Ritmo da resistência: capoeira simboliza luta contra opressão, dizem pesquisadores

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É pela palavra cantada, falada e improvisada que o legado da capoeira tem sido mantido ao longo dos séculos. Sem registros escritos, a tradição foi passada de boca em boca, de mestre para aluno. Na roda, os cantos carregam mais do que ritmo. São ladainhas que falam da dor da escravidão, da luta por liberdade e da sabedoria dos mestres antigos.

“Para a gente poder preservar, a gente tem que reconhecer o nosso passado. A música tem uma influência muito grande, porque ela conta toda a história do passado, do presente e do futuro”, relata o mestre de capoeira Rubens Bezerra, conhecido como Mestre Formiguinha. 

“A capoeira tem uma energia que emerge por si só. Ela está aí no mundo porque a energia dela conseguiu, através dela mesma, se levar ao mundo. Ela nos direciona e nos dá o norte porque a gente acredita muito nisso”, expressa o mestre. 

Contra sofrimento

O sociólogo Danilo Arnaldo Briskievicz, , pesquisador em História e Educação, comenta sobre a importância histórica que a prática carrega. “Todas as vezes que as pessoas que estão sofrendo perseguição se agrupam, seja para dançar, seja para lutar, estamos falando de algo muito poderoso. A capacidade que as pessoas têm de criar vínculos contra a opressão é muito potente”, afirma.

Hoje, com tais reconhecimentos, a capoeira é praticada em diversos cantos do mundo. Mas é no chão de terra batida, no ritmo do atabaque e no canto que ecoa nas rodas, que ela segue sendo um grito de identidade, pertencimento e preservação da cultura afro-brasileira.

Em 15 de julho de 2008, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) reconheceu a capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil. Esse reconhecimento abrangeu dois elementos fundamentais: a Roda de Capoeira, inscrita no Livro de Registro das Formas de Expressão, e o Ofício dos Mestres de Capoeira, registrado no Livro de Registro dos Saberes. E, em 26 de novembro de 2014, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) inscreveu a Roda de Capoeira na Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.

A capoeira atravessou o tempo como símbolo de revolta e liberdade. Sob os olhos atentos dos senhores e da polícia, ela era disfarçada de dança, acompanhada pelo toque do berimbau e pelas cantigas em línguas africanas e crioulas. Muito mais do que um jogo ou arte marcial, a capoeira representa a memória viva da difusão africana no Brasil. Um corpo em movimento que narra histórias de dor, resistência e ancestralidade.

Crédito: Bruna Teixeira

Nascida a partir da violência colonial, a capoeira é uma importante expressão da resistência cultural afro-brasileira. Surgida entre os séculos XVI e XVII, a prática foi desenvolvida por africanos escravizados trazidos ao Brasil, especialmente das regiões onde hoje estão Angola e Congo. Em um ambiente marcado pela opressão brutal, a capoeira foi uma forma de sobrevivência física, cultural e espiritual. 

Foto: Bruna Teixeira

A luta por trás da luta

O registro da capoeira como patrimônio cultural permitiu a elaboração de planos de salvaguarda, que incluem ações como o reconhecimento do saber dos mestres de capoeira pelo Ministério da Educação. Essa medida visa desvincular a capoeira da obrigatoriedade de registro no Conselho Federal de Educação Física, pois reconhece sua especificidade cultural e educativa.

O Estado tem promovido encontros e debates com mestres e mestras de capoeira para construir políticas públicas mais eficazes. Um exemplo disso é a participação de mais de 200 capoeiristas em um encontro virtual com o Ministério da Cultura realizado em 2025, que visa a construção da Política Nacional para as Culturas Tradicionais e Populares.

O sociólogo chama atenção para a importância do apoio e da preservação da capoeira. “O principal apoio é valorizar, divulgar, reconhecer e permitir que haja espaços para prática. O governo precisa criar incentivos para o desenvolvimento dessa luta marcial. Tudo isso é fundamental. A capoeira entra em um contexto de luta antirracista, apoiar a capoeira é ser antirracista”, afirma Danilo.

Mesmo com avanços, ainda existem desafios significativos. A implementação do Programa Nacional de Salvaguarda e Incentivo à Capoeira (Pró-Capoeira), por exemplo, enfrenta dificuldades, e há uma demanda por maior apoio financeiro e institucional para projetos locais.

Apesar disso, o Mestre Formiguinha afirma perceber uma crescente valorização na prática da luta. “A capoeira vem conquistando vários espaços nos quais antes a gente não tinha acesso. A profissionalização do capoeirista, por exemplo, vai ser importantíssimo para valorizar os mestres e a capoeira também”, declara.

Gingando

Segundo o sociólogo, a entrada da capoeira em academias, escolas e projetos sociais implica em aspectos tanto positivos, quanto negativos. Por um lado, democratiza o acesso e amplia seu alcance. Por outro, ameaça esvaziar seus sentidos históricos e políticos. A capoeira, quando convertida em produto, corre o risco de ser consumida como simples exercício físico ou espetáculo folclórico, desconectada de suas raízes afro-brasileiras e de sua função como ferramenta de resistência.

“Quando a capoeira vira apenas mercadoria, ela corre o risco de ser apropriada sem o devido respeito à sua ancestralidade”, alerta. Para ele, a descaracterização acontece quando se dilui a história da escravidão, da luta e da oralidade que compõem a base da prática.

Mestre Formiguinha, por sua vez, reconhece que a capoeira precisa dialogar com o presente, inclusive com as linguagens do mercado, mas sem abrir mão da sua alma. “Ela é uma cultura viva. Preserva, mas também se transforma. O importante é manter o respeito à tradição e aos mestres que carregam essa história”, afirma.

O desafio, portanto, está em equilibrar tradição e inovação: transmitir os saberes ancestrais com responsabilidade, ao mesmo tempo em que se constrói um futuro sustentável para quem vive da arte da ginga.

Crédito: Bruna Teixeira

Raíz que se move

Mestre Formiguinha reforça que o segredo para manter viva essa herança está no respeito à ancestralidade.

“Se a gente pensar em ancestralidade, já volta à preservação. Eles lutaram tanto para que essa história se mantivesse viva”, diz.

Para ele, a capoeira é uma cultura viva, que se transforma com o tempo, mas que não perde sua essência. “Ela nos ensina a sermos humanos. É comunhão, acolhimento, é uma filosofia de vida.”

Apesar das transformações naturais com o tempo, como novas linguagens, espaços e formatos, os praticantes reforçam que o futuro da capoeira depende da valorização de seus mestres, da oralidade e da base filosófica que sustenta a prática. “Capoeira é pra fortalecer, não pra dividir. Ela agrega, ela acolhe”, conclui Formiguinha.

Por Bruna Teixeira (texto e fotos)
Sob supervisão de Luiz Claudio Ferreira e Lourenço Cardoso

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