Às vésperas de completar 20 anos (em 17 de abril de 2016), o massacre em Eldorado dos Carajás, sudeste paraense, chacina onde 21 sem-terra foram mortos pela Polícia Militar e 69 ficaram feridos, não mudou o cenário de violência no campo no Pará. No ano passado, por exemplo, foram contabilizados nove assassinados dos 36 camponeses. Ainda, das 32 tentativas de assassinatos, 28 ocorreram no estado.
CONFIRA DOCUMENTAÇÃO QUE ACOMPANHA A VIOLÊNCIA NO PARÁ (ACERVO DA COMISSÃO PASTORAL DA TERRA)
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Segundo o advogado José Batista Afonso, que passou a trabalhar com a Comissão Pastoral da Terra no Pará após o massacre em 1996, a impunidade e a expansão dos empreendimentos dos grandes proprietários de terra alimentam o conflito. “Tanto no massacre de Corumbiara quanto no de Eldorado dos Carajás, a violência que estava a serviço dos grandes proprietários de terra ficou a cargo da polícia. No estado do Pará, por exemplo, uma margem que se aproxima a 30% dos assassinatos ocorreram com a participação direta de policias militares ou policias civis”.

Naquele episódio de Eldorado, dos 155 militares responsáveis pelas mortes, todos foram julgados, contudo, apenas dois foram condenados. Os políticos responsáveis pelo massacre, o governador Almir Gabriel, o secretário de Segurança Pública, Paulo Câmara, nunca foram processados.
“Infelizmente a questão agrária brasileira sempre foi tratada como um caso de polícia, como um caso de interferência do Estado, mas para sempre beneficiar aqueles que concentram a terra. Nunca para poder democratizá-la”, denuncia o advogado.
Aos 51 anos, casado e com uma filha, José Batista Afonso é um dos principais defensores de direitos humanos e meio ambiente na Amazônia. Em 2009 foi uma das personalidades escolhidas para receber a Medalha Chico Mendes de Resistência. Voz dissidente em um contexto de violência ao campesinato e da criminalização dos movimentos sociais que trabalham pela reforma agrária, José Afonso comenta, na entrevista abaixo, a realidade do Pará, os desafios pela democratização da terra, as políticas públicas e a violência do Estado junto aos trabalhadores.
O Pará é o estado que concentra os casos de assassinatos por conflito agrário no Brasil, segundo o mais recente levantamento da Comissão Pastoral da Terra. Em 2014, das 36 vítimas registradas no país, nove mortes ocorreram no Pará. Qual é o principal motivo desta violência?
O estado do Pará se destaca em relação aos demais estados quando o assunto é violação de direitos humanos no campo. Assassinatos pela posse da terra, trabalho escravo e expulsões violentas de populações de suas terras e outras formas de violência. Isto tem ocorrido em razão, principalmente, da expansão dos grandes empreendimentos para a região da Amazônia. O estado do Pará está nessa fronteira em exposição principalmente do agronegócio. Em relação especificamente aos assassinatos no campo, a causa principal desses é a luta pela terra e na terra. A primeira diz respeito aos milhares de camponeses e famílias que migram para o estado do Pará em busca de alternativas, muitas vezes, motivados pelas propagandas dos grandes empreendimentos que são instalados ali e ao chegar lá não encontram emprego nestes. Acabam assim ou ingressando nos movimentos camponeses para fazer a luta para conseguir um pedaço de terra na área rural ou no movimento de ocupação para conseguir uma moradia na área urbana. A maior parte dos assassinatos dos trabalhadores rurais vem destes casos de processo de luta pela terra. De um lado estão os trabalhadores rurais sem terra, e do outro, grandes proprietários de terras, grileiros, madeireiros que se apropriaram da maioria das terras aqui do estado. Também tem trabalhadores que lutam pela defesa de suas terras, ou seja, aqueles que já moram na terra, são posseiros, e que muitas vezes são ameaçados de expulsão por madeireiros e grileiros. Para fazer a defesa de suas terras acabam enfrentando esses setores e muitas vezes acabam pagando com a própria vida.
Esse conflito é alimentado por quais forças?
É uma briga de um pequeno agricultor contra o grande proprietário, o latifundiário. É também a briga daquele que busca ser um pequeno agricultor, ter o direito de ser um pequeno agricultor. Para isso ele precisa de um pedaço de terra para morar e plantar.
O Pará hoje, principalmente em suas regiões sul e sudeste, tem o maior número de ocupações de terras não resolvidas. Ou seja, famílias morando em acampamentos por até 12 anos esperando que haja uma solução por parte do Estado. A demora dessas famílias em acampamentos acaba estimulando a continuidade da violência. Quanto mais tempo se passa aguardando uma solução, mais possibilidade de haver o enfrentamento com o grileiro, com o madeireiro, com o fazendeiro.
Como o senhor iniciou os trabalhos pelo direito a terra no Pará? Quais são as forçar que os trabalhadores hoje?
Foi no Pará que se tiveram as primeiras denúncias de trabalho escravo na década de 70, feita pelo bispo Dom Pedro Casaldaliga. Este problema continua ainda sendo um problema grave no estado. Se pegarmos todos os relatos de trabalhos escravos no Brasil, o Pará continua sendo o Estado com maior quantidade de casos.
Muitos trabalhadores conseguem fugir dos locais onde são escravizados, chegam até um escritório da Comissão Pastoral da Terra onde ele é atendido, tomado seu depoimento, encaminhado ao Ministério do Trabalho. Nos últimos anos tem se diminuído muito os casos de trabalho escravo, em parte se deve a ação de repressão via judicia.
Como acontece o trabalho escravo? O que sustenta essa prática de exploração?
O trabalho escravo é realizado em um ciclo. Primeiro começa com o proprietário, um grileiro ou madeireiro que se apropria de uma área de terra e ali pretende desenvolver algum tipo de atividade. Para fazer isso eles acabam criando uma figura conhecida como gato. Ele é o intermediário que os patrões utilizam para fazer a contratação da mão de obra. Este gato sai e vai para as periferias das cidades, vai para os estados mais próximos daquela região aonde se precisa do trabalho e faz a contratação dos trabalhadores. Esta contratação é com base em uma promessa enganosa.
Chega com o trabalhador em regiões pobres, faz uma promessa de que ele vai receber um bom dinheiro, que vai ter um bom salário. Deixa um adiantamento para ele fazer alguma compra pra deixar para família. Com isso ele consegue convencer um grande número de trabalhadores a se deslocar para área em que se precisa da mão de obra. Ao chegar ao local nada do que se prometeu acaba se cumprindo. Geralmente os trabalhadores são levados para regiões que eles não conhecem, tem dificuldade para sair.
Como acontece o controle desses trabalhadores?
Na região, o que os trabalhadores precisam eles pegam na cantina da fazenda que o gato tem controle. Acabam contraindo uma dívida que acaba sendo maior do que o salário que ele ganha. Muitas vezes o trabalhador é impedido de sair até que acabe o serviço e até que quite a dívida. Contudo, esta é uma dívida que acaba muitas vezes não sendo quitada nunca. Esta é uma estratégia para sempre manter o trabalhador preso. O que tem se buscado é quebrar esta cadeia do crime, ou seja, acabar com a figura do gato e também com a figura do empregador que se utiliza deste tipo de mão de obra.
Qual o contexto do trabalho escravo no nosso país? A bancada ruralista contribui para que essas violações continuem?
No Brasil a violência no campo é uma violência estrutural. Ou seja, ela existe há séculos por que esse problema de concentração de terras nunca foi enfrentado pelo Estado brasileiro. Enquanto outros países, e não precisamos falar de países socialistas, esse problema da concentração da terra já foi enfrentado, não existem mais imensos latifúndios, no Brasil isto é como uma espécie de cláusula pétrea que ninguém se propõe a enfrentar. Entra governo, sai governo e o setor ruralista que controla a questão da terra no campo impedem que a reforma agrária e a democratização do acesso a terra aconteça.
Uma tentativa de fazer isso se deu na Constituição de 1988, mas infelizmente em função da organização do setor ruralista que comandou a época chamada “Centrão”, onde se concentrava a bancada ruralista, conseguiram impedir que com as mudanças a serem feitas na Constituição se pudesse criar mecanismos de democratização ao acesso da terra. O máximo que se conseguiu inserir na Constituição foi obrigar que as propriedades cumprissem sua função social. No entanto, há mais de 30 anos da Constituição, o Estado se quer tem conseguido desapropriar as terras que não cumprem com a função social. Isto não tem sido possível devido a pressão do setor ruralista e também do conservadorismo do poder judiciário.
A Constituição de 1988 trouxe algum avanço?
Após a Constituição de 88 os movimentos sociais, percebendo que não foi possível avançar, buscaram a se organizar mais, principalmente a partir da estruturação do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, o MST. Assim, ao longo dos anos, tentaram fazer uma pressão na busca de forçar pela via da pressão a mudança. Isso acabou tendo efeito pontual, no sentido que foram desapropriados muitos imóveis e criados projetos de assentamento. No entanto, essas são políticas paliativas. Não existe uma política de enfrentamento da questão da concentração da terra e de proposta de reforma agrária.
O Massacre de Eldorado dos Carajás é um dos episódios mais marcantes da luta brasileira pela terra e também da violência praticada pela Polícia Militar aos movimentos sociais. Essa violência do estado sobre os camponeses que lutam ainda persiste?
O massacre do Eldorado é exemplo da forma como os grandes proprietários de terras reagem quando são confrontados por seguimentos ligados aos trabalhadores rurais que desejam promover a reforma agrária. A reação é de extrema violência e não é apenas patrocinada por iniciativas do setor privado. Infelizmente é uma violência que conta também com a participação do poder público.
Tanto no massacre de Corumbiara quanto no de Eldorado dos Carajás, a violência que estava a serviço dos grandes proprietários de terra ficou a cargo da polícia. No estado do Pará, por exemplo, uma margem que se aproxima a 30% dos assassinatos ocorreu com a participação direta de policias militares ou policias civis. Sejam executando diretamente os crimes, ou contribuindo e participando com ações comandadas por pistoleiros e milícias armadas contratadas por fazendeiros. Essa questão da violência no campo no Brasil é uma questão estrutural, onde o estado esta sempre a serviço dos grandes grupos que comandam a concentração de terra.
Quando iniciou essa violência? Ela continua?
A violência contra os camponeses não é uma questão recente. Se você pega 100 anos atrás, até a ocupação do Brasil pelos Portugueses foi violenta. Também podemos lembrar o movimento de canudos que aconteceu no século trazado. Foi uma iniciativa dos pobres que eram escravizados pelos coronéis nordestinos. Se juntaram com Antônio Conselheiro, tentaram se organizar em torno de uma comunidade em uma terra que ninguém queria. Na medida em que isso passou a ser uma referencia de acesso a terra para os agricultores, passou a ser duramente combatido e a experiência foi totalmente destruída numa ação articulada entre os coronéis do nordeste e o Exército brasileiro.
Infelizmente a questão agrária brasileira sempre foi tratada como um caso de polícia, como um caso de interferência do estado, mas para sempre beneficiar aqueles que concentram a terra. Nunca para poder democratiza-la.
Nesse cenário, há uma criminalização do MST?
Nos últimos anos uma política que tem ganhado espaço e fragilizado os movimentos populares que lutam pela reforma agraria. Existe uma criminalização como uma articulação que visa transformar em crime a luta por um direito. Os trabalhadores que se organizam para lutar por uma politica de reforma agrária que está prevista na Constituição, que lutam para fazer que o estado desaproprie as terras improdutivas que não cumprem a função social, esta luta é associada como fosse uma prática de crime. Aí muitas lideranças dos movimentos têm sido penalizadas com processos criminais e ações de condenações de pagamento de multas. Isso inviabiliza a atuação dos movimentos. Além de tudo isso, temos o cenário político: estamos vivendo um momento político extremamente desfavorável que tem promovido um certo descenso no processo de luta e organização dos movimentos populares. Em razão do governo não ter dado prioridade para a questão agrária, a capacidade do movimento para fazer pressão para criar novos assentamentos e fazer avançar a questão agrária diminuiu muito nos últimos anos.
Por Guilherme Cavalli, de Belém (PA)
Imagem: Agência Brasil


