A história de Beatriz Marques Cardoso começou antes mesmo de ela respirar o primeiro sopro de vida. Vinte anos atrás, ainda no ventre da mãe, Beatriz já lutava para existir.
Numa consulta que deveria trazer tranquilidade, veio o golpe: era uma gravidez não embrionária. Sem o desenvolvimento do embrião, não havia esperança. A orientação era de ir para casa e esperar pelo aborto.
Mas o inesperado aconteceu. Nove meses depois, contrariando diagnósticos e probabilidades, Beatriz nasceu. Nos primeiros anos, sua segunda casa foi o hospital.
“Todo ano, eu tinha pelo menos duas ou três infecções, tinha que tomar medicação na veia e injeção”, lembra Beatriz.
Aos quatro anos, veio o diagnóstico de refluxo. Aos dez, labirintite. Entre um laudo e outro, nenhuma conexão aparente.
Já na adolescência, ela chegou a tomar cerca de 30 medicamentos por dia, um para cada sintoma, ela se sentiu como uma cobaia de testes.
Infância
Ainda como criança, com 10 anos, a depressão se juntou às dificuldades que a jovem enfrenta. Segundo ela, na época, por volta de 2015, não era comum se falar sobre depressão, muito menos em crianças.
“Eu não tinha ideia do que era depressão, meus pais também não tinham muito conhecimento. Então foi uma depressão que eu vivi mais sozinha”.
Sem perspectivas de um futuro melhor, Beatriz tentou tirar sua vida por meio de uma overdose.
“Eu tomei todos os remédios que eu tinha de labirintite em casa. Foi quando bateu a ficha do que eu estava fazendo. Eu orei, e Deus não permitiu que eu sentisse nada”.
Um ano antes da depressão, a garota descobriu um chamado missionário – ela sentiu em seu coração que levaria o evangelho de Deus para outras pessoas em diferentes partes do mundo – o que lhe deu forças para continuar e sonhar com um futuro melhor.
Nessa jornada, Beatriz buscava por uma profissão que fosse útil na missão. Mas estava traumatizada demais com a medicina para considerá-lá, então resolveu ser arquiteta, “na minha cabeça eu ia poder fazer projetos sociais em comunidades carentes”.
O diagnóstico
No começo da adolescência, com 12 e 13 anos, Beatriz começou a ter diferentes infecções.
“Eu comecei a ter um quadro muito esquisito de febre e muita dor no joelho. Só que eu ia no médico e o meu joelho não estava inchado, não estava vermelho. Os médicos não tinham o interesse nem de encostar, para fazer o exame”.
Pistas
Na terceira ida ao médico por causa do joelho, uma reumatologista de plantão finalmente pediu um exame.
O resultado, uma Osteomielite Crônica, levou a garota direto para a sala de cirurgia para uma raspagem, mais uma semana de espera teria resultado na amputação da perna.
Previsões
Mais uma vez as previsões médicas eram desoladoras, a operação no joelho deveria retirar um pedaço grande de seu osso, o que a deixaria manca.
Mas a realidade foi bem diferente, e a operação foi um sucesso, retirando apenas um centímetro do osso, não mudando sua estrutura e capacidade de andar.
Após os exames, a médica decidiu perguntar sobre a história de vida de Beatriz, e constatou que a menina poderia ter uma doença autoimune.
Diagnóstico
Em 2018, depois da internação para tratar do joelho e uma bateria de exames o seu diagnóstico foi finalmente fechado, Beatriz sofre de Esclerose Sistêmica (ES).
A doença chega silenciosa e anunciada por dedos arroxeados pelo frio — o fenômeno de Raynaud, como se o corpo desse o primeiro aviso de que algo não vai bem.
Depois, ela avança. E quando se instala, não escolhe um único lugar para atacar: pele, pulmões, rins, coração, vasos, músculos, intestinos. Tudo vira território de batalha.
Doença rara
É uma doença rara, crônica e autoimune. Segundo o Ministério da Saúde, as estatísticas revelam um alvo claro: a maioria esmagadora dos atingidos são mulheres — de três a oito vezes mais do que os homens. Ainda assim, os números não contam a história inteira.
Com uma prevalência de apenas 17,6 casos a cada 100 mil habitantes, é fácil entender por que tantos médicos hesitam diante dos sintomas fragmentados.
Não existe um teste único, infalível. O diagnóstico é um quebra-cabeça montado aos poucos, peça por peça, sintoma por sintoma.
Sinais
A pele, muitas vezes, é a primeira a mudar. Primeiro incha, depois endurece, até que se torna seca, fina e colada ao osso. Leucomelanodermia, calcinoses, telangiectasias e úlceras digitais desenham uma nova geografia no corpo.
Por dentro, os danos são ainda mais cruéis: o esôfago deixa de funcionar direito, os pulmões se enchem de fibroses, o coração falha, os rins entram em crise.
Ao longo de toda a infância e adolescência ela precisou conviver com a fragilidade de seus ossos.
“Quando eu tinha nove anos, eu trinquei o meu pé, batendo um pé no outro, e nessa época ainda não tinha diagnóstico”.
Agravamento
Em 2018, mesmo ano do diagnóstico de ES, ela desenvolveu Osteoporose, que devido a gravidade, poderia ser comparada com a Osteogênese Imperfeita, popularmente conhecida como “doença dos ossos de vidro”.
Ela chegou a fraturar todas as vértebras torácicas e da lombar, além de microfraturas na cervical e na bacia.
Depois do diagnóstico de Osteogênese, seu quadro clínico começou a piorar de forma rápida. “Minha pele, meu músculo virou pedra mesmo. Não tinha como apertar, era muito duro”. Nesse mesmo período, Beatriz também começou a desenvolver catarata.
A dúvida do amanhã
Em dezembro de 2018, ela foi admitida no Hospital da Criança de Brasília (HCB), onde sua família recebeu mais uma previsão desoladora dos médicos.
“A médica responsável chamou os meus pais em privado, e falou para eles não terem muita esperança com o tratamento porque ela achava que eu não ia sobreviver por muito mais tempo, ela só me aceitou no hospital para os meus últimos dias serem melhores”.
Com os dias contados, mais uma vez, o sentimento restante era de desespero. Aos 13 anos, a menina passou por diversas fraturas ósseas, o que começou a afetar seu organismo.
Por quase três meses, o estado de saúde dela já não permitia que se sentasse e ficasse de pé.
Quando estava internada no HCB, ganhou quase 20 quilos de inchaço por conta da quantidade de remédios que tomava.
Inquieta desde de muito nova, não conseguir andar foi um dos maiores desafios que Beatriz enfrentou. Durante esses três meses os médicos a atendiam em casa, para que ficasse mais confortável.
Mesmo assim, nesse período a jovem desenvolveu cálculo renal duas vezes, uma delas precisou de cirurgia, onde ela sofreu de embolia pulmonar e precisou ser internada na UTI.
“Cheguei a ter que ficar com sonda urinária porque a minha bexiga parou de funcionar. Eu fiquei bem grave. Foi literalmente aquele dia que você não tem muita certeza se vai estar no dia seguinte”.
O cenário desolador de seu quadro de saúde, abalou também sua saúde emocional. “Foram três meses que a minha oração, na verdade, era pra partir. Eu não tinha muita vontade de viver”.
Um novo amanhecer
Uma nova motivação chegou na vida de Beatriz quando ela passou a receber visitas de membros da igreja Assembleia de Deus (ADET) que frequenta com sua família em Taguatinga.
“Eu comecei a receber muitas visitas de pessoas que eu não conhecia, e elas me abraçavam e me beijavam, faziam orações por mim”.
O diagnóstico dos médicos era de que Beatriz nunca mais voltaria a andar, no máximo ficaria sentada, mas, depois de três meses deitada, ela deu o primeiro passo.
“Quando eu comecei querer lutar mesmo, eu senti em meu coração que eu precisava dar o primeiro passo, ninguém faria isso por mim. E nesse dia eu fiquei em pé”.
Após conseguir se levantar, ela seguiu o tratamento e a fisioterapia e conseguiu dar os primeiros passos com a ajuda de um andador.
A recuperação aconteceu na Rede Sarah, referência em reabilitações.
“O médico era gente boa, mas ele falava que eu não ia voltar a andar. E que se eu tivesse o milagre de voltar a andar, seria só de andador”.
A recuperação foi marcada por altos e baixos, durante esse período ela sofreu de fibrose pulmonar e precisou fazer quimioterapia durante um ano. O tratamento era mensal. Beatriz foi melhorando e logo depois começou o tratamento para Osteoporose no Hospital Universitário de Brasília (HUB).
Beatriz em sua casa, com auxílio do andador.
O chamado para a medicina
Foi através de uma experiência traumática com a medicina que Beatriz decidiu mudar o rumo de sua vocação profissional e tomar uma das decisões mais importantes da vida.
Em uma consulta com uma dermatologista, a médica não viu nenhum problema sério com a paciente e recomendou que Beatriz fosse visitar pessoas com doenças diferentes da dela.
Depois de testemunhar a falta de empatia de uma profissional, Beatriz decidiu que não permitiria que ninguém fosse tratado dessa maneira.
“Naquele momento eu comecei a pensar em medicina, não era tipo uma certeza como eu tenho hoje, mas eu já pensava, ‘nossa, se eu fosse médica, com certeza eu não ia tratar alguém assim’ ”.
Durante os tratamentos com fisioterapeutas, outra experiência negativa mostrou a Beatriz que esse era mesmo o caminho profissional que gostaria de seguir.
“Eu tive uma fisioterapeuta que um dia ela chegou lá em casa e eu estava comendo, e ela disse: é, aproveita mesmo pra comer, que eu acho que não vai demorar muito pra você ter que usar sonda”.
Como era um caso clínico atípico, quando ficava internada nos hospitais, a menina estava sempre sendo observada por estudantes de medicina, residentes e internos.
De certa forma, ela fazia parte das aulas o que a levou a se interessar mais pela profissão. “Eu vejo que fazendo medicina posso dar esse abraço que eu não consegui na época”.
Testemunha de um “milagre”
Em 2020, Beatriz já andava normalmente, sem andador, e no começo do mesmo ano voltou a se consultar no Sarah.
“Eu lembro como se fosse ontem, o dia que eu cheguei andando lá, em uma consulta com o médico disse que eu não podia mais voltar a andar. Ele chorou horrores. Ele saiu correndo pelo corredor e chamando os médicos das outras salas para irem me ver. Foi muito bonito”.
Estudos na pandemia
Durante todo o ano de 2019, Beatriz estudou de casa devido a suas limitações de saúde.
Viver com pouco contato social é uma experiência desafiadora para qualquer pessoa, mas no caso da jovem de 20 anos, viver um ano a mais em isolamento, além da Pandemia de Covid-19, foi um gatilho para ansiedade.
“Eu não tinha muita vida social, então em 2020, como eu já estava andando, eu pensei, ‘ai, que legal, vou voltar a ter vida’. E aí, teve a pandemia e eu tive que voltar pra dentro de casa. Isso me gerou muitos problemas de ansiedade. Eu desenvolvi toque e transtorno de ansiedade. Precisei começar a tratar com psiquiatra também”.
No ano de 2020 e 2021, os estudos ficaram comprometidos, apenas no final de setembro de 2020 que as aulas online começaram no Centro de Ensino Médio 2 da Ceilândia, região em que mora com a família.
“Na minha escola tinha um negócio que no primeiro semestre eram umas matérias e no outro semestre eram outras. Então, se no primeiro semestre teve química, no segundo semestre não teve, teve física. No primeiro ano, como voltou só em setembro, eles não repuseram as outras matérias. Eu fiquei bem defasada”.
Quando as aulas voltaram para normalidade, já em 2022, ela estava no terceiro ano do ensino médio. No ano de sua formatura, Beatriz já tinha a medicina em seu coração.
“Foi algo surreal, há dois anos eu não tinha nem noção se iriam sobreviver, e aí lá estava eu, me formando no ensino médio e andando”.
Depois de formada, era hora de recuperar os prejuízos que a pandemia deixou, e em 2023, a jovem entrou para um cursinho preparatório para a tão sonhada faculdade de medicina.
Mas os desafios não acabaram, e Beatriz foi diagnosticada com Narcolepsia, uma doença crônica caracterizada pela sonolência excessiva.
“Meu primeiro semestre não foi bom. A aula começava e eu dormia. Eu estava comendo e dormia, só fui melhorar depois do diagnóstico, quando eu comecei o tratamento”.
Os estudos continuam, a busca pela aprovação é o que motiva a jovem a lutar contra todas as dificuldades e estudar.
“É assim, vivendo um dia de cada vez, e às vezes, ainda é difícil pensar que eu não sou todo mundo, porque a gente se compara, mas, por mais que eu quisesse, não vou ter o mesmo desempenho de todo mundo, porque minha história é diferente”.
Agora com a medicação adequada, Beatriz leva uma vida praticamente normal, ainda precisa ter certos cuidados, mas suas internações e idas aos hospitais se resumem apenas aos exames de rotina.
“Minha doença é crônica. Então o esperado é que eu piorasse, no máximo ficaria estável, mas eu regressei. Hoje faço coisas que eu não conseguia fazer antes. São coisas que não têm explicação pela medicina, então é realmente um milagre”.
Por Maria Eduarda Lima
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira