Crônica: “era só um golpe”

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Em 2011, quando eu tinha apenas oito anos de idade, em um certo dia da semana ao qual eu não me lembro, pois era criança demais pra saber os dias da semana. Foram dois dias de susto e desespero. No primeiro, minha mãe chegou em casa com a cara pálida. Ela havia sido assaltada no caminho de volta.

A lembrança é do desespero da minha avó e da minha tia. As mãos da minha mãe estavam tremendo, como se a bolsa roubada tivesse levado junto um pedaço da paz. Ainda criança, eu achava que minha mãe não sentia medo.

Achava que mãe era tipo uma super-heroína, sempre forte e invencível. Mas ali, com os olhos cheios de pânico e a voz engolindo o choro, percebi que até as heroínas tremem de vez em quando.

O assalto aconteceu de forma bem clichê, uma história corriqueira para cidades grandes. Em uma rua escura, numa das quadras mais perigosas de Santa Maria, no Distrito Federal, perto da meia-noite, a mãe, que só queria chegar em casa depois de um dia cheio entre trabalho (fazia cartão em supermercado) e faculdade (direito), foi abordada no meio de uma praça vazia por um homem encapuzado de bicicleta.

O bandido mandou:
— Passa o celular, vagabunda, contou minha mãe

Como pode uma mulher que cria a sua filha sem pai, faz faculdade e trabalha, ser chamada desse nome? No susto, ela entregou tudo: celular, bolsa, até os documentos preciosos. Quem tem carteira assinada e trabalha no Distrito Federal sabe o drama que é perder um RG. No mínimo, ter que enfrentar a fila do Na Hora no meio da semana.

Eu e a minha família achamos que aquele seria o susto da semana. Mas o universo, caprichoso como só, resolveu testar o coração da minha família no dia seguinte.

Minha mãe insistiu que iria trabalhar normalmente. No fim da manhã, minha avó, uma empregada doméstica e analfabeta, resolveu ligar para o trabalho da filha para saber se estava tudo bem, o chefe informou que minha mãe nem tinha aparecido ainda.

Ainda impactada com o que aconteceu na noite anterior, ao ouvir e a filha não tinha chegado, o coração bateu mais forte e a preocupação se instalou. Minha avó, naquele momento, estava limpando a casa de um ex-ministro, como fazia havia anos, com a calma de quem já enfrentou muita coisa.

Minutos depois, o telefone da casa onde minha avó trabalhava tocou e tocou, estranho. Ali, o telefone era quase um enfeite. Nem cobrança ou telemarketing vinha.

E aqui entra um detalhe que hoje virou piada na família, mas quase causou um infarto coletivo: os bandidos conseguiram ligar para o trabalho da minha avó porque, no celular roubado, minha mãe havia salvo o número como “trabalho mãe”. Assim mesmo.

Voltando à ligação. Do outro lado, uma voz desesperada chorava:

— Mãe, me pegaram! Me sequestraram! Eles querem cinco mil reais!

Cinco mil reais. Como se minha avó, uma empregada doméstica, tivesse cinco mil guardados em algum lugar entre o armário da cozinha e o colchão. A voz era muito parecida com a da minha mãe. Às vezes o desespero tem um jeito estranho de disfarçar a lógica.

Minha avó, que já estava em prantos, fez o que qualquer mãe faria:

Você está com a Adriana ou com a Fernanda?!

Ou seja, ela entregou o nome das duas filhas como quem entrega senha de banco. Se o golpe era só tentativa, agora tinha material completo.

A voz chorosa do outro lado respondeu que era a Adriana. Depois da confirmação, a pressão arterial dela despencou. O resultado foi um desmaio aos pés do telefone.  

Foi aí que outra funcionária, a cozinheira da casa, uma mulher mais dura, entendeu que era um trote. Em um ato quase louco, pegou o telefone, colocou no ouvido e disse, sem um pingo de paciência:

— Pode matar essa vagabunda.

E desligou.

Foi um silêncio absoluto.

Mais tarde, tudo se esclareceu: era de fato um golpe. Minha mãe estava sã e salva, ela apenas tinha decidido ir tirar os novos documentos naquele dia e não pensou em avisar ninguém. E minha avó, depois de se recuperar, precisou voltar a limpar o chão porque a vida de quem precisa, tem que continuar. E continuou muito desconfiada das ligações que recebe no celular.

O golpista nunca mais retornou a ligação. Talvez ele esteja em algum grupo de WhatsApp até hoje contando a história da mulher que o mandou matar a refém.

Por Nathália Maciel

Com supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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