Perfil: ex-moradora de rua deixa para trás violências e cria ONG na Ceilândia

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No início de uma rua esburacada, em Ceilândia (DF), uma faixa avisa: “Feira beneficente: aberto todos os dias”.

A casa, comprada pelo casal Nica e Daniel Sena, mostra as marcas do tempo. O lugar, que já foi lar de mais de 500 pessoas, hoje abriga apenas um ex-morador de rua.  O homem é soropositivo para HIV e tem câncer de próstata. Nica relembra com compaixão todas as pessoas que já passaram por lá. “Hoje, a gente está com dificuldades para voltar a funcionar como antes. A casa está muito velha e com mofo. Como não temos dinheiro, vamos lidando como dá”, explica.

Foto: Maria Beatriz Giusti

A luta de Nica do presente é apenas um dos capítulos de sua história, em que é marcada como vítima de violência e abandono. Ao invés de se revoltar, resolveu transformar a dor em solidariedade.

O medo, o frio, a solidão e a fome eram rotina na vida de Nica desde os 9 anos de idade. Quando dizia para conhecidos que sairia das ruas e ajudaria pessoas na mesma situação que ela, todos riam. Não acreditavam que aquela vida tinha uma saída e, muitas vezes, nem ela própria acreditava. Hoje, 33 anos depois, Francisca Tenório de Sousa Sena, de 56, conseguiu o que queria: transformou a casa em Ceilândia (DF) em um lugar de acolhimento para todos os tipos de pessoas em vulnerabilidade.

Segundo o que ouviu, Nica foi deixada em um orfanato na cidade de Itumbiara (GO), aos seis meses de idade. O homem que a deixou prometeu que voltaria. Dias, meses e anos se passaram e ele nunca retornou. As únicas informações que Nica sabe sobre si é que nasceu em alguma cidade de Pernambuco em 23 de dezembro de 1968.

Aos oito anos de idade, foi “adotada”. Na verdade, a família não buscava um filho, mas uma pessoa para ser “empregada doméstica”. Nica foi vítima de exploração do trabalho infantil. Como era muito pequena e magra, não dava conta do serviço. Foi expulsa de casa logo no primeiro ano. A partir daí, a vida de Nica nunca mais foi a mesma.

Com 12 anos, vivendo na rua havia quase três, Nica e outras meninas na mesma situação decidiram fugir para Brasília. Em 1980, a capital não era uma metrópole como hoje e as meninas conseguiram ficar escondidas dentro de matagais para se protegerem. Com o tempo, cada uma das meninas que vieram com Nica foi tomando o próprio caminho. Nica conheceu a solidão.

Solidão

“A maior solidão é saber que você não é prioridade para ninguém. Saber que não tem ninguém para você no mundo”. Em Brasília, Nica, ainda entrando na adolescência, conheceu os abusos físicos e sexuais, aprendeu a se virar sem ninguém e desejou, todos os dias, poder sair daquela situação e fundar uma casa de apoio.

Entre os momentos de tristeza, fome e solidão, Nica encontrou um refúgio: a leitura. Tinha cursado até a segunda série no orfanato em que morava e tomou gosto pela leitura desde nova. “Quando eu estava no orfanato, eu me lembro de uma época que vinha um pessoal ler para as crianças. A melhor parte do mês era quando eles iam lá contar história para a gente. Foi aí que eu comecei a me interessar pela leitura”, relembra.

Nica remexia nos lixos, procurava nas ruas em busca de livros e revistas para enganar a solidão. Livros como “Os miseráveis” (Victor Hugo), “Capitães de areia” (Jorge Amado) e “Negras raízes” (Alex Haley) marcaram sua  adolescência. “Isso me deu uma certa educação que eu não teria e, principalmente, me mostrou um mundo diferente daquilo que eu vivia. Era uma forma de fuga. Eu me viciei na literatura para escapar daquilo”. “Eu acho que a leitura era como uma droga para mim. Enquanto eu lia, eu esquecia da fome e da dor”.

Mesmo com a “droga” da literatura, a frustração de não ter uma família tomava conta. Nica recorda que, no seu aniversário de 15 anos, depois de andar muito pela cidade, decidiu sentar-se em um banco em uma praça. Era 23 de dezembro e as casas estavam iluminadas para o Natal. As pessoas corriam para fazer as compras de fim de ano e Nica estava lá, sentada em um banco de praça chorando sem ser notada, como “um fantasma”.

“Eu ficava olhando para aquelas casas todas enfeitadinhas. E eu lembro que eu estava sentada nessa praça chorando e eu não sabia o que fazer. Eu queria fazer alguma coisa e eu não sabia. Nesse dia, foi quando eu mais tive revolta da minha situação, por não entender o porquê que eu estava ali e porquê que tinha que ser daquele jeito. Por que todo mundo tinha família e eu não?”

Nica relembra que durante todo o período em que viveu nas ruas, o mais difícil era lidar com a invisibilidade diante das pessoas. “Eu me lembro de uma vez que eu fiquei doente e eu me tremia de frio. Sentei no meu fio e encostei num poste para deitar. Eu lembro que o pessoal passava e ninguém parava para saber o que houve. As pessoas não queriam me ver”, diz.

Longe das ruas

Com 23 anos conheceu uma moça que mudaria sua vida para sempre. Amiga de um ex-namorado de Nica, a mulher se solidarizou com a situação e a ajudou a alugar um barraco em Sobradinho, Região Administrativa do DF. As doações da moça e a ajuda financeira fizeram com que Nica tivesse forças para procurar bicos de manicure, faxineira e auxiliar.

Pela primeira vez em 14 anos, Nica teria um lugar apenas dela. Nessa época, ela já tinha um filho de nove anos, fruto de um abuso que sofreu nas ruas.

Depois de anos sem a guarda da criança, conseguiu tê-lo de volta dois anos antes. “Meu filho ficou com o conselho (tutelar) durante muito tempo. Não sei como me acharam, mas decidiram me entregar a criança. Nunca vieram ver como estava minha situação, se eu tinha como cuidar de uma criança. Mas estava feliz de encontrar meu filho”, diz.

Quando se mudou para Sobradinho, Nica conheceu a igreja. Naquela época, as coisas ainda eram difíceis, mas a promessa de que iria ajudar os outros quando saísse das ruas permaneceu. Foi nos eventos da igreja que conheceu seu marido, Daniel Sena, e companheiro de solidariedade.

Juntos, andavam pelas ruas da cidade entregando sopas e marmitas para quem precisava. Sentindo a necessidade de fazer mais, decidiram então alugar uma casa para acolher pessoas em situação de rua. O sonho de Nica estava finalmente se tornando realidade.

No início dos anos 2000, o casal fundou o Instituto Exército de Cristo para quem precisava de abrigo, comida e respeito. O foco principal de Nica era trazer pessoas de rua, promover cursos para que elas pudessem se profissionalizar e ter uma vida independente. No entanto, com o tempo passando, cada vez mais pessoas com HIV procuravam o instituto, muitos por terem sido rejeitados pelas famílias, outros por não terem para onde ir.

“Em dois meses que a gente abriu a casa, já tinham 23 pessoas com HIV. Foi quando a dona da casa descobriu que estávamos acolhendo essas pessoas e obrigou a gente a sair de lá. Foi preconceito mesmo. Então decidimos comprar essa casa aqui em Ceilândia”, conta.

Casa de solidariedade

Nos anos de ouro do instituto, no início dos anos 2000, a casa se tornou um ponto de referência para que hospitais e delegacias enviassem pessoas necessitadas. O dinheiro do governo e de ongs beneficentes foi chegando, o que ajudava nas despesas e nos cuidados.

Nica lembra que, na época, amigos chegaram a recriminá-la por misturar muitas pessoas diferentes em um só lugar. “Me diziam que era para eu ser uma gestora, sem me envolver nos problemas deles. Mas não tem como cuidar de um ser humano sem se envolver, não existe isso. Eu tenho que me importar, porque senão vai ser só um depósito de gente. Eu recebo as pessoas, jogo aí e dou um prato de comida. Não é essa a intenção”, diz.

Os que ficaram

Dentre as mais de 500 pessoas que passaram pelo instituto, algumas marcaram mais a vida da família de Nica que outras. Em um dos acolhimentos cotidianos, Nica encontrou uma jovem usuária de drogas, com passagem pela polícia e com um filho com deficiência mental para cuidar.

Chamado de Moisés, a criança de apenas 5 anos, vivia entre orfanatos e com a mãe. Quando Nica acolheu a moça para trabalhar na reabilitação, a criança veio junto. “Ela ia e voltava toda hora, não queria saber da criança. Uma vez sumiu de vez e nos deixou com ele, o que foi uma benção. Ele virou meu filho”, conta.

Muitas das pessoas que passaram por lá tinham filhos, que também eram acolhidos por Nica. Entre as idas e vindas dos pais, sete crianças ficaram no Instituto e se tornaram filhos de Nica e Daniel. Mãe de dez crianças, três biológicos e sete adotados, Nica tentou dar aos seus filhos todo o amor de mãe que lhe faltou.

“Em novembro de 1999, eu me casei. Antes eu já tinha adotados, mas depois começou a vir menino, não me lembro a ordem. A gente deve ter acolhido umas 25 crianças, mas só sete ficaram. Eu sei que essas que ficaram eram para ser nossos filhos”, lembra Nica.

Atualmente, apenas sete dos 10 filhos de Nica estão vivos. Há 10 anos, Moisés, que na época já era um adolescente de 17 anos, morreu de forma trágica, o que desestabilizou os irmãos, os pais e todos que o conheciam.

“Quando o Moisés morreu foi como se tivesse caído uma bomba. Foi tudo muito forte para os meus filhos. Uma das minhas filhas começou a beber muito. Era uma revolta muito grande deles. Para mim, como mãe, foi muito difícil, mas para eles foi enlouquecedor”, conta.

A mãe biológica de Moisés usou droga e bebeu durante a gravidez inteira. Nica conta que quando adotou a criança tentou procurá-la para saber o porquê Moisés tinha tantos problemas de cognição. A resposta que recebeu foi assustadora. “Ela não queria ele de jeito nenhum, já tinha tido umas dez gestações antes. Tentou abortar ele de todas as formas. Quando ele tinha uns 2 anos, foi jogado debaixo de um caminhão. Todos os meus filhos têm essa bagagem de rejeição. Saber que você tem uma família biológica, mas que ela não te quis não é fácil”, diz.

Com apenas 17 anos, Moisés foi assassinado. 

“Quando eu recebi a ligação de que tacaram fogo no Moisés, eu estava no hospital com a minha filha que estava tratando de um câncer no fêmur. Na hora, eu dei um grito tão alto que todo mundo do hospital me olhou. Foi uma sensação de irrealidade. Eu acho que naquele dia eu conheci o que era ódio”, diz.

Até hoje não se sabe quem foi o responsável pelo crime. Nica já tentou durante muitos anos procurar quem matou seu filho. Hoje, ela entende que não faz bem nenhum gastar energia procurando vingança. “Eu não vejo mérito nenhum em mim. Eu estou aqui porque Deus tem me mantido aqui, por mim eu já tinha surtado há muito tempo. Não foram poucas vezes que eu quis largar tudo e falar: ‘Olha, eu não aguento mais, não quero mais essa vida para mim’. Mas mesmo assim eu permaneço, permaneço todo dia sendo renovada porque eu sei que tem gente que depende de mim”, acredita Nica.

Por Maria Beatriz Giusti

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