Especialistas criticam processos de infantilização e sexualização de mulheres adultas

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Mulheres no espaço público identificadas como se fossem menos responsáveis e com menor capacidade de tomar decisões são imagens que agregam mais um tipo de violência no País. Esse cenário, inclusive, facilitaria conceber a mulher, em qualquer espaço, como objeto sexual, como afirma a pesquisadora Vanessa Alves, que estuda os temas do erotismo e corpo na sociedade.

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Ela explica que a erotização massificada transforma mulheres em objetos de uso e descarte. “Erotismo é continuidade, corpo sagrado, detalhe e profundidade”, explica. 

Outra pesquisadora, a socióloga Ellen Geraldes, que é professora universitária em Brasília, diz que esse fenômeno está diariamente, dentro e fora do campus, inclusive. ” A infantilização aparece de forma explícita ou sutil”.

Entre os exemplos que ela cita, está o de comentar que a voz feminina seria mais “fofa”. Outras demonstrações de machismo seriam parte do hábito de chamar mulheres adultas de “meninas”. Isso, na avaliação da pesquisadora, transmite a ideia de que precisariam ser constantemente orientadas. já que seriam menos racionais.

Essa leitura infantilizada tem efeitos diretos na vida profissional. “A liderança feminina é frequentemente deslegitimada. É como se precisassem provar o tempo todo que são adultas mesmo.”, diz Ellen.

Isso se confirma quando se observa o mercado: mesmo com 48,5% de participação feminina no mercado formal, mulheres seguem ganhando menos, enfrentam mais obstáculos para ascender e continuam sendo as principais responsáveis pelo trabalho doméstico.

A infantilização constante também possui impacto emocional. Ellen relata: “As mulheres desenvolvem ansiedade, depressão e uma sensação constante de impostora. É como se todos os esforços batessem num muro.”

Essa sensação se conecta a outro dado alarmante: mulheres que sofreram violação apresentam maior risco de desenvolver sintomas psicopatológicos e problemas de função sexual — impactos longos de uma cultura que, desde o início, retira sua autonomia.

Exposição

Para Vanessa Alves, a mídia e o marketing criaram um modelo de desejo baseado na ingenuidade feminina. “A imagem da mulher bonita, recatada e do lar é um produto. Quando transformo uma mulher em produto de ingenuidade plastificada, detenho poder sobre ela”, afirma.

É nesse ponto que infantilização e sexualização se encontram, no entender da pesquisadora, já que há uma combinação da ideia de que o infantil é visto como puro, controlável, dócil. Ao mesmo tempo, o sexualizado é visto como “desejável”. “Somados, produzem a figura da mulher perfeita para o patriarcado”, acrescenta

“Se houvesse limite para a sexualização, os dados de violência contra mulheres teriam diminuído. Mas não diminuem.”

E os números comprovam: os mais de 591 mil estupros registrados no país em dez anos não caem isoladamente — estão diretamente ligados a uma cultura que reduz mulheres a objetos e nega sua agência.

A pesquisadora ainda explica que a raiz dessa lógica está na história religiosa ocidental.

“Somos seres descontínuos buscando continuidade no corpo do outro. Para Bataille, isso é sagrado, mas a religião transforma tudo em culpa.” Segundo Vanessa, a construção social do desejo feminino sempre foi atravessada por moral religiosa e patriarcal:

“Se uma mulher deseja, é julgada. Se não deseja, é infantilizada. Se se expressa artisticamente, é acusada de vulgaridade. Se explora erotismo, é punida simbolicamente.”

Ela lembra o que ouve com frequência no meio artístico: “Já me disseram: ‘você escreve como um homem’, como se a literatura tivesse gênero e esse gênero fosse naturalmente masculino.”

A punição ao corpo feminino que fala por si mesma é uma continuidade histórica: “Toda a minha nudez foi e será sempre castigada.”

Infantilização e violência

A infantilização não é apenas simbólica. Ela cria risco real. Violência sexual e negação de autonomia. Mulheres vistas como frágeis, confusas, emocionais ou “ingênuas” têm suas palavras constantemente deslegitimadas — especialmente em situações de violência. Os dados reforçam isso:

A infantilização se encaixa nesse conjunto por um motivo principal. Essa postura retira a mulher da posição de sujeito e a coloca na posição de objeto, vulnerável a relações de poder e violência, na avaliação das pesquisadoras ouvidas pela reportagem.

Embora todas as mulheres sejam vítimas da infantilização, esse processo não é sempre igual. Mulheres brancas são frequentemente tratadas como frágeis, puras, intocáveis. Mulheres negras são vistas como fortes, resistentes e “adultas desde cedo”.

“As opressões não vêm sozinhas. A mulher pobre, negra, indígena acumula camadas de desvantagem. Essa combinação, infantilização seletiva somada a adultização racial é uma das estruturas invisíveis mais profundas da desigualdade brasileira”, diz a professora Ellen Geraldes

Essa assimetria ajuda a explicar o porquê: mulheres brancas são consideradas “protegíveis”. Mulheres negras, não. Mulheres brancas têm mais credibilidade ao denunciar. Mulheres negras enfrentam mais violência e mais desconfiança.

Erotização, pornografia e o corpo que vira produto

A pesquisadora Vanessa Alves é enfática sobre o papel da pornografia no cenário atual. “A indústria pornográfica nasce pronta para limitar o desejo. Ela idiotiza o erotismo, reduz potenciais e transforma mulheres em produto.” A pesquisadora evidencia o impacto desse consumo:

  • aproximação estética entre mulheres adultas e adolescentes;
  • normalização de fantasias violentas;
  • exploração de comportamentos infantis como fetiche;
  • desumanização crescente, inclusive com bonecas sexuais de IA.

Apesar dos avanços da quarta onda feminista — como o movimento #MeToo, que impulsionou denúncias e debate público. Vanessa observa uma reação contrária.

“Cresce um movimento conservador com viés fanático, que quer punir cada pequeno direito conquistado, em nome de uma família ‘feliz, infeliz’”.

Essa disputa política e moral coloca o corpo feminino no centro da batalha cultural: quem controla o corpo, controla a narrativa.

Violência sexual

No Brasil, entre 2015 e 2024, 591.495 mulheres foram vítimas de estupro. Os números mostram ainda que 76,6% dos agressores eram homens, e 60,4% das vítimas adultas eram mulheres negras ou pardas, enquanto 37,5% eram brancas.

Entre meninas e mulheres, o Brasil ainda não define qual escuta. A infantilização das mulheres adultas, somada à sexualização intensa, não é um fenômeno isolado ou superficial. É um sistema de um país onde, em um único ano, mais de 83 mil mulheres são violentadas e onde três em cada quatro agressores são homens, não é um país que protege mulheres. É um país que ainda as vê como meninas para algumas coisas — e como objetos para outras.

Por Maria Eduarda Fava

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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