ECA, 35 anos: minidoc expõe traumas da violência contra crianças e adolescentes

COMPARTILHE ESSA MATÉRIA

“Troquei socos com meu pai até desmaiar”. O relato é de um jovem brasiliense que cresceu em um ambiente familiar hostil, onde gritos, xingamentos e agressões eram normalizados, assim como é para muitas crianças e jovens no Brasil, que deixa marcas profundas.

No próximo domingo, o Estatuto da Criança e do Adolescente completa 35 anos ainda com o desafio de conscientizar a sociedade contra violência e também de encorajar denúncias.

Somente em 2023, o Brasil registrou uma média de 196 casos de violência física por dia contra crianças e adolescentes de 0 a 19 anos nas unidades de saúde, segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).

Crescer sob esse tipo de tensão não apenas fere, transforma. A criança aprende a temer quem deveria proteger, a calar diante do grito, a achar normal o tapa, a humilhação. “São pessoas que estão em desenvolvimento, que merecem e têm garantido na nossa legislação a proteção integral delas. Então, a criança precisa de proteção, de afeto e de uma educação não violenta”, explica a advogada Maíra Gonçalves. 

Banalização 

Palmadas, gritos, castigos longos demais. Por muito tempo, tudo isso foi chamado de “correção”, mas para quem viveu, ficou a dor.

A reportagem da Agência CEUB ouviu 11 pessoas, de diferentes idades, e mostrou como esse tipo de violência, ainda tão presente, pode silenciar, ferir e comprometer o crescimento emocional de uma criança. “Muitos adultos repetem com os filhos aquilo que viveram na infância, sem perceber que é violência”, diz a psicóloga Raquel Manzini.

A psicóloga Raquel Manzini, uma das especialistas entrevistadas, explica que esse padrão é muitas vezes repetido sem que os pais se deem conta. “Muitos adultos reproduzem com seus filhos aquilo que viveram na infância, sem perceber que é violência”, afirma.

A normalização da violência como forma de educar é um dos principais pontos levantados pelo documentário. Vários entrevistados relatam ter sido agredidos ou ameaçados sob o pretexto de aprender a obedecer. Em muitos casos, a punição vinha acompanhada de frases como “é para o seu bem” ou “melhor apanhar de mim do que da vida”. E ainda hoje, o discurso da chamada palmada pedagógica é defendido por quem cresceu sob esse modelo. Mas até quando essa herança vai se repetir?

Para a conselheira tutelar Suellen Róbias, a palmada pode até cessar o comportamento de forma imediata, mas não ensina autorregulação e nem empatia. “A criança aprende a obedecer por medo, não por consciência. E isso repercute em insegurança, ansiedade, dificuldades emocionais”, explica. 

Gerações 

O documentário traz o ciclo de repetição. Pais que foram agredidos tendem a repetir esse padrão com os filhos, não por crueldade, mas por desconhecimento das alternativas. Isso fica claro em relatos como o da Jadelma Menezes, que admite ter batido na filha mais velha até ser reeducada pelo próprio marido. “Foi ele que me mostrou que bater não corrige. E eu só percebi isso quando já tinha repetido o que fizeram comigo”, confessa. A palmada recebida como criança se torna a punição imposta à mãe. Sem alternativas, muitos pais replicam os gestos que um dia os feriram, acreditando que é assim que se educa.

“Adultos que batem nas crianças, em geral, viveram também situações de agressão na infância”, afirma Raquel. Para a especialista, é preciso nomear o que se viveu para quebrar a repetição. 

O ciclo só é interrompido quando há consciência, escuta e acolhimento. É preciso acesso à informação, redes de apoio e políticas públicas que incentivem a formação de pais e mães mais conscientes. A educação parental, ainda muito restrita a círculos acadêmicos ou sociais privilegiados, precisa ser democratizada como política de prevenção. Se bater continua sendo visto como uma forma aceitável de correção, é porque o Estado ainda falha em promover alternativas amplas e eficazes.

Violência psicológica e sexual

No Brasil, a maior parte das violências contra crianças ainda ocorre onde elas deveriam estar mais seguras: dentro de casa. Uma pesquisa nacional feita pelo ChildFund Brasil, com apoio da The LEGO Foundation, revelou que 72,7% dos casos de violência contra crianças acontecem na residência da vítima e do agressor. Não se trata apenas de violência física, mas também psicológica e sexual.

Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), a violência sexual representou 40,8% das ocorrências notificadas, enquanto a violência psicológica apareceu em 21,4% dos registros. Em ambos os casos, o lar ainda é o palco principal: 74,3% das ocorrências aconteceram dentro de casa.

Entre os relatos, há casos de violências que não deixam hematomas visíveis, mas marcam a alma. A estudante que não quis se identificar, de 19 anos, compartilha lembranças de abandono emocional, exposição a relações sexuais da mãe e agressões verbais durante a infância. A convivência com um ambiente instável, marcado por gritos, uso de drogas e ausência de limites, moldou sua relação com o mundo e consigo mesma.

A conselheira Suellen explica que, muitas vezes, a violência sexual e psicológica caminham juntas. “Se há abuso, há também dor emocional. A criança que cresce nesse ambiente carrega marcas profundas que, muitas vezes, não são vistas nem reconhecidas.” Segundo ela, as consequências podem ir da ansiedade à dissociação, da hiperexposição ao isolamento.

Essas formas de violência, embora não deixem marcas físicas, são tão ou mais devastadoras do que a agressão direta. A criança submetida a esse ambiente cresce confusa, hiperalerta, incapaz de estabelecer relações afetivas estáveis ou reconhecer seus próprios limites emocionais. 

Vida adulta

As consequências da violência na infância se manifestam com força na vida adulta. No documentário, Leonardo Eloi, 23 anos, relata que cresceu em um ambiente de violência psicológica constante. Após anos de brigas com os pais, ele decidiu que não quer ter filhos. “Eu fui difícil. Dei trabalho. Mas o que vivi me deixou marcas. Não quero correr o risco de repetir isso com outra pessoa.”

A psicóloga Raquel reforça que traumas na infância se refletem em problemas de autoestima, medo de errar, dificuldade de confiar em adultos e até na forma como se vive o amor. “Quem cresce apanhando aprende que sentir é perigoso. Aprende a esconder o que sente”, diz. Em vez de fortalecer, a violência infantil enfraquece a capacidade de construir vínculos.

A conselheira Suellen acrescenta que muitos dos adolescentes que chegam ao sistema de proteção hoje apresentam sintomas de depressão, ideação suicida e automutilação. “É preciso olhar para esses jovens como vítimas de uma história que começou muito antes. Quando ninguém os ouviu.” 

Essas cicatrizes permanecem, mesmo quando os agressores já não estão presentes. Manifestam-se nas relações afetivas instáveis, no medo de repetir padrões, na sensação constante de inadequação. E, embora a dor não possa ser desfeita, o ciclo pode ser interrompido. Escuta, acolhimento, apoio psicológico e políticas públicas efetivas são caminhos possíveis para quem quer viver  e não apenas sobreviver ao que passou.

Diferenças

Apesar da gravidade dos temas, o documentário abre espaço para relatos de esperança. Personagens como Manuela, Jhenifer e Luiz Miguel narram experiências de criação baseadas no diálogo, no afeto e na escuta. Suas histórias mostram que é possível estabelecer limites sem violência, e que educar com firmeza não precisa significar punir com dor.

A psicóloga Raquel destaca que impor regras é parte fundamental da criação, mas que isso pode ser feito de maneira clara e respeitosa. “Quando a criança entende as consequências de seus atos, e isso é explicado com amor, ela aprende a se responsabilizar sem medo.” Educação positiva, paciência, escuta ativa, combinados. São práticas citadas pelos entrevistados e recomendadas pelos especialistas como caminhos viáveis. 

Além dos lares, o documentário volta o olhar para a rede pública de apoio às infâncias em risco. Conselhos tutelares, escolas, CREAS, delegacias especializadas, Ministério Público. Todos esses órgãos formam o que especialistas chamam de rede de proteção, que deve agir de forma articulada diante de casos de violência. Suellen explica que, hoje, a escola é um dos primeiros espaços a perceber sinais de alerta. Mudanças de comportamento, queda no rendimento, retraimento. “É ali que começa o cuidado”, diz. Quando há suspeita, o caso deve ser encaminhado com urgência ao conselho tutelar ou à delegacia, que acionam os demais atores da rede.

Na fala final, a Vice-presidente da Comissão Defesa Direitos das Crianças OAB/DF Maíra Gonçalves lança o chamado que ecoa como mensagem central do documentário. “Se você apanhou quando era criança, o ciclo pode acabar em você.” A frase é ao mesmo tempo denúncia e esperança. O reconhecimento de uma história de dor não é uma condenação  é um convite à mudança. Cicatrizes: marcas da violência não busca culpados. Busca consciência. Escancara o que foi vivido em silêncio, transforma em palavra, dá forma ao que foi reprimido. E, ao fazer isso, rompe barreiras. O documentário é, acima de tudo, um apelo para que crianças não sejam feridas em nome do amor.

Se você presenciar ou for vítima de violência contra crianças e adolescentes, denuncie:

Disque 100 (gratuito e anônimo)

Conselho Tutelar local

CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência Social

Conheça e divulgue a Lei Menino Bernardo (Lei da Palmada – nº 13.010/2014) e a Lei Henry Borel (nº 14.344/2022)

Por Fernanda Diniz, Nathália Mello e Natália Santos

Supervisão de Katrine Boaventura e Luiz Claudio Ferreira

Este obra está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição-SemDerivações 4.0 Internacional.

Você tem o direito de:
Compartilhar — copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato para qualquer fim, mesmo que comercial.

Atribuição — Você deve dar o crédito apropriado, prover um link para a licença e indicar se mudanças foram feitas. Você deve fazê-lo em qualquer circunstância razoável, mas de nenhuma maneira que sugira que o licenciante apoia você ou o seu uso.

SemDerivações — Se você remixar, transformar ou criar a partir do material, você não pode distribuir o material modificado.

A Agência de Notícias é um projeto de extensão do curso de Jornalismo com atuação diária de estudantes no desenvolvimento de textos, fotografias, áudio e vídeos com a supervisão de professores dos cursos de comunicação

plugins premium WordPress