40 anos sem Cora Coralina: escritora deixou inspirações e reflexões sobre questões de gênero

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Uma mulher simples, nascida no coração de Goiás, doceira por ofício e poeta por vocação — assim era Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, mais conhecida como Cora Coralina. Ela morreu, aos 93 anos de idade, em 10 de abril de 1985. Quarenta anos anos depois de sua morte, a obra dela inspira discussões sobre questões de gênero

Considerada uma das maiores escritoras brasileiras, escrevia sobre o cotidiano do interior brasileiro, e eternizava em seus poemas os becos e ruas históricas de sua cidade natal em versos que atravessaram gerações.


A diretora do Museu Casa de Cora Coralina, Marlene Velasco, expressa com admiração a trajetória inspiradora da escritora: “Ela foi uma mulher à frente do seu tempo. Publicou seu primeiro livro aos 76 anos, o que demonstra que nunca desistiu de seu sonho. Graças a Cora, a literatura goiana conquistou reconhecimento nacional.”

Para Marlene, Cora é mais do que uma referência literária — ela é símbolo de empoderamento e identidade.

“Eu a considero a musa da literatura goiana. Cora soube se impor — como mulher, doceira e escritora. Sua obra ultrapassou os limites da Serra Dourada, que, para ela, nunca foram barreiras.”

Marlene Velasco no lugar que sempre sentava para conversar com Cora. – Foto: Arquivo Pessoal

Becos de Goiás

A estreia da poeta goiana aconteceu em 1965, com a obra Os Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais.

Cora era conhecida por escrever sobre temas que exaltam a força do ser humano e o poder das palavras, sempre com uma abordagem distinta das fórmulas de autoajuda comumente encontradas na literatura.

“É fascinante pensar que, mesmo após mais de quatro décadas, Cora Coralina ainda inspira novas gerações. Sua literatura é atemporal. Os temas que ela aborda são exemplos de vida. Não se trata de uma literatura de autoajuda, de maneira alguma, mas sim de uma escrita que revela a força do ser humano e o poder da palavra”, afirma Marlene.

Sobre a influência da escrita de Cora nos dias de hoje, Marlene explica que os textos dela continuam sendo relevantes porque não falam sobre o amor romântico ou a idealização de sentimentos.

Cora aborda a dureza da vida e retrata a realidade de forma crua e verdadeira.

Vida real

“Ela acreditava no poder transformador da palavra. Por isso, seus escritos ainda tocam profundamente, especialmente os mais jovens. Cora não romantiza os sentimentos, mas fala da vida real, da solidariedade, da luta dos excluídos, do abandono e até da prostituição. Essa postura revela seu profundo sentimento de igualdade e empatia”, conclui Marlene.

Quando perguntei à diretora do Museu se Cora Coralina era considerada um símbolo de Goiás, a resposta foi enfática:

“Cora é um símbolo, uma referência. Quando você diz ‘sou de Goiás’, muitas vezes a resposta que ouve é: ‘Ah, a terra da Cora Coralina!’. Isso mostra o quanto ela representa nossa identidade.”

“Minha vida,
meus sentidos,
minha estética, todas as vibrações
de minha sensibilidade de mulher,
têm, aqui, suas raízes.
Eu sou a menina feia da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.”

(Coralina, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais)

Museu Casa de Cora Coralina

Após a morte de Cora, parentes e amigos criaram a Associação Casa de Cora Coralina, em 1985, mantenedora do Museu Casa de Cora Coralina, que foi inaugurado no dia 20 de agosto de 1989, data comemorativa dos 100 anos de nascimento da poetisa.

O museu funciona na antiga casa da poeta na cidade de Goiás, ou Goiás Velho, a 130 quilômetros de Goiânia. O acervo conta com imagens e discursos preservados para lembrar e promover o conhecimento sobre a poetisa.


“Hoje, 38 anos depois, o museu segue vivo, visitado por pessoas do Brasil e do exterior. Ele cumpre um papel essencial na preservação da literatura goiana e da literatura feita por mulheres”, disse Marlene

Ao ser questionada sobre os próximos passos do museu para aprimorar a experiência dos visitantes e promover ainda mais a obra de Cora, Marlene compartilhou os planos de revitalização do quintal — o espaço onde a poetisa passou grande parte de sua infância e adolescência.

“Esse espaço será reinaugurado em dezembro. Conquistamos esse projeto por meio do edital Paulo Gustavo, do Governo de Goiás. Estamos pesquisando as plantas originais da casa, como laranja, limão, cidra e figo — frutas que Cora colhia e usava para fazer os primeiros doces, sua forma de sobrevivência quando retornou a Goiás, em 1956”, revelou Marlene.

Ela destaca a importância desse local tanto para a história da escritora quanto para o resgate de suas memórias e da tradição local.

A inclusão do quintal no roteiro de visitação proporcionará aos visitantes uma imersão ainda maior no universo de Cora Coralina.

“Queremos que esse espaço também faça parte do percurso, não apenas a casa, mas o quintal” e ainda reforça:

“Será um presente para a cidade, para o museu e para os turistas que desejam conhecer mais profundamente a vida e a obra da nossa poetisa.” 

Importância

Marlene também destacou a importância da representatividade de ver Cora entre os grandes nomes da literatura brasileira e acredita que, se estivesse viva, ela teria sido a segunda mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras.

Tivemos outros grandes nomes, como Bernardo Élis, primeiro goiano na Academia Brasileira de Letras. Mas se Cora estivesse viva hoje, acredito que teria sido a segunda mulher a ingressar na ABL. Sua obra ultrapassa fronteiras — é estudada em universidades de todo o Brasil, em teses, dissertações, TCCs… Ela é uma das autoras mais lidas de Goiás, sem dúvida”

Doce legado 

Hoje, a doceira Eliana Aparecida Martins, de 59 anos, moradora de Goiás Velho segue os passos de Cora, e encontrou um novo modo de contar histórias, preservar memórias e afirmar suas raízes. Sua conexão com Cora começa por meio de sua mãe, que fazia doces para a escritora.

Eu conheci Cora através da minha mãe, que fazia doces para ela. Cora sempre foi uma figura importante em nossa vida. Nós morávamos em uma chácara, a cerca de 5 quilômetros de Goiás, e foi lá que nasci. Minha mãe também era doceira, e sempre levava seus doces para Cora. Lembro-me bem de quando, com apenas 4 ou 5 anos, eu segurava a beirada do vestido da minha mãe enquanto atravessamos a cidade inteira até a casa da ponte, onde ela entregava os doces.”

A doceira relembra com carinho que, apesar da rotina simples, sua infância foi repleta de significado. A paixão pelos doces veio de sua família.

“Eu cresci ouvindo as histórias de Cora, e ao longo do tempo, passei a conhecer não apenas a doceira, mas também a poetisa, a mulher que começou a escrever seus poemas e a deixar sua marca na literatura. Minha mãe, assim como Cora, também foi doceira em Goiás durante 60 anos e se tornou muito conhecida por seu trabalho. Foi através dessa convivência familiar que tive meu primeiro contato com Cora, e com o tempo, fui aprendendo a admirar ainda mais sua trajetória.”

Sobre fazer doces, Eliana compartilha que sempre foi uma atividade que lhe trouxe imensa satisfação. Com o tempo, ela percebeu que, assim como a poesia, fazer doces é uma verdadeira arte.

“Fazer doce é algo que me traz uma enorme satisfação. Com o tempo, percebi que essa profissão é maravilhosa, tem tudo a ver com poesia. É algo lindo, encantador, embora seja trabalhoso. Como já mencionei, até hoje, depois de mais de 30 anos, continuo fazendo os doces no fogão a lenha”

Além do ofício

Para ela, o doce vai além de um simples ofício; é uma tradição que passa de geração em geração, uma forma de contar histórias e perpetuar memórias. O doce também carrega consigo a lembrança da mãe, que faleceu em 2016.

“Eu realmente sinto que estou preservando algo muito especial. Durante um tempo, fiquei preocupada, pois era minha mãe, eu e agora minha filha. Tem muita gente que faz doce só pelo dinheiro, mas o que a gente faz é com amor, carinho e dedicação. Isso é o que faz toda a diferença e garante a continuidade desse trabalho. Perdi minha mãe em 2016, vítima de câncer de mama, mas ela está sempre presente. Ouço a voz dela o tempo todo, me lembrando de cada detalhe sobre os doces — como fervê-los, como pegar a lenha e acender o fogão.”

Perguntei à Eliana o que Cora representa para ela e para sua cidade. “Graças a Cora, nós, artesãos do doce e outros profissionais, conseguimos sobreviver. Através dela, Goiás foi reconhecido, não apenas no Brasil, mas mundialmente. Ela deixou uma marca que perdura até hoje”.

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Por Mayara Mendes

Imagens: Arquivo pessoal
Sob supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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