Estado deve atuar pela proteção de crianças em vídeos nas redes, apontam especialistas

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A vitalização de um vídeo do youtuber Felca e a prisão do influenciador Hytalo Santos reacenderam o debate sobre regulamentação das redes sociais, o acesso de menores a publicações impróprias e a responsabilidade das “Big Techs”.

Imagem: Reprodução Youtube @Felca

Também levantaram questionamentos sobre a forma como a Justiça deverá conduzir casos semelhantes posteriormente. 

Regras

Segundo o advogado Thiago Pádua, especialista em direito constitucional, a legislação brasileira é clara ao estabelecer, com base também no Art. 277, que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar, com absoluta prioridade, a proteção da criança e do adolescente contra qualquer forma de negligência, discriminação, violência, crueldade e exploração.

“Essa proteção interna dialoga diretamente com tratados internacionais, como a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela ONU e ratificada pelo Brasil, que obriga o país a prevenir e coibir todas as formas de exploração e abuso sexual infantil, inclusive em ambientes digitais”, explica o advogado.

Pádua também alerta que a remoção dos conteúdos deve ser imposta, mesmo que  a produção seja feita com a autorização e supervisão dos pais/responsáveis, que também devem ser responsabilizados

“É possível atuar pedindo a retirada da imagem e/ou vídeos das plataformas e redes sociais, bem como é possível responsabilizar os responsáveis cível e criminalmente, ainda havendo a possibilidade de intervenção na guarda dos menores, colocação em família substituta, abrigo, ou, ainda, penalizar pais, tutores ou responsáveis.”


Para ele, a remoção de conteúdo que viole a dignidade e a imagem infantil não configura censura, mas sim cumprimento de um dever constitucional e internacional de proteção.

Quanto ao papel das plataformas digitais e do próprio Estado, Pádua defende uma atuação conjunta entre governo e Big Techs para implementar filtros mais eficientes.

“As plataformas possuem o dever de criar mecanismos que orientem seus algoritmos para evitar a promoção de conteúdo nocivo, bloqueiem termos e imagens, tirem a monetização de contas que façam uso indevido da imagem infantil e facilitem denúncias e investigações. É preciso que esse trabalho seja aliado a medidas preventivas, como suspensão de contas e grupos suspeitos, além de responsabilização direta — inclusive pecuniária — das empresas e de seus gestores”, afirma.

Na avaliação do advogado, o vídeo publicado por Felca teve papel importante ao expor a forma como algoritmos podem direcionar e agrupar conteúdos e usuários com intenção de explorar imagens de crianças. Ele defende que, a partir de denúncias como essa, é preciso agir com mais rigor para impedir a repetição desses casos.

Imagens: Pickpic


Discussões no legislativo

No congresso Nacional, tramita o PL 2628/2022, que busca regulamentar a atuação das plataformas digitais no Brasil. A proposta prevê medidas para combater a desinformação, exigir maior transparência nos processos de moderação de conteúdo e responsabilizar as empresas de tecnologia pela veiculação de publicações ilegais.

O advogado Luiz Augusto D’Urso, presidente da Comissão Nacional de Cibercrimes da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (ABRACRIM), no entanto, avalia que o PL 2628/2022, apelidado de “PL da Adultização”, não é uma boa iniciativa de mudança legislativa. Para ele, o texto deixa de criminalizar a prática de monetizar conteúdos sexuais envolvendo crianças e ainda cria conceitos que divergem do que já está previsto no Marco Civil da Internet, gerando insegurança jurídica.

Na visão de D’Urso, o caminho mais adequado seria promover alterações pontuais no Marco Civil da Internet, com a inclusão de uma previsão criminal específica para punir a monetização de conteúdos de caráter sensual envolvendo crianças e adolescentes. Enquanto o material de teor sexual já é criminalizado, o sensual permanece em uma área cinzenta da lei, permitindo que práticas exploratórias continuem sem responsabilização clara.


O advogado da ABRACRIM também explica que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Marco Civil da Internet são hoje as principais bases legais de proteção. “São vários os crimes previstos no ECA para punir criminosos que divulgam, compartilham ou até armazenam pela internet, incluindo a criminalização de montagem de conteúdo sexual. Quando o conteúdo tem sexo, nudez ou pornografia, as penas podem chegar até 8 anos de prisão,” disse.

A legislação também criminaliza montagens digitais com esse tipo de material, prevendo penas que podem chegar a oito anos de prisão. O Marco Civil da Internet, por sua vez, estabelece que plataformas podem ser responsabilizadas se, após notificação, não removerem conteúdos ilícitos envolvendo menores.

D’Urso ressalta ainda que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) possui regras específicas para o tratamento de informações de menores de idade. Mesmo assim, a responsabilidade das plataformas segue ancorada no Marco Civil. “Eu defendo que se tenha uma mudança no próprio Marco Civil da Internet. Uma mudança pontual do Marco Civil e a inclusão de uma previsão criminal para aqueles que monetizam conteúdo envolvendo criança e adolescente com caráter sensual,” afirmou.

Outro desafio, segundo o especialista em crimes cibernéticos, é o controle do tempo de uso e do tipo de conteúdo acessado por crianças e adolescentes. Esse campo é subjetivo e depende tanto do empenho das plataformas quanto da participação ativa dos pais. Para D’Urso, é essencial que as empresas melhorem seus algoritmos, evitando recomendar conteúdos nocivos, e que sejam ampliadas as campanhas de conscientização voltadas às famílias.

Brasil em relação ao mundo 

A União Europeia se consolidou como referência mundial ao criar o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR), a Lei de Serviços Digitais (DSA) e o Ato de Mercados Digitais (DMA), marcos que a colocam na liderança das discussões sobre regulação das redes sociais e proteção de dados.

No Brasil, Luiz Augusto D’Urso avalia que há bons exemplos fora do país para se adaptar à realidade brasileira e que ainda há atraso nesse campo internamente, embora o país também caminhe para adotar regras rígidas.

“A União Europeia, sem dúvida nenhuma, tem uma lei muito restritiva e foi muito forte em cima das plataformas. O Brasil está caminhando para seguir algo similar, mas mais leve, o que também seria uma regulamentação. Não invadindo a liberdade de expressão, seria, a meu ver, um avanço na previsão legal, porque hoje nós temos realmente lacunas que os criminosos estão aproveitando para produzir esse conteúdo, com impunidade das plataformas.”

Para D’Urso,  a regulamentação pode contribuir para enfrentar os problemas do ambiente digital, mas deve ser conduzida com cautela e evitar uma aprovação apressada sem uma análise mais ampla e minuciosa.

“O problema pode ser combatido também pontualmente com uma evolução da lei em relação à internet. Mas temos que ter cuidado para não aprovar às pressas uma lei que de fato pode ferir a liberdade de expressão e tentar resolver todos os problemas da internet, o que é praticamente impossível com uma simples mudança legislativa feita de forma acelerada,” explicou.

Por Pedro José e Artur Monteiro

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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