Após 15 anos de união, no início de junho, o casal formalizou a relação estável em cartório. Com uma vida semelhante à de outras histórias de amor, possui momentos alegres e outros nem tanto. Acordar cedo para preparar o café da manhã, gerenciar o salário para pagar todas as contas, passear no final de semana, sair para jantar, passear pelo parque… A rotina do casamento de Joana* e Júlia* não difere das histórias de casais heterossexuais que elas conhecem. E, assim como a relação dos amigos, a delas constitui uma entidade familiar brasileira conforme assina embaixo até mesmo o Supremo Tribunal Federal (STF). No entanto, mais do que o entendimento das leis, elas se entendem como família. No entanto, uma discussão no Congresso pode alterar e prejudicar a vida de casais homoafetivos com o Projeto de Lei conhecido como “Estatuto da família” (PL 6583/13). Depois de dormitar na Câmara, ganhou impulso com o grupo de parlamentares identificado como “bancada evangélica”. Na prática, diminuiria direitos já conquistados. Joana e Júlia, como tantos outros casais na mesma condição, estão preocupadas.
“O que me incomoda, muito particularmente, é achar que a relação homoafetiva, é o fim (pecado)”, afirma Joana. “É uma hipocrisia as pessoas acreditarem que a homossexualidade seja um desvio de conduta”. Ela considera que os casos de traição nas relações heterossexuais são mais consentidos pela sociedade do que o chamado “casamento gay”. Para elas, o preconceito existe, mas muitos casais heterossexuais não se incomodam com a sexualidade do outro. “Por incrível que pareça, a maioria dos nossos amigos são héteros com filhos”. O casal afirma que todos do ciclo de amizade já sabiam sobre a orientação sexual delas, o que não afetou as amizades. “Às pessoas que perguntam, a gente não nega”.
O silêncio sobre a relação também é experimentado por Felipe*. Casado oficialmente há três anos, ele mantém uma relação de 12 anos. Ele ressalta que sempre apresentou o companheiro como “amigo”. “Eu respeito muito as pessoas e também quero ser respeitado”. Felipe entende que existe preconceito disfarçado na sociedade. “Muita gente diz não ter preconceito, mas é uma farsa, pois muitos acabam tentando camuflar”. Para ele, as redes sociais trouxeram um “avanço”, porém “muita gente perdeu a vergonha de demonstrar seu pensamento (negativo) sobre a homossexualidade”.
Felipe acredita que existe preconceito contra “Gays”
Encontro
Joana e Júlia lembram que a história de amor delas começou no cursinho. “No primeiro dia de aula, entrei na sala e ela estava ao fundo. Quando olhei, de imediato senti algo diferente”, recorda Joana. Ela esclarece não saber o que sentia, mas acreditava ter a certeza de uma nova amizade entre elas. Passaram a se conhecer melhor e, no início, existia o medo da nova relação. Após alguns dias, decidiram levar o relacionamento adiante, mesmo preservando a intimidade. Júlia esclarece que a decisão de morarem juntas não demorou. “O dia estava chuvoso e, após deixá-la em casa, sofri um acidente de carro”. Após o ocorrido, para encurtar as distâncias, decidiram morar juntas alugando um apartamento com uma amiga.
Felipe conheceu seu marido em uma festa de amigos. Na época, com 25 anos, ele notou a presença do rapaz. “Eu de longe vi e falei para mim, vou namorar aquela pessoa”. Ele conta que ao se apresentar a sensação foi diferente e os “olhares” marcaram lembranças. “Quando ele disse que ia embora, pedi para voltar. Ele voltou e começamos a conversar”. Segundo Felipe, após 15 dias já estavam “juntos”. O começo repentino se transformou em uma união estável. “Hoje a relação continua muito bacana. No casamento, a gente vira companheiro e se ajuda”. Para ele, em toda relação familiar existem conflitos. “Chegamos a brigar com pai e mãe, mas nossa relação é muito boa, mesmo tendo momentos de discussão”.
Família
“A primeira pessoa a saber sobre minha orientação sexual na família, foi minha irmã”. Felipe esclarece que não escondia o primeiro relacionamento. “Não estava cometendo nenhum ilícito”. Mesmo assim, explica ter sido mais difícil aceitar a própria orientação do que contar à família. “Neste momento fui para a casa de minha irmã e contei para ela”. Ao relembrar a reação da irmã, diz ter ficado surpreso. “De início ela ficou chocada, mas não havia o que fazer e passou a aceitar”.
“A única pessoa que eu não contei diretamente, foi meu pai”. Mesmo não contando pessoalmente, Felipe explica a relação amistosa e de respeito do pai com o marido. “Antes de falecer, quando meu pai me ligava, sempre perguntava pelo meu companheiro antes de saber notícias minhas”. A tranquilidade é a mesma entre os seis irmãos. “A relação sempre é de respeito mútuo entre minha família e meu companheiro”.
Mesmo não tendo contado formalmente, todos da família de Júlia sabem de sua escolha sexual. Conta ter um irmão padre que entendeu e se prestou a contar à mãe. “Meu irmão e minha mãe viajaram para fora do país e ele explicou a nossa relação”. Após retornarem, a mãe mudou de comportamento, explica. “A partir daquele momento, minha mãe nunca mais nos botou para dormir em camas separadas. Antes era no mesmo quarto, mas separadas”.
A família da Joana soube da sua relação com Júlia pela irmã. . Após acordarem, no café da manhã, a mãe foi direta: “Sua irmã falou que você e a Júlia estão tendo um relacionamento”. O choque foi imediato, então a mãe concluiu. “Quero dizer para vocês, independente de qualquer coisa, eu amo vocês”. Para a Joana a atitude da mãe a tranquilizou e, após o abalo imediato, a conversa foi franca. “Acabou que minha irmã fez um favor, mesmo não sendo a melhor forma de se contar”.
Filhos
Conceituar família pressupõe, em muitos casos, transmissão de valores para um descendente. No caso dos homoafetivos, a adoção é uma das opções. Sendo um casal do mesmo sexo, o medo de enfrentar uma fila de adoção aflige a Joana e a Júlia. “Do mesmo jeito que tem gente na instituição que respeita, haverá divergentes. Acreditam que a criança não vai ser feliz com o casal”. Mas este medo também atinge os casais, afirma Felipe. “Eu penso muito no sofrimento que a criança iria ter, ainda mais se eu for o agente causador de tristeza na pessoa”. Segundo a Joana, toda mãe é uma “leoa” e teme o sofrimento do filho. “Não sei qual seria minha reação caso tivermos uma criança e nos depararmos com uma situação de preconceito”. Ela acredita que o medo não deve impedir os casais de fazer o necessário para a criança ser adotada.
Joana afirma se ressentir do preconceito “enraizado” na sociedade. “Eu acredito que se você é bem resolvido, se está feliz, não quer saber da sexualidade do outro. Se a sexualidade dele, não prejudicar a sociedade, aonde aquilo pode incomodar?”, questiona.
Fé e luta
Entidades da sociedade civil organizada discordam da visão do Estatuto da Família. Na capital federal, a igreja evangélica “Athos” se destaca ao pregar uma visão do evangelho. “Não somos uma igreja somente para a comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), nós somos uma igreja para qualquer pessoa. A nossa diferença é não fazer a discriminação a homoafetivos”. O presbítero Jean Charles esclarece sua visão. “Existem igrejas fora do evangelho. O evangelho de Cristo é solidário, é amor e ajuda mútua. Não se pode ‘fugir’ disso”.
Após mais de sete anos em defesa dos direitos da população LGBT, a organização não governamental (ONG) Elos entende a união estável de casais do mesmo sexo na decisão da suprema corte brasileira como uma das “maiores vitórias” na luta pela igualdade com relação aos demais casais. “O Judiciário tem demonstrado ser o órgão mais favorável ao ‘novo’ conceito de família e aos direitos das minorias”, explicou.
Jurista
Ministro relator da decisão favorável à união estável entre casais homoafetivos, o ex-presidente do STF, Carlos Ayres Britto, esclarece que a decisão da corte contrapõe a ideia do Estatuto da Família. “Nós chegamos à conclusão, interpretando os dispositivos constitucionais, que entidade familiar é núcleo familiar, ou seja, núcleo doméstico”. Segundo o jurista, não há motivos de se negar o espaço da vida a dois nas relações homoafetivas. “Essa vontade de trocar experiências alongadamente no tempo e de buscar o que se poderia chamar de realização pessoal é direito de qualquer cidadão, estando assim, ‘entidade familiar’ é um projeto de felicidade a dois”.
A constituição recebeu em 2011 a interpretação do STF sobre o conceito de ‘entidade familiar’, implicando em um relacionamento afetivo de solidariedade. “A união de um casal possui fôlego suficiente para se alongar no tempo, não eternamente ou necessariamente. Porém estavelmente e à luz do dia, da sociedade. Ostensivamente e não clandestinamente”, ressalta. O ministro esclarece que a corte não “aditou” norma aos dispositivos constitucionais interpretados. “O STF interpretou proativamente os dispositivos”.
Ayres Britto explica a diferença entre interpretação aditiva e proativa
“Liberdade, antes de tudo liberdade, inclusive sexual. São pessoas adultas que usam da sua sexualidade como bem entendem, sem prejudicar ninguém. Quem está sendo prejudicado com uma relação homoafetiva voluntária, entre pessoas adultas?”, questiona Ayres Britto. Para ele, o reconhecimento ao direito de união estável não restringe direitos “alheios”. “É o tipo do reconhecimento do direito que não implica prejuízo para ninguém. Os homoafetivos ganham e os heteroafetivos não perdem”.
O ministro cita literalmente o Artigo 5º da Constituição Federal de 1988. “Todos são iguais perante a lei”, independente de sua orientação sexual. “Todos pagam os mesmos tributos, todos dirigem automóveis com a mesma responsabilidade e todos respondem pelo mesmo código penal”, acredita o jurista. “A liberdade de escolha, inclusive no campo sexual, é um “problema” de foro íntimo, proveniente da autonomia da vontade”, defende.
Ayres Britto esclarece a segurança jurídica
Entenda a proposta do Estatuto da Família
Em discussão no Congresso, o “Estatuto da Família” (PL 6583/13), proposto pelo deputado federal Anderson Ferreira (PR-PE), tem sido discutido em comissão especial com apoio da bancada evangélica. Um dos trechos mais polêmicos está no artigo 2º. “Define-se ‘entidade familiar’ como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher”.
Outro ponto que levanta discussões está logo abaixo, no artigo 3º. “É obrigação do Estado, da sociedade e do Poder Público (…), assegurar à ‘entidade familiar’ a efetivação do direito à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte”, entre outros. Segundo o artigo 4º, os agentes públicos ou privados devem “zelar” pelos direitos da família ameaçados. “É obrigação do Estado, garantir à ‘entidade familiar’ as condições mínimas para sua ‘sobrevivência’ mediante a efetivação de políticas sociais”.
Para o jurista Ayres Britto, o conceito de entidade familiar já recebeu anteriormente o entendimento do Judiciário. Para ele, o projeto não tem respaldo constitucional. “É preciso que este projeto de lei se adapte”. O legislador ao produzir um projeto de lei (PL) ou um projeto de emenda constitucional (PEC) só poderá normar nos termos que já foram normados, explica.
Ayres Britto: “Papel da Constituição”
A Agência de Notícias UniCEUB tentou contato com o autor da proposta, Anderson Ferreira, com o presidente da comissão do Estatuto da Família, Sóstenes Cavalcante (PSD-RJ), e os vices, Marco Feliciano (PSC-SP) e Rogério Marinho (PSDB-RN), e nenhum deles se pronunciou para esta reportagem. Todas as demais entrevistas foram realizadas em junho de 2015.
*Os nomes foram alterados com o intuito de preservar a identidade dos personagens.
Por: Lucas Valença / Agência de Notícias UniCEUB