ver como tudo começou. Isso faz parte da nossa história”.

Manter um cine drive-in em uma capital onde a cultura, segundo ela, não é valorizada como deveria, não é fácil. Mantê-lo em tempos em que a tecnologia avança a cada dia é mais difícil ainda. Afinal, Marta foi a única brasileira que conseguiu e consegue fazer isso até hoje. E graças a ela, quem mora ou visita Brasília é presenteado todas as noites com a telona do último Cine Drive-in do Brasil. 

Leia mais sobre o Cine Drive In

Por Milena Dias e Ayumi Watanabe

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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