A escritora britânica Agatha Christie, que nasceu há 135 anos (em 15 de setembro de 1890), foi revolucionária com fórmulas acessíveis ao público e também ao criar uma detetive idosa, a Miss Marple. Essa é a avaliação do professor de literatura William Alves, da Universidade de Brasília (UnB).
Ela nasceu em Torquay, no sul da Inglaterra, e se tornou uma das autoras de romances policiais mais lidas do século 20. Ela teve mais de dois bilhões de livros vendidos em mais de 100 idiomas e é considerada a escritora de ficção mais vendida da história, atrás apenas da Bíblia e das obras de William Shakespeare.

Fenômeno editorial
Segundo o estudioso, que é pesquisador do gênero do mistério, Agatha Christie ajudou a definir os pilares do romance policial moderno com tramas engenhosas, reviravoltas inteligentes e soluções surpreendentes.
Ao todo, ela escreveu pelo menos 75 livros, incluindo 66 romances de mistério, 15 coletâneas de contos e peças de teatro, além de outros trabalhos como a autobiografia e os romances publicados sob o pseudônimo de Mary Westmacott
Entre suas obras mais conhecidas estão Assassinato no Expresso Oriente (1934), Morte no Nilo (1937), E Não Sobrou Nenhum (1939) e O Assassinato de Roger Ackroyd (1926).
A peça teatral A Ratoeira (The Mousetrap), em cartaz desde 1952, detém o recorde de mais longeva do mundo, com milhares de apresentações em Londres.
Mulheres e mistérios: uma escritora pioneira
Em um universo literário dominado por homens tanto no protagonismo quanto na autoria, Agatha Christie desafiou paradigmas.
“A popularidade de Agatha vem do equilíbrio entre complexidade e acessibilidade. Ao contrário de obras muito sofisticadas que poucos conseguem ler, ela alcança muitos”, diz o professor.
Ela criou personagens femininas fortes, como a icônica Miss Marple, e firmou seu nome em um dos gêneros mais competitivos da literatura.
“Ela inovou ao colocar uma mulher idosa como detetive em um tempo em que mulheres raramente tinham protagonismo, especialmente no gênero policial. Isso, por si só, é um gesto revolucionário”, ponderou o professor da UnB.
Mesmo com a popularidade de personagens como o detetive Hercule Poirot, a figura de Miss Marple se destacou pela inteligência, discrição e capacidade de perceber o comportamento humano como ninguém.

“Christie se ressentia de ter criado Miss Marple já idosa, porque queria contar suas histórias por muitos anos. Mas essa escolha também mostra sua sensibilidade em explorar personagens fora dos padrões, porque a Agatha era assim.”
A autora por trás da lenda
Durante a Primeira Guerra Mundial, Christie trabalhou como enfermeira e farmacêutica, o que lhe deu amplo conhecimento sobre venenos, um recurso que se tornou recorrente em seus enredos.
Em 1915, casou-se com Archibald Christie, com quem teve uma filha, Rosalind. O casamento no entanto, acabou em divórcio após a infidelidade de Archibald.
Em 1926, poucos anos após o fim da Primeira Guerra Mundial, Agatha Christie protagonizou um dos episódios mais misteriosos de sua vida pessoal. O desaparecimento ocorreu logo após seu marido, Archibald Christie, revelar um caso extraconjugal e pedir o divórcio. Abalada pela revelação, a escritora sumiu repentinamente por 11 dias, deixando familiares e autoridades em estado de alerta.
Após uma intensa busca nacional, Agatha foi encontrada hospedada em um hotel spa em Harrogate, a cerca de 300 km de sua residência curiosamente registrada sob o nome de Teresa Neele, o mesmo sobrenome da amante de seu marido.
Quando encontrada, em Harrogate, confusa, ela não sabia explicar como chegou ao local. Ao chegar no hospital, os médicos a diagnosticaram com fuga dissociativa. O caso, até hoje, permanece envolto em especulações.

Em 1930, Agatha se casou novamente, com o arqueólogo Max Mallowan. Acompanhando o marido em suas expedições ao Oriente Médio, ela encontrou inspiração para seus livros ambientados em terras do oriente, como Morte no Nilo e Assassinato na Mesopotâmia.
Poucos sabem, mas Christie também preparou com décadas de antecedência os romances finais de seus dois principais detetives: Poirot e Miss Marple. Temendo não sobreviver à Segunda Guerra Mundial, escreveu Cai o Pano e Um Crime Adormecido, guardando-os em um cofre como herança para a filha.
Ambos foram publicados nos anos 1970, e o obituário de Poirot chegou a ser destaque na primeira página do The New York Times, um feito raro para um personagem fictício.
“Ela publica a morte do Poirot pouco tempo antes da própria do próprio falecimento dela. O New York Times que publicou o obituário, a morte do Poirot deu primeira página no New York Times em 75 “, diz professor.

Influência no Brasil
“O Brasil tem uma tradição policial própria, influenciada tanto por Agatha quanto por autores americanos, com uma vertente mais violenta.”
A influência de Christie ultrapassa barreiras linguísticas e geográficas. No Brasil, escritores que vão de Rubem Fonseca (1925 – 2020) ao jovem Raphael Montes (nascido em 1990) são apontados como herdeiros dessa tradição literária.
“Um exemplo atual, top 1 do Brasil, é Raphael Montes, um herdeiro das técnicas de Agatha e ele gosta muito de usar essa técnica de morte semelhante a Agatha. ”
O professor afirma que Montes é um exemplo contemporâneo da influência de mais de 130 anos da Agatha, evidenciando como essa influência se perpetua por mais de um século.
“Raphael Montes é o principal escritor brasileiro de romance policial e se inspira diretamente em Agatha. Ele mesmo disse que aprendeu com ela a importância das pistas, do raciocínio lógico, da surpresa no final e ele adaptou para o jeito dele.”
O professor destaca que, ao longo do tempo, os escritores brasileiros não apenas incorporaram as técnicas do gênero policial, mas também souberam moldá-las para retratar a complexa realidade do país.
“Essas técnicas foram absorvidas por escritores brasileiros, que souberam adaptá-las à realidade nacional mais violenta, mais urbana, mais marcada por corrupção”
Ele também cita exemplos como Tropa de Elite, de José Padilha, e Crônica de uma Morte Anunciada, de Gabriel García Márquez, como obras que flertam com o gênero policial sob uma ótica latino-americana.
“O gênero policial de certa forma também serve como denúncia social, como em ‘Crônica de uma Morte Anunciada’, de Gabriel García Márquez ou Tropa de Elite.”
O respeito ao leitor como marca registrada
Segundo o professor William Alves, um dos segredos da popularidade de Christie é o respeito que ela demonstrava pela inteligência do leitor.
“Ela sempre respeitou muito a inteligência do leitor. Ela cria personagens gigantes para o leitor. Apresenta pistas ao longo da narrativa e permite que o leitor deduza junto com ela. Ela apresenta toda a cadeia de raciocínio, de maneira muito clara, para que o leitor possa acompanhar com pistas.”
Essa conexão com o público, segundo o professor, é tão profunda que até os próprios personagens se tornam parte da vida dos leitores e da autora.
“O apego do público com a personagem é tão grande que, em algum momento, o detetive tem que morrer. A própria Agatha lamentava ter criado Miss Marple já idosa. Ela era jovem quando criou a personagem, mas depois percebeu: ‘Poxa vida, quero contar as histórias dessa mulher por muito tempo, mas já a criei com quase 70 anos.’”
Apesar de ter sido criticada por setores mais elitistas da crítica literária, Christie prosperou.
“Ela foi criticada exatamente por ser popular, mas é justamente essa comunicação direta e eficaz com o público que mostra a força da sua literatura.”
Adaptações e legado no audiovisual
O legado de Christie continua vivo no cinema e na TV. Com novas adaptações sendo lançadas por grandes plataformas de streaming e autores autorizados a continuar as histórias com aval dos herdeiros, o universo da escritora permanece em expansão.
“As obras dela continuam sendo adaptadas para filmes, séries e novas histórias autorizadas pelos herdeiros. Sua peça ‘A Ratoeira’ está em cartaz desde 1952, só parou na pandemia.”
Séries como Why Didn’t They Ask Evans? e filmes como Morte no Nilo e Assassinato no Expresso do Oriente seguem apresentando a autora para novas gerações.
Um brinde à Rainha do Crime
Celebrar os 135 anos de Agatha Christie é reconhecer o impacto de uma mulher que desafiou convenções, encantou o mundo com sua inteligência e moldou o gênero policial como poucos. Obras essas que continuam formando leitores e escritores no mundo todo.
“Ela se tornou a senhora do mistério. Foi condecorada pela rainha Elizabeth II, vendeu milhões de livros em uma época sem internet ou redes sociais e continua formando leitores e escritores no mundo todo”, resume o professor William Alves.
Neste 15 de setembro, revisitar um de seus livros é mais do que um ato de leitura, é um tributo à autora que transformou o crime em arte.
“Uma escritora de profundo talento, uma escritora que deixou sua marca na literatura mundial. Se a crítica de alguma maneira torceu o nariz, azar da crítica. Ela é uma das escritoras mais importantes da literatura inglesa e internacional. Os números falam por si.”
Indicações para começar (ou reler)
- Para iniciantes: O Assassinato de Roger Ackroyd
- Para fãs de suspense psicológico: E Não Sobrou Nenhum
- Para quem ama viagens e mistério: Morte no Nilo
- Para os que preferem contos rápidos: Os Treze Problemas (com Miss Marple)
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Por Riânia Melo
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira